Luciano Rezende: Cobras e cobras

Existem cobras e cobras. Algumas rastejam, outras caminham eretas disseminando venenos dos mais variados tipos. Estas são as mais peçonhentas e podem ser catalogadas, de A a Z, em extensas fichas que compõem a notável taxonomia da direita brasileira.

Em São Paulo, embora sem a cobertura devida da grande mídia, a destruição da imensa parte do acervo de répteis e artrópodes do Instituto Butantan foi uma tragédia que muitos especialistas comparam, em sua área, como a destruição da biblioteca de Alexandria. Um dos maiores patrimônios científicos do mundo virou pó.

Fosse o Butatan administrado pelo governo Lula seria motivo suficiente para se abrir uma Comissão Parlamentar de Inquérito para apurar a negligência. Mas como o Butantan é vinculado à Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo, governado pelos tucanos, quase nada foi divulgado.

Por debaixo das cinzas do que sobrou da coleção de ofídios iniciada por Vital Brazil ainda no século XIX, está o descaso do governo José Serra com a ciência básica. Em matérias divulgadas até pelo insuspeito jornal o Estado de São Paulo, há denúncias gravíssimas de como a ciência e tecnologia é negligenciada pelo PSDB. Segundo o jornal, o Butantan perdeu 24% do quadro de cientistas nos últimos cinco anos.

Mas qual seria o motivo desse êxodo?

De acordo com o pesquisador Marcelo De Franco, do Laboratório de Imunogenética, o salário de pesquisador no Butantã começa em R$ 2.700 (nível 1) e pode chegar a R$ 6.400 (nível 6), enquanto que na Fiocruz e na Embrapa (ambas federais) o teto é de R$ 14 e 12 mil, respectivamente. "Todos os institutos de pesquisa do Estado (de SP) estão sofrendo com uma evasão séria de pesquisadores", diz ele.

Para piorar o quadro, quando a comunidade científica ainda tentava se recompor do trauma do incêndio que consumiu essa que foi a maior e a mais antiga coleção no mundo em seu gênero, é divulgada a declaração do ex-diretor da Fundação Butantan, Isaias Raw, que disse que “guardar cobras é bobagem” e que a prioridade do Instituto deve ser o de continuar fabricando vacinas para salvar vidas.

Uma afirmação extremamente simplista e totalmente insensível à dor de muitos que praticamente viram suas vidas acadêmicas desabarem. Nem guardar cobras é bobagem (basta ver a importância dos museus de zoologia por todo o mundo), nem prioridade deve ser confundido com exclusividade. Mas o que está realmente por trás desse discurso é o velho maniqueísmo tucano de sempre contrapor a chamada ciência básica contra a ciência aplicada. Criam essa falsa contradição para justificar o corte de investimentos em algumas áreas em detrimento de outras.

No governo Fernando Henrique foi assim. Para que investir pesado em C&T nacional se sai mais barato comprar tecnologia pronta de fora? Simples e direto. Talvez tenha faltado aos pesquisadores do Butantan mais estudos sobre esse tipo superior de cobras.

Colocadas novamente no poder central, terão o veneno mais funesto que a Urutu Cruzeiro (aquela do dito popular de que se não mata, aleija). Basta ver o que aconteceu com o projeto científico nacional nos anos FHC e o que vem ocorrendo em São Paulo.

Daí a vacina não adiantará mais. Pobre Vital Brazil.

 
Luciano Rezende Moreira é engenheiro agrônomo, mestre em Entomologia e doutorando em Genética. Presidente do PCdoB de Viçosa.