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Europa em crise: Batalha de egos em torno do Tratado de Lisboa

“O costume das cúpulas dos chefes de Estado e de governo da União Europeia, especialmente na União dos 27 membros, é que quando não há crise, inventa-se uma”, ironizava o jornal “El Mundo” algumas horas antes do “debate amargo” de várias horas que aconteceu em Bruxelas sobre uma revisão do Tratado de Lisboa.

Os dirigentes europeus, depois de aprenderem com a crise grega, chegaram a um acordo na noite de quinta-feira (28) sobre uma revisão parcial do tratado destinado a criar uma rede de segurança permanente para os países da zona do euro em dificuldades. Essa revisão havia sido colocada como condição pela chanceler alemã, Angela Merkel, para a criação de um Fundo de Apoio permanente aos países da União Monetária que passassem por grandes dificuldades.

Merkel também exigiu um reforço da disciplina orçamentária e da vigilância macroeconômica dentro da União Europeia, acompanhadas de um regime de sanções financeiras para os Estados indulgentes.

Uma vitória parcial para Merkel

Angela Merkel, que lutou para conseguir o apoio dos países da UE sobre uma revisão do tratado, segundo o “The Guardian”, só teria conseguido uma “vitória parcial”, avalia o jornal. Ela de fato impôs a ideia de uma revisão parcial do tratado destinada a perenizar o plano de socorro à Grécia, mas não conseguiu convencer os Estados-membros a imporem a retirada do direito de voto dos países que não respeitassem o pacto de estabilidade e de crescimento. O combate foi acirrado. Como previsto, “os países mais traumatizados pela adoção à força do Tratado de Lisboa em 2008-2009, como a Irlanda ou a República Tcheca, não queriam reabrir a caixa de Pandora institucional”, explica o “Le Temps”. Mas no final, aplaude o “Die Welt”, Angela Merkel impôs os interesses da Alemanha. “É bom para a Alemanha e para a Europa”, reforça o jornal alemão.

Os Estados-membros exprimiram uma certa ambivalência frente à posição alemã, ambivalência retomada por Herman Van Rompuy, observa o “Financial Times”. O presidente da UE avaliou que uma reabertura dos tratados poderia conter riscos financeiros e políticos. Ele pediu por mudanças ínfimas que não necessitassem de um procedimento de revisão do tratado, ao mesmo tempo em que reconhecia que os Estados-membros tinham ciência do risco de manter o sistema de socorro permanente fora da proteção dos tratados. O primeiro-ministro britânico David Cameron, por sua vez, disse não se sentir “à vontade com uma revisão do tratado”, relata o “Guardian”, mas garantiu seu apoio a Merkel em troca da observância do status particular do Reino Unido como não-membro da zona do euro. Segundo o “Financial Times”, os países que não são membros da zona do euro, a exemplo do Reino Unido, da Suécia e da Dinamarca, poderiam encontrar nessa revisão do tratado uma forma de se livrar de seu comprometimento nos mecanismos de transferências financeiras onerosas.

A irritante dupla franco-alemã

“O valentão está na sala”, adverte um blog do semanário “The Economist”, que observa que “os dirigentes vieram a Bruxelas queixando-se de terem sido forçados pela França e pela Alemanha a tomar uma posição. Mas, antes mesmo que a cúpula começasse, eles pareciam ter sucumbido à intimidação”. O presidente Nicolas Sarkozy de fato irritou muitos Estados-membros, diz o “The Guardian”, ao aderir à posição alemã e exortando os outros Estados a apoiarem uma revisão do tratado, considerando a ajuda dada pelos grandes Estados para salvar os países em dificuldades. Para o “Financial Times”, “esse último imbróglio entre a França e a Alemanha representa uma aposta arriscada”, no momento em que a Europa está dividida entre países credores do Norte e países do Sul; o Reino Unido e os outros países fora da zona do euro observam isso com distância.

Assim, os holandeses e os escandinavos estão furiosos com a “maquinação franco-alemã”, observa o “Guardian”, assim como José Manuel Barroso. “Não gosto do que estou vendo. É muito perigoso”, contou, por sua vez, Viviane Reding ao jornal. “Deveria ser uma discussão entre os 27 membros, e não uma imposição de dois membros”. Além disso, a comissária europeia considerou a revisão do tratado inútil (segundo o jornal “L’Essentiel”): “Seria irresponsável, eu repito, abrir a caixa de Pandora”, insistiu, lembrando que “foram necessários dez anos para chegar ao Tratado” de Lisboa. Ela foi apoiada pelo primeiro-ministro luxemburguês, Jean-Claude Juncker, pelo ministro das Relações Exteriores do grão-ducado, Jean Asselborn, e outros países da UE, como a República Tcheca. Jean Asselborn chamou a proposta franco-alemã de “veneno para a Europa” nas colunas do jornal de economia “Handelsblatt”. O acordo franco-alemão, aprovado em 18 de outubro em Deauville, obtido de Sarkozy em troca de uma automaticidade mínima das sanções orçamentárias, também causou irritações na Alemanha, até mesmo dentro da coalizão de Merkel, diz o “Der Spiegel”.

As sanções: “uma tática de negociação”?

É de fato uma “vitória parcial” para Angela Merkel, que não conseguiu obter a aprovação dos 27 sobre a segunda parte do acordo de Deauville: a retirada do direito de voto dos Estados-membros que não respeitarem o pacto de estabilidade e de crescimento, lembra o “Guardian”. “Sem surpresa, essa sugestão causou uma comoção”, comenta o “Libre Belgique”. “É uma ideia à qual não se deve dar seguimento”, avisou na quarta-feira Juncker. “Não é a maneira de agir que queremos”, acrescentou o primeiro-ministro belga, Yves Leterme. José Manuel Barroso, por sua vez, classificou na quinta-feira a retirada dos direitos de voto dos Estados-membros como “inaceitável” e “ não realista”, relata o “Publico”. “Não é compatível com a ideia de uma revisão limitada do tratado e nunca será aceito por unanimidade pelos Estados-membros. E como vocês sabem, uma modificação do tratado requer a unanimidade”, detalhou o presidente da Comissão Europeia, segundo o “Irish Times”.

Entre os Estados-membros, essa medida foi particularmente criticada pelo primeiro-ministro grego, Georges Papandreou, relata o “Guardian”, bem como pelo primeiro-ministro irlandês, Brian Cowen, que garantiu que ele não conseguiria jamais vencer um referendo sobre uma revisão do tratado que contivesse tal medida. A Espanha, por sua vez, “é a favor de sanções contra os Estados cujas políticas ameacem a estabilidade da zona do euro, mas não acredita que essas sanções devam incluir a retirada do direto de voto”, observa o “El País”. Segundo o “Irish Times”, essa exigência poderia muito bem ser “uma tática de negociação” imaginada pelos alemães para garantir ao menos a aprovação dos Estados-membros sobre a primeira parte de sua proposta, que diz respeito a uma revisão limitada do Tratado de Lisboa.

A cúpula de Cameron

Enquanto 26 dos participantes da cúpula mantinham discussões acaloradas sobre a revisão do Tratado de Lisboa, o primeiro-ministro britânico, David Cameron, “realizou sua própria cúpula” sobre o orçamento da Europa, ironiza o “Wall Street Journal”. Cameron, desde que chegou à cúpula na quinta-feira, insistiu sobre sua vontade de pôr um fim ao aumento do orçamento da UE. “Penso que é completamente inaceitável em um momento em que os países europeus, incluindo o Reino Unido, estão tomando decisões difíceis para seus orçamentos”, ressaltou.

O primeiro-ministro britânico por fim abandonou a hipótese de um congelamento de 5,9% do orçamento de 2011 da UE, observa o “Guardian”, mas de qualquer forma o governo britânico “cantou vitória” por ter convencido os chefes da UE a limitarem o aumento do orçamento europeu. Cameron aceitou a ideia de um aumento do orçamento de pelo menos 2,91% após receber o apoio de Angela Merkel e de Nicolas Sarkozy. A declaração conjunta que ele redigiu nesse sentido foi assinada por dez outros países: a Alemanha, a França, a Holanda, a Suécia, a República Tcheca, a Dinamarca, a Áustria, a Finlândia, a Eslovênia e a Estônia, detalha o “The Independent”. Os onze dispõem assim de uma “minoria de veto” contra qualquer decisão de aumento pelos ministros, pelo Parlamento Europeu e pela Comissão Europeia. Segundo o “El Mundo”, o presidente espanhol José Luis Rodríguez Zapatero também havia se juntado, na tarde de segunda-feira, à linha de governos da UE a defenderem um aumento moderado do orçamento europeu.

William Hague, o ministro britânico das Relações Exteriores, garantiu que esse gesto de David Cameron marcava o início de “um caminho bem mais longo” destinado a ordenar à UE que “controle suas próprias finanças”, segundo o “Guardian”. Os trabalhistas criticaram o “fracasso total” de Cameron. O “Guardian” questiona se as concessões de Cameron sobre o orçamento da Europa e a revisão do Tratado de Lisboa não poderiam dar lugar a uma revolta séria no Reino Unido? Como observa o “The Independent”, David Cameron havia declarado que como eurocético iria reconquistar o poder tomado por Bruxelas na primeira oportunidade. Mas ele apareceu em sua primeira cúpula da UE esta semana como um “perfeito europragmatista”, com “uma moderação impecável”.

Fonte: Le Monde
Tradução: Lana Lim