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A luta de Franklin Martins contra os “fantasmas” da mídia

Hamlet, o angustiado príncipe da Dinamarca, concluiu ter “mais pecados na cabeça do que pensamentos para concebê-los”. Nem por isso deixou de fiar-se num fantasma para vingar o assassinato do pai e mudar a ordem no reino. Os donos da mídia — cujos pecados não são nada involuntários — também se escoram em “fantasmas”. Não pretendem, porém, mudar a ordem de nada. Ao contrário — querem manter tudo como está.

Por André Cintra

A luta dos barões midiáticos é para que seu setor continue ao bel-prazer deles próprios, indiferente às observações da sociedade, num processo de autorregulação que lhes infle os direitos e praticamente exclua os deveres. Daí as sublevações imediatas ante toda e qualquer proposta que vise ao debate e à democratização dos meios de comunicação.

Com respostas automáticas que aludem a falsos fantasmas — como “volta à censura” e “atentados à liberdade de imprensa” —, eles não almejam sequer se apoderar da discussão. Querem, mais do que isso, impedir a própria eclosão do debate.

É o que ocorre neste momento em que o ministro Franklin Martins, da Secretaria de Comunicação da Presidência (Secom), propõe um anteprojeto para regular as comunicações no Brasil. Não há nada de impositivo ou antidemocrático na iniciativa.

Para “qualificar o debate público” em torno dessa medida, Franklin chegou a convocar o Seminário Internacional das Comunicações Eletrônicas e Convergência de Mídia, que ocorre até esta quarta-feira (10), em Brasília. O evento contacom a participação e a simpatia de diversos especialistas internacionais — mas, evidentemente, já deflagrou a ira das todo-poderosas entidades empresariais como a Abert (Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão) e a ANJ (Associação Nacional dos Jornais).

Diferentemente de parte expressiva dos movimentos sociais — que defendem o controle social da mídia —, Franklin não prega mais que atualizar uma legislação decrépita, à vista do fulminante avanço das telecomunicações. As mudanças previstas se darão nos marcos do capitalismo. “É necessário um marco regulatório que dê segurança aos agentes econômicos, continuidade de competição, inovação e promova oferta de informação e conhecimento”, afirma o ministro da Secom.

Ele também lembra que há disputa desigual entre os principais atores das comunicações no Brasil. “A radiodifusão faturou no ano passado R$ 13 bilhões. As telecomunicações faturaram R$ 180 bilhões. Se não tiver uma nova pactuação, não é preciso ser nenhum gênio da raça para saber que, se prevalece só o mercado, o mais forte ganha.” Ou seja, é provável que os veículos tradicionais da grande mídia sejam os mais beneficiados com o anteprojeto que deve ser apresentado nas últimas semanas de governo Lula, uma vez que a sanha das teles estará em xeque.

Os resmungos mais altos da grande mídia se concentram na proposta de diversificar o conteúdo da programação. Franklin quer, acima de tudo, promover a cultura regional e combater discriminações, preconceitos e baixarias. Só o Big Brother Brasil 10, exibido pela TV Globo de agosto de 2009 a abril de 2010, recebeu 227 denúncias de “desrespeito à dignidade humana, apelo sexual, exposição de pessoas ao ridículo e nudez” na Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara Federal.

Antevendo os protestos e ataques de que seria alvo, Franklin Martins pediu às entidades empresariais que ao menos compareçam ao debate. “Nenhum grupo tem o poder de interditar a discussão. A discussão está na mesa. Terá de ser feita. Pode ser num clima de enfrentamento ou de entendimento.”

Mas o ministro não se furtou a rebater as acusações, previsíveis, de que o governo Lula estaria na trincheira contra a liberdade de imprensa. "Essa história de que a liberdade de imprensa está ameaçada é bobagem, fantasma, é um truque. Isso não está em jogo", esclarece Franklin, quase em vão, ante a sublevação — ou "fúrias mesquinhas" — dos barões midiáticos.

“Liberdade de imprensa”, agrega ele, “não quer dizer que a imprensa não pode ser criticada, observada. Liberdade de imprensa quer dizer que a imprensa é livre, não necessariamente boa. A imprensa erra". Segundo o ministro, “os fantasmas passeiam por aí arrastando correntes. Os fantasmas, quando dominam nossas vidas, nos impedem de olhar de frente a realidade. Os fantasmas não podem comandar esse processo. Se comandarem, perderemos uma grande oportunidade”.

A corajosa investida de Franklin Martins — que, curiosamente, é um quadro egresso da TV Globo — ocorre num momento histórico favorável à luta pela democratização da mídia, quase um ano após a 1ª Conferência Nacional de Comunicação (Confecom). Em outubro último, no rastro dessa luta, o jurista Fábio Konder Comparato destinou ao Supremo Tribunal Federal (STF) petição sobre uma histórica ação direta de inconstitucionalidade (Adin) nesse mesmo sentido.

Chamada tecnicamente de “Adin por omissão”, a medida cobra do Congresso Nacional a regulamentação dos artigos 220, 221 e 223 da Constituição Federal de 1988— todos sobre comunicação social. Os artigos proíbem práticas monopolistas como a propriedade cruzada, incentivam a produção independente e regional, tratam dos sistemas público, estatal e privado de comunicação, entre outros encaminhamentos. Embora aprovados há 22 anos, esperam desde então que os deputados os regulamentem.

Comparato dá um exemplo formidável dos abusos da grande mídia: “Se, por exemplo, o jornal ou periódico publica a resposta do ofendido em caracteres bem menores que os da matéria considerada ofensiva, ou em seção diversa daquela em que apareceu a notícia a ser retificada, terá sido dado cumprimento ao preceito constitucional? Analogamente, quando a ofensa à honra individual, ou a notícia errônea, são divulgadas por emissora de rádio ou televisão, caso a transmissão da resposta ou da retificação do ofendido for feita em outra emissora da mesma cadeia de rádio ou televisão, ou em programa e horário diversos da transmissão ofensiva ou errônea, terá sido cumprido o dever fundamental de resposta?”

Como bem rebateu o jornalista Kicardo Kotscho, a respeito das queixas a Franklin Martins, “nossa mídia não admite que nenhuma instância da sociedade, dos parlamentos ou dos governos eleitos se atreva a se meter em sua seara. É como se a mídia constituisse um mundo à parte, uma instituição autônoma, acima do bem e do mal, inimputável como as crianças e os índios”.

Voltemos a Hamlet: “Não faças como alguns desses pastores que aconselham aos outros o caminho do céu, cheio de abrolhos, enquanto eles seguem ledos a estrada dos prazeres, sem dos próprios conselhos lembrarem”.