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Marco Albertim: Cinema russo no Recife

Sergei Loznitsa poderia ter sido cientista, uma vez que tem formação de engenheiro e de matemático. Com o fim da URSS, no entanto, migrou para o cinema. Com 46 anos, aporta no Recife e, com um título apenas sugestivo – Bloqueio – mostra a rica resistência dos russos à invasão de tropas nazistas.

Por Marco Albertim*

Sua obra de maior fôlego – Minha alegria -, de ficção, tem como cenário o interior gelado da Rússia, com policiais truculentos, salteadores de estrada, prostitutas, mendigos; nenhum traço do projeto soviético. Caracteriza-se pela violência, a rude violência do lugar, abrupta, sem sequências que a sofisticam, como nos filmes americanos.

O contraste manifesta-se com a despreocupação do roteiro em apontar um heroi. “Meu próximo filme terá um heroi clássico”, avisa Loznitsa. Aparenta ser um aglomerado de cenas, com sequências no interior de cada uma.

O caminhoneiro de bom trato – recusa os préstimos da prostituta, e ainda assim ajuda-a -, dá sinais de heroísmo, mas dura pouco na narrativa. O velho a quem dera carona, conta-lhe uma história que vivera após a guerra – “Eu era um jovem tenente.” Com o fim das cenas com o “jovem tenente”, o velho some do roteiro; ressurge numa casa de madeira, pobre, inda que adequada para se abrigar do frio.
 
Tem como interlocutor um policial, seguido do chefe que delira. O policial quer a ajuda do velho para dar sumiço no cadáver que trouxera no carro. O diálogo é marcado pelas seguras e misteriosas palavras do velho. O velho é a alma viva da velha Rússia; o seu ressurgimento assegura a unidade da narrativa do roteiro.

No começo do filme, um cadáver é enterrado numa vala comum e coberto por cimento; nenhum detalhe da faina é ocultado, a ponto de a câmara ser soterrada pelo cimento viscoso. É a advertência sobre a rotina da morte, tão comum quanto chá com pão de centeio. Como não há protagonistas, a sequência final dá conta de mortes em série, tiros de revólver disparados por um demente sem nome, rejeitado em sua vila. Mata policiais e suas vítimas, depois segue pela rodovia no mesmo passo lento, espreitando nada.

Em Bloqueio, o documentário dá conta de Leningrado destruída, a morte sem escolher vítimas. Não se trata do foco no cerco dos alemães. São registros da resistência dos soldados do Exército Vermelho em sintonia com a unidade do povo russo. Não há trilha sonora nos 52 minutos do material encontrado por Loznitsa nos arquivos de Moscou. A trilha é o ruído de vozes que se juntam aos destroços de prédios, de gentes. Chama a atenção o final, alemães enforcados em praça com o endosso da população nada atônita. É a reiteração da vitória na edição de Sergei Loznitsa.

Em Retrato, o autor nivela-se ao fotógrafo norte-americano Walker Evans no périplo que fez ao interior do país para registrar a pobreza. Vinte e oito minutos de imagens estáticas; em cada semblante a tensão junta-se à timidez e conta uma história.

Loznitsa, da Belarussia, conhece a alma russa. O mesmo olhar está em A parada. Ele captura a vida em movimento, sem que os viventes de cada estação de trem saibam que estão vivos. Belíssimos e pungentes, os perfis se mostram em rostos, braços, pernas e narizes às vezes inquietos com tanta quietude. A fábrica são instantes da produção industrial, a captura de sua rotina. Não há trilha sonora, só o barulho de fornos, ferros cruz ou em brasa. A fábrica, ou o transe da produção.

Na Janela Internacional de Cinema, no Recife, Loznitsa foi o destaque.