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Cinejornal Noticiero: Cuba no espelho de Fidel

Uma das experiências cinematográficas mais inovadoras no campo subestimado dos cinejornais acaba de ganhar, enfim, um belo balanço fílmico. O chamado "Noticiero Icaic" (sigla de Instituto Cubano de Arte e Indústria Cinmetográficos) é o tema central de "Memória Cubana", da brasileira Alice de Andrade e do cubano Ivan Nápoles, distinguido na semana passada com o Prêmio Especial do Júri do 20º Cine Ceará.

Por Amir Labaki*, em Valor Econômico 

A história do cinejornal acompanhou 31 anos da revolução, de 1960 a 1991, quando o fim dos subsídios soviéticos paralisou o cinema cubano. Foram realizadas 1.493 edições, totalizando cerca de 250 horas de filme. Era a atração principal dos cinemas da ilha, todas as sextas-feiras.

À frente do "Noticiero Icaic" estava o principal documentarista cubano: Santiago Alvarez (1919-1998). Tive o privilégio de conhecê-lo no começo dos anos 1990, durante uma visita ao Brasil. Era tão cativante que logo o segui até Havana para, entre projeções de seus principais filmes no Icaic, entrevistá-lo para o livro "O Olho da Revolução – O Cinema Urgente de Santiago Alvarez", publicado em 1996, em português e espanhol (para o público cubano), pela editora Iluminuras.

Santiago se fez cineasta pela revolução. Militante de esquerda desde os tempos de juventude, foi tentar a vida nos EUA entre 1938 e 1941. Tornou-se comunista ao retornar a Havana. Seus longos anos de trabalho em rádio e TV foram essenciais para o sucesso de sua conversão em cineasta, ao ser convidado para criar o cinejornal por Alfredo Guevara, o todo-poderoso dirigente do cinema revolucionário.

"Memória Cubana" tem Santiago ao centro, mas vai além de sua extraordinária contribuição. A fábrica do "Noticiero" ajudou a formar uma geração de diretores e técnicos. Fernando Pérez, mais conhecido no Brasil por "Hello Hemingway" (1990) e "Suíte Havana" (2003), é um deles. Ivan Nápoles, codiretor com Alice de Andrade, é outro. Ivan mantém até hoje os cadernos em que pacientemente escreveu seus diários das filmagens, mundo afora, como o câmera predileto de Santiago. É um extraordinário documento histórico, ainda à espera de ser editado. Alguns trechos são lidos por ele em "Memória Cubana".

Foi uma sábia decisão de Alice convidar Ivan para gravar ao lado dela os depoimentos com os companheiros de "Noticiero". É assim que ouvimos Júlio Batista, narrador da fase inicial do cinejornal desde a primeira edição, recuperar os primeiros passos do projeto."Santiago tinha a grande preocupação de que, desde o primeiro, o 'Noticiero' não se parecesse com os cinejornais anteriores. Queria que fosse um documentário", recorda Batista.

A documentarista Rebeca Chavez, ex-assistente de direção do cinejornal, assume de pronto: "Ao trabalhar com Santiago, aprendi que o cinema não era apolítico". De fato, o "Noticiero" foi um dos instrumentos centrais de doutrinação ideológica da revolução castrista. Era o diário oficial, em sons e imagens, de Fidel. Ainda assim, transcendeu sua função panfletária, sendo considerado pela Unesco em 2009 "Memória do Mundo".

O primeiro motivo é a força das imagens de conflitos pelo mundo: Vietnã, Camboja, China, Chile, Portugal, Moçambique, Angola. Em cada endereço quente do planeta em que o internacionalismo revolucionário de Cuba se envolveu, lá estavam as câmeras do "Noticiero", na maior parte comandadas por Santiago.

A segunda razão é estética: a extraordinária inventividade formal de Santiago. Trabalhando com meios escassos, premido sempre pelo tempo, ousava sem parar num gênero tradicionalmente careta, didático e formal. Música, intertítulos, reciclagem de materiais variados e montagem dinâmica sob forte influência de Eiseinstein foram a base de sua arte.

A obra de Santiago não se limitou aos cinejornais, sobretudo desde que um curta extraído de um deles, "Ciclón" (1963), sobre um furação que devastou Cuba, venceu o Festival de Leipzig. Suas obras-primas são "Now!" (1965) e "LBJ" (1967), sobre os conflitos raciais nos EUA dos anos 1960, e "Hanói Terça-Feira 13" (1968) e "79 Primaveras" (1969), que trazem a guerra contra os americanos pela perspectiva dos vietnamitas.

"Memória Cubana" frisa ainda como o "Noticiero" funcionou como espelho interno para os cubanos. Temas como tragédias nacionais, incompetência gerencial e carestia conquistavam a identificação de seus milhões de espectadores semanais, para além da propaganda oficial. Algo parecido acontece subliminarmente no filme de Alice e Ivan. Por trás dos emocionados depoimentos de uma geração, divisa-se a penúria cotidiana da Cuba de hoje. Num único documentário, um monumento e as ruínas de uma mesma utopia.

*Amir Labaki é diretor-fundador do É Tudo Verdade – Festival Internacional de Documentários.