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A homenagem de Inácio Arruda a dois gênios da MPB

Leia abaixo o pronunciamento do senador comunista Inácio Arruda (PCdoB-CE) na sessão realizada pelo Senado quinta-feira (16 de dezembro) em homenagem ao centenário de nascimento dos compositores Noel Rosa e Adoniran Barbosa.

Senhor Presidente,
Senhoras Senadoras e Senhores Senadores,

O ano de 2010 assiste ao centenário de nascimento de dois gênios da música popular brasileira: Noel Rosa e Adoniran Barbosa. O Senado Federal, em atenção a Requerimento de minha autoria e do Senador Eduardo Suplicy, houve por bem prestar esta justíssima homenagem a dois grandes ícones de nossa cultura.

Nos dias que correm, o conceito de cultura mais aceito radica-se em preceitos da antropologia cultural, desdobrando-se em uma pluralidade de nuanças e matizes. Relembro uma fina observação do crítico literário e membro da Academia Brasileira de Letras, Alfredo Bosi, abro aspas: “Estamos acostumados a falar em cultura brasileira, assim, no singular, como se existisse uma unidade prévia que aglutinasse todas as manifestações materiais e espirituais do povo brasileiro. Mas é claro que uma tal unidade ou uniformidade parece não existir em sociedade moderna alguma e, menos ainda, em uma sociedade de classes”.

Uma bipartição possível, Senhoras e Senhores Senadores, é aquela que diz respeito à cultura popular e à cultura erudita ou acadêmica. Superar artisticamente essa antinomia é, talvez, a grande característica comum dos talentos superiores das diversas manifestações artísticas. Assim, é esta a marca de um Villa Lobos ou de um Guimarães Rosa, ao fundirem o local e o universal, o popular e o erudito, transitando de um a outro lado e conformando uma obra, ao cabo, mais densa e completa.

Aparentemente, Noel Rosa e Adoniram pouco têm em comum, afora a grandeza de suas obras e a opção pelo gênero musical tipicamente brasileiro: o samba.

Com efeito, Noel provinha de tradicional, embora empobrecida, família carioca. Teve uma educação esmerada: foi alfabetizado em sua própria casa pela mãe, professora. Depois, frequentou um dos mais respeitados colégios do Rio de Janeiro, o São Bento, na Zona Sul da Cidade, chegando a cursar, no ensino superior, dois anos da faculdade de Medicina. Adoniran, pseudônimo de João Rubinato, era filho de modestos imigrantes italianos e simplesmente não teve educação formal.

No colégio Noel era o mais ativo, o mais ousado, o líder. O menos enquadrado na disciplina rígida, religiosa, do ginásio São Bento. O que atormentava os professores, o que editava o próprio jornalzinho manuscrito para rebater as “verdades” de A Alvorada, a revistinha oficial do ginásio. Noel era o único que freqüentava o Mangue muito à vontade, arrastando os outros e levando o Dom Meinrado Mattman, reitor do São Bento, a pedir-lhe suplicante e resignado:
– Já que não pode deixar de pecar, Noel, por que não peca sozinho.

Noel era o que se poderia chamar de um carioca da gema, legítimo representante da boêmia de seu bairro natal, a Vila Isabel, mas também das cercanias do centro da cidade, como a Lapa e o Estácio. Adoniran, apesar de nascido na cidade de Valinhos, na vizinhança de Campinas, é o paulistano de origem italiana, uma figura típica dos bairros de imigrantes como o Brás ou o Bexiga.

Contudo, as aproximações a uni-los são mais poderosas. Musicistas do campo popular conferiram a suas criações uma sofisticada arquitetura artística, sob uma roupagem de aparente simplicidade. Desse produtivo veio popular, fizeram emergir uma sabedoria não-livresca, embora refinada, e uma musicalidade que fala diretamente ao coração das massas.

O professor emérito da Universidade de São Paulo, Antonio Candido, um dois mais importantes intelectuais vivos do Brasil, considera Adoniran Barbosa a verdadeira voz de São Paulo: “Adoniran Barbosa é um grande compositor e poeta popular, expressivo como poucos (…). Já tenho lido que ele usa uma língua misturada de italiano e português. Não concordo. Da mistura, que é o sal da nossa terra, Adoniran colheu a flor e produziu uma obra radicalmente brasileira, em que as melhores cadências do samba e da canção, alimentadas inclusive pelo terreno fértil das Escolas, se alia com naturalidade às deformações normais do português brasileiro, onde Ernesto vira ‘Arnesto’, em cuja casa ‘nós fumo’ e não ‘encontremo’ ninguém, exatamente como por todo esse país”.

Por sua vez, o paulista João Antônio, ele mesmo um contista admirável, autor de obras que retratam o cotidiano das pessoas mais pobres e em condição marginal da sociedade, encantou-se pela obra de Noel Rosa considerando o poeta da Vila Isabel um compositor “desconcertante”. Passo a citar: “Dentro de seu tempo e da própria cultura brasileira, ele é um fenômeno de pioneirismo, talento e capacidade de produção”.

Eis, ainda aqui, Senhoras e Senhores Senadores, mais um ponto de contato entre os nossos homenageados. Noel Rosa viveu uma vida curta, mas intensa sob todos os aspectos. Nascido sob os ecos da Revolta da Chibata, movimento que, sob o comando do formidável João Cândido, agitou o Rio de janeiro naquele ano de 1910, Noel Rosa produziu uma extensa obra, cerca de 228 peças musicais, algumas delas feitas para o nascente cinema nacional. Como os grandes artistas de sua época, esteve muito ligado ao rádio, onde trabalhou no famoso Programa Casé apresentado na Rádio Philipis do Brasil, onde passaram figuras como Carmem Miranda, Orlando Silva, entre tantos outros. O programa ficou sob censura do odioso Departamento de Imprensa e Propaganda, o DIP.

Sobre Adoniran Barbosa, mais de um crítico já escreveu tratar-se de um artista multimídia. Radialista, ator, cantor, humorista, compositor e locutor, emprestava seu talento a diversos campos da produção cultural. Não por acaso, sua primeira participação bem-sucedida no rádio, em concurso de calouros, foi cantando uma preciosidade de Noel Rosa, o samba Filosofia, em que se instituía o profundo hiato entre o “samba vagabundo” e a “aristocracia hipócrita”. Coincidentemente, seu primeiro disco também foi objeto de censura, que excluiu dois sambas, neles identificando componentes subversivos e má utilização do vernáculo. De forma risível, os censores chegaram a sugerir que frequentasse as aulas do Mobral, o Movimento Brasileiro pela Alfabetização.

Aqui, senhoras e senhores, cabe destacar a opinião do poeta Manuel Bandeira, que inclusive, fez letra para as “Bachianas nº 5” de Villa Lobos. Em sua “Evocação do Recife” faz um elogio a língua do povo, tão incômoda às elites .

Eis as suas palavras:
“ A vida não me chegava nem pelos jornais , nem pelos livros;
vinha da boca do povo, na língua errada do povo;
língua certa do povo
Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil.”

Em artigo publicado no Portal Vermelho, Umberto Martins afirmou “O poeta da Vila Isabel conhecia como poucos o ser humano e o seu próprio tempo. Prezava a boemia, amava o samba e apostava na força, originalidade e beleza da cultura nacional e popular. No samba intitulado “Não tem tradução”, ele critica com bom humor e lucidez a influência bizarra das potências coloniais e neocoloniais nos hábitos cariocas, que se insinuava então através do cinema. Na música, Noel revela convicção na força do samba para combater tais tendências e defender a cultura genuinamente brasileira.”

A crença na superioridade do samba e da cultura nacional sobre os novos hábitos é traduzida em vários versos: “Lá no morro, se eu fizer uma falseta a Risoleta desiste logo do francês e do inglês. A gíria que o nosso morro criou, bem cedo a cidade aceitou e usou”. O samba, diz Noel, “não tem tradução no idioma francês”, pois “tudo aquilo que o malandro pronuncia com voz macia é brasileiro, já passou de português. Amor lá no morro é amor pra chuchu. As rimas do samba não são I love you. E este negócio de alô, alô boy e alô Johnny, só pode ser conversa de telefone..”

Líricos, satíricos, criativos, cronistas de seu tempo e de suas respectivas cidades, Noel Rosa e Adoniran Barbosa alcançaram grande popularidade. Os tempos eram outros, e nenhum deles recebeu em pecúnia o merecido valor de suas composições, vivendo sob intensa dificuldade financeira.

No começo de 1934 teve início a famosa polêmica musical, curta mais muito comentada envolvendo os compositores Noël Rosa e Wilson Batista. Este último compôs “Lenço no Pescoço”. Noel rebateu com “Rapaz Folgado”. Em resposta, Wilson compôs “Mocinho da Vila”. Ainda no mesmo ano, no período da primavera, Noel compôs “Feitiço da Vila”, uma homenagem para a rainha primaveril de Vila Isabel, Lela Casatle. Samba que colocou Noel em evidência, uma vez que o Brasil inteiro cantou a composição. A polêmica deu uma trégua e reacendeu no ano seguinte. O sucesso do “Filósofo do Samba” incomodou Wilson Batista, que gravou “Conversa Fiada”. Noel reagiu com “Palpite Infeliz”. Wilson respondeu com dois novos sambas: “Frankstein da Vila” e “Terra de Cego”.

Noel cantou o seu bairro natal na música Feitiço da Vila, que gerou a dita lendária polêmica com Wilson Batista. O rival ironizou Feitiço da Vila na música Conversa Fiada ("é conversa fiada, dizerem que o samba na Vila tem feitiço, eu fui ver pra crer, e não vi nada disso"). Noel devolveu com a obra-prima Palpite Infeliz. "A Vila é uma cidade independente, que tira samba, mas não quer tirar patente, pra que ligar a quem não sabe, aonde tem o seu nariz, quem é você que não sabe o que diz?"

A genialidade de Noel Rosa pode ser conferida em Conversa de Botequim, uma de suas músicas mais conhecidas, impressiona pela descrição cinematográfica de uma cena corriqueira: o cliente folgado na mesa de bar.

"Seu garçom faça o favor de me trazer depressa,
Uma boa média que não seja requentada,
um pão bem quente com manteiga a beça,
um guardanapo, e um copo d'água bem gelada…
Feche a porta da direita com muito cuidado
Que eu não estou disposto a ficar exposto ao sol
Vá perguntar ao seu freguês do lado
Qual foi o resultado do futebol.”

Em 2010 o compositor Martinho da Vila nos brindou com o Samba Enredo – Noel a Presença do “Poeta da Vila” do Grêmio Recreativo Escola de Samba Unidos da Vila Isabel. O samba enredo da escola dizia:
Veio ao planeta com os auspícios de um cometa
Naquele ano da Revolta da Chibata
A sua vida foi de notas musicais
Seus lindos sambas animavam carnavais
Brincava em blocos com boêmios e mulatas
Subia morros sem preconceitos sociais

Em entrevista recente o repórter perguntou a Martinho da Vila: Se o senhor tivesse a oportunidade de encontrar Noel Rosa num bar, o que falaria para ele? Martinho respondeu – Falaria: "Noel, rapaz, não sei como você pode ter sido tão grande". Ele falaria: "Não, Martinho, você também fez uma porção de música". Não estou falando de música. Estou falando da sua postura. Ele foi muito importante na luta contra os preconceitos sem falar nas suas músicas e sem fazer discurso. Só com sua postura. O samba era discriminado terrivelmente, e ele cantava samba. Ele fez parceria com o pessoal do morro, como Ismael Silva e Cartola, que eram considerados vagabundos e eram negros. Noel lutou contra o preconceito social e racial ao mesmo tempo. Eu falaria: "Noel, como é que você pode? Não dava para você ter essa consciência toda ao mesmo tempo, você tão novinho? Hoje eu até faço isso, mas estou com 70 e tal…". Eu também perguntaria: "Noel, como é que você pode construir toda a sua obra em tão pouco tempo?". Ele fez toda a sua obra em sete anos. Se ele vivesse mais uns dez, não sobrava samba para nenhum de nós.

Doente e enfraquecido pela tuberculose, a má-alimentação e os crônicos problemas ortodônticos, Noel Rosa faleceu em 1937, aos 26 anos e cinco meses de idade. De acordo com o cartunista Nássara, contemporâneo de Noel, o enterro atraiu pessoas de todos os cantos, em verdadeira comoção. A cidade parecia vestir luto não oficial, pois o grande Orestes Barbosa, autor do clássico Chão de estrelas, tinha razão ao dizer: “— Morreu o maior poeta popular do Brasil!”

Pouco depois da morte de Noel, Cartola fez para o amigo um tocante samba que diz:
“Era o rei da filosofia
Fez da musa o que queria
Zombou da inspiração”

De fato, Noel foi o mais importante compositor do período compreendido entre a segunda metade dos anos 1920 e a primeira metade dos anos 1930. Sua originalidade nos temas e ritmos de suas canções representam um marco na história da música brasileira.

Adoniran Barbosa, por sua vez, retratou musicalmente o cotidiano do povo paulistano , expressando em um ritmo próprio, cenas muitas vezes prosaicas, como a descrita na canção “Um Samba no Bixiga”. Adoniran veio a falecer em 1982, aos 72 anos. Calava-se ali “a voz de São Paulo”, o homem que testemunhou e cantou a emergência de uma cidade cosmopolita e moderna, mas injusta e desigual.

O grande artista é aquele que compõe uma obra que atinge a permanência. As figuras humanas de Noel e Adoniran se foram, mas ninguém há de esquecer, a cada vez que uma voz entoa seus respectivos estribilhos, o Último desejo, canção de Noel sobre um frustrado amor nascido numa festa de São João, ou o clássico de Adoniran, Trem das onze, aquele que parte rumo a Jaçanã.

Ao homenagearmos Noel Rosa e Adoniran Barbosa lembremos também de Francisco Alves, Vadico, Ismael Silva, Cartola, o Bando dos Tangarás, Aracy de Almeida, Marília Batista, Custódio Mesquita, Orestes Barbosa, Pixinguinha, Ary Barroso, Lamartine Barbo, Mário Reis, Carmem Miranda, Almirante, Nonô, Luis Barbosa, Di Cavalcante, Heitor Villa-Lobos, Olegário Mariano, Zé Pretinho, Kid Poppe, Madame Satã, Germano Augusto, Vila Isabel, a Lapa, o Mangue, o Estácio, a Penha, Mangueira, O Bexiga, O Braz, Chico Buarque, Paulinho da Viola, Martinho da Vila, Toquinho, Paulo Vanzolini, Leci Brandão, Mário Lago e tantos outros que cantaram, cantam e encantam o Brasil.

Senhoras e Senhores Senadores, vida longa aos poetas e aos artistas deste nosso Brasil que cantam a vida e falam a língua de nosso povo! Viva Noel! Viva Adoniran
Era o que tinha a dizer.

Muito obrigado!