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Revista Mouro homenageia militância comunista de Zillah Branco

O quarto número da Revista Marxista Mouro – que deverá ser lançada nas próximas semanas – traz um tributo às mulheres marxistas e à eleição da presidente Dilma Rousseff. Entre as homenageadas está a socióloga, consultora do Cebrapaz e colunista do Vermelho, Zillah Branco.

A revista é produzida pelo Núcleo de Estudos d’O Capital, formado por um grupo de professores e alunos do curso de História da USP, entre eles o professor Lincoln Secco, responsável pela cadeira. Para Zillah, a homenagem é um “reconhecimento do valor da militância marxista”.

A próxima edição da revista será composta exclusivamente por artigos de mulheres convidadas. O texto produzido pela socióloga comunista é autobiográfico, e trata sobre a educação militante. “É uma síntese apertada do caminho militante que segui na vida”, afirma.

Leia abaixo a íntegra do texto de Zillah Branco.

Educação militante

É difícil saber a origem da formação do militante de esquerda. Os estudos teóricos quase sempre vêm depois de uma formação cultural pontuada por princípios éticos e conceitos filosóficos adquiridos ainda na infância por meio de exemplos familiares ou referências históricas que marcaram os sentimentos de solidariedade humana e respeito pela vida, cultivados familiarmente.

Tive a ventura de nascer em uma época em que todos os fatos políticos promoviam o despertar dos povos para a necessidade de defender a dignidade humana, a independência nacional e a solidariedade internacional.

A geração anterior à minha vivera os efeitos da 1ª Grande Guerra, conhecera os movimentos operários que da Europa irradiaram para os Estados Unidos e América Latina, a Revolução Russa e a criação da União Soviética, as lutas pelo sufrágio universal, pela redução do horário de trabalho, pelos direitos das mulheres e das crianças. Também conheceram as origens do fascismo e nazismo que no seu início confundiram-se com aspectos nacionalistas e de social-democracia para, no curso dos confrontos políticos, ir definindo a identidade ideológica com as elites exploradoras que dirigiam o mundo.

Minha família, de classe média na sua juventude, dividia-se em duas tendências: a do enriquecimento pessoal e mudança de status social; e, outra, a da formação profissional e cultural voltadas para a participação no desenvolvimento da sociedade. Grosso modo, um lado à direita, sob orientação católica, de outro à esquerda sob influência do positivismo francês e dos conceitos libertários que germinaram na sociedade brasileira a partir das lutas contra a escravidão, contra o domínio estrangeiro, o dogmatismo religioso, a supremacia oligárquica, os privilégios de classe.
No primeiro quartel do século XX esta diferença marcou dois tipos diferentes e conflitantes de consciência de classe: o da alta burguesia com todos os seus preconceitos e privilégios, e o da baixa classe média voltada para a realidade em que sobrevivia o proletariado e se misturavam às diferentes origens imigrantes.

Meus avos tiveram o mérito de manter a unidade de toda a família que se reunia nas festas tradicionais quando, por acordo tácito, não se tocava em temas divergentes. Este esforço permitiu que as amizades se mantivessem sob a imagem desvanecida humanista unificadora e de uma moral cívica traduzida em honestidade, generosidade e compreensão individual. De fato foram os profundos laços afetivos iniciados quando todos, ainda jovens e no início da vida adulta, viviam a mesma realidade social que cimentou as amizades apesar das divergências ideológicas que os conduziram depois por caminhos diferentes.

Quando um de meus tios (Catullo Branco) foi candidato a deputado comunista à Assembléia Estadual de São Paulo em 1947, minha avó católica, que tinha filhos conservadores e até militantes integralistas, pediu licença ao seu confessor para votar pela eleição do genro comunista. Com o passar dos tempos, apesar da família manter sempre relações de amizade, em 1964 com o advento da ditadura militar, verificou-se um acirramento nas posições dessa ala mais conservadora com a produção de vários membros do CCC (comando de caça aos comunistas) que usavam armas ostensivas na presença de parentes comunistas. A clandestinidade foi necessária e o distanciamento inevitável.

Formação marxista

Disse Samora Machel (primeiro Presidente da República Popular de Moçambique) a um jornalista português que lhe perguntou “quando estudou pela primeira vez o pensamento de Marx ?”. Respondeu sem delongas: “quando estudei já foi na segunda vez”.

A minha formação científica, assim como a da maioria dos militantes que conheci, veio depois de estar imbuida pela prática militante marxista e leninista junto a membros do PCB. As emoções deram início à dedicação a um ideal para depois, enfrentadas as questões práticas da realidade, poderem ser buscadas as explicações científicas que a história oferecia ou a fundamentação dos princípios nas crenças religiosas.

Desde os 11 anos de idade, quando aprendi a fazer cola de farinha para pregar os cartazes dos candidatos comunistas nos postes e paredes pelas ruas, acompanhei várias atividades militantes através das quais ia conhecendo a realidade social e política. Durou pouco mais de um ano a fase de legalidade do PCB. Depois a militância tornou-se mais arriscada, mas nunca cessou, envolvida pelos graves problemas sociais que não podiam deixar de ser manifestados por organizações de massas e cidadãos conscientes. Era uma escola permanente.

Esta formação empírica, a partir das condições culturais e da vivência direta dos problemas humanos na sociedade mais pobre, propicia a conjugação das emoções com a razão que vai amadurecer com as leituras e debates ao longo da vida. Se, por um lado, introduz juízos ideais de valor que só serão objetivados com a reflexão teórica, resiste às pressões sectárias e dogmáticas sem fundamento racional e à tendência que a condição elitista de formação conduz ao paternalismo que mascara a solidariedade e transforma-a em instrumento de exploração.

A realidade dos povos clarifica a ideologia

Depois do final da Segunda Guerra a ação imperialista expandiu o anti-comunismo por todo o mundo. Isto pesou culturalmente nas populações que temiam ou odiavam os comunistas demonizados pelos meios de comunicação social, igrejas, escolas e todos os que se submetiam à propaganda das elites obedientes ao que o império norte-americano determinava. As campanhas foram levadas ao extremo como veículo de combate à URSS que se tornava uma potência mundial e apoiava todos os movimentos e organizações revolucionárias.

Graças à emigração de trabalhadores italianos e espanhóis com experiência em lutas políticas e sindicais nos seus países, o anarco-sindicalismo foi um fator importante na formação ideológica da sociedade brasileira, contribuindo para a formação do Partido Comunista e movimentos de idéias de esquerda. Foi o embasamento do pensamento de esquerda no Brasil.

Também dos Estados Unidos chegava uma literatura sobre a história social que refletia o idealismo dos autores, herdeiros dos princípios da luta pela Independência e formação de instituições para um Estado democrático. Ao longo do século XIX e início do XX enfrentaram dificuldades impostas pela Inglaterra e França que ainda disputavam o domínio do território norte-americano e impunham a sua estratégia de colonização econômica e política pela via do poder econômico europeu, da força militar e do transporte marítimo. Desde que as crises do sistema capitalista começaram a alterar os passos da sociedade independente norte-americana, acentuaram-se as lutas internas, reveladas por importante literatura e textos jurídicos que abriam espaço para a ideologia socialista crescente na Europa com Marx e Engels, e todos os intelectuais com projetos diferentes para uma Revolução. Em 1917 eclodiu na Rússia, sob a liderança de Lênin e os bolcheviques. Entretanto se desenvolvia, naquela sociedade industrializada dos Estados Unidos, em núcleos de poder favorecidos pelos países ricos da Europa, as sementes do imperialismo que substituiu o sistema colonialista centralizando o poder militar, de transportes e financeiro mundial para expandir o domínio sobre as áreas subdesenvolvidas do globo.

No Brasil, ao mesmo tempo em que tomávamos conhecimento do combate ideológico que os livros norte-americanos (e bons grandes filmes) revelavam, sentíamos a pressão do imperialismo tentando manter a nossa economia subdesenvolvida. As denúncias contra a ocultação feita por empresas e técnicos vindos dos EU e do Canadá sobre as potencialidades de desenvolvimento brasileiro, da produção de petróleo e construção de hidro-elétricas, deram origem à literatura nacionalista no Brasil e à campanha do “Petróleo é Nosso” que representou importante dinamização de movimentos de massas de esquerda.

Quando fiz o curso de Ciências Sociais na USP, pretendia aprofundar o conhecimento da realidade social. Retardei a formatura por problemas familiares a partir do segundo ano de Faculdade. Ao conseguir obter o diploma, a minha turma escolheu para nosso paraninfo Celso Furtado que havia se destacado no governo de João Goulart. A festa e a própria vida brasileira foi frustrada pelo golpe militar de 1964. As tarefas do “socorro vermelho” ganharam prioridade à frente da construção de uma carreira profissional e pessoal para quem já tinha a formação militante.

Experiência chilena

Depois de cinco anos militando clandestinamente e arriscando os empregos que eu conseguia ter, tornou-se aconselhável sair do Brasil com meus filhos. Fui para o Chile onde havia um governo democrata-cristão que permitia alguma liberdade a vários brasileiros exilados. Seis meses depois de chegar, fomos premiados com a eleição de Allende. A sensação de liberdade abriu-nos a vida, e a militância tornou-se possível mesmo para uma estrangeira, pelo engajamento com a Unidade Popular.

Foi no trabalho organizado pela FAO, de apoio à reforma agrária na empresa governamental ICIRA (Instituto de Capacitación e Investigación de Reforma Agrária), em Santiago, que encontrei o meu verdadeiro amadurecimento no conhecimento da realidade social. Distanciei-me da vida acadêmica e mergulhei na vida campesina chilena com toda a complexidade que integrava a história dos índios mapuches como fundamento cultural. Na organização promovida pela FAO, com os conceitos cooperativos adequados ao sistema capitalista e ao pensamento democrata-cristão implantado pelo governo Frei, fora orientado o projeto de reforma agrária no Chile. Junto aos companheiros da UP (Unidad Popular, criada por Allende, encontrei estudiosos do marxismo com quem podia dialogar e procurar fundamentação teórica para os temas que dinamizavam o processo de transformação social e política naquela revolucionária fase da história chilena.

Eu falava mal o castelhano, o que me aproximava dos indígenas que misturavam o seu idioma ao que era usado no Chile. Algumas vezes os camponeses indígenas me pediam para “traduzir” o que os técnicos chilenos diziam. Quando começou a haver dificuldades entre os técnicos chilenos, representantes do governo e os indígenas que preferiam a orientação radical do MIR (Movimiento de Isquierda Revolucionária), por várias vezes fui chamada pelos indígenas para servir de mediadora. Senti-me adotada pelos mapuches que sempre me trataram com respeito e amizade deixando perceber que eu, apesar de branca (huinca como os colonizadores) não tinha qualquer responsabilidade pelos séculos de colonização agressiva.

Aprendi muito no convívio com uma cultura desconhecida para mim, onde os laços de identidade se davam no contexto de luta pelos direitos de cidadania e de trabalho. A militância social brasileira era o melhor passaporte para o aprendizado daquela realidade em que eu era estrangeira, tal como os indígenas também eram tratados no seu país.

Freqüentando as aldeias mapuches percebi a clareza do seu raciocínio político. Os indígenas recomendavam, quanto à linguagem utilizada pelos técnicos, que não se usasse o termo “expropriação das terras do latifúndio”, mas sim “apropriação do que fora roubado aos mapuches”. Faziam perguntas sobre a orientação do governo Allende e procuravam entender comparando com as lutas tradicionais centenárias dos índios. Guardavam nas suas “rucas” (casas mapuches) uma documentação antiga sobre as terras indígenas que lhes garantia a propriedade, roubada nos trezentos anos de colonização.

Trabalhando pelo projeto da FAO em contacto direto com os camponeses pobres do Chile fui percebendo as contradições subtis entre a mensagem acadêmica, que continha uma visão elitista e paternalista, em contraste com o raciocínio claro dos trabalhadores quando respeitadas as condições sociais e culturais em que foram formados e viviam. Eu tinha sempre a preocupação de “traduzir” a linguagem acadêmica para a que era habitual entre eles, inclusive criando recursos pedagógicos mais adequados que as abstrações intelectuais.

Assim aconteceu quando fui dar um curso de história para camponeses de uma localidade no interior de Temuco com a proposta de formar os “Consejos Comunales” onde estariam os trabalhadores sem terra ao lado dos camponeses. Li bastante e me muni de mapas regionais e gráficos com dados estatísticos. Ao iniciar a exposição sobre a história “deles” abri o mapa para situar a história naquela região e me dei conta de que eu estava “falando grego” e mostrando um quadro de rabiscos ininteligíveis para expor o que eles não sabiam que sentiam mais do que eu.

Interrompi para tomarmos um chá por causa do frio, conversamos descontraidamente e comecei novamente com o mapa virado de costas para que eles desenhassem os pontos principais da região e passei a perguntar como era a história dos latifúndios, dos trabalhadores, dos pequenos agricultores, quem distribuía a água etc. Discutiam, entre si, traçando caminhos, fontes de água, obstáculos naturais, terras boas e más, casas grandes, casinhas camponesas e “rucas mapuches”. Com entusiasmo foram contando a história das relações sociais, os sofrimentos, as formas de exploração, o uso da força com a ajuda da igreja e da repressão policial.

Abri um gráfico de barras para indicar a população dividida em classes e as terras de cada. Ficaram quietos e desinteressados. Redesenhei os gráficos em forma de “queijos”, como os que produziam, e eles indicaram o tamanho das fatias que, elas sim, indicavam a dimensão social e do poder.

Além da possibilidade de exercer a militância junto ao trabalho profissional, a sociedade chilena estimula a participação social de toda a população. É um povo sofrido devido aos muitos terremotos e vulcões ocasionando catástrofes que promovem a solidariedade entre todos. Soma-se a isto a dura realidade de exploração sócio econômica imposta às camadas mais pobres da população, principalmente mineiros, e ao empobrecimento da classe média apesar do acesso a um sistema de ensino bem organizado.

A volta ao país fechado

O golpe militar no Chile foi o segundo que senti contra o “meu” povo, agora chileno e mapuche. O retorno ao Brasil, ainda sob a ditadura, depois de quatro anos, deu-me a sensação de exílio, principalmente pelas mudanças de comportamento político ocorrido entre parentes e antigos amigos. A vivência de uma realidade em processo revolucionário alterara também a minha capacidade de adaptação a uma camada social que se mantinha alienada para poder conviver com a pressão política e policial, o que a conduzia insensivelmente a uma posição conservadora e preconceituosa – sobretudo expressamente anti-comunista. O afeto que sempre nos unira fora amordaçado transformando-se em angústia e dor.

Ao ouvirmos pela rádio a notícia da Revolução dos Cravos na manhã do dia 25 de Abril de 1974, meus filhos pediram que fossemos para Portugal. A formação militante deles havia sido iniciada no Chile de Allende onde a participação social ocorria promovida pela escola pública, os Centros de Madres e as associações de moradores. Eles também se sentiam exilados em um ambiente social que lhes parecia terrivelmente agressivo pelas ameaças policiais e, também, pela exibição de riquezas individuais como forma de competição infantil.

Nova experiência de viver em liberdade

Em Lisboa percebi a profunda diferença cultural existente entre latino-americanos e europeus, com histórias opostas em muitos aspectos, preconceitos subtis e uma estrutura social rígida com poderosa carga preconceituosa. Ingressei no Partido Comunista Português, onde a formação ideológica dos militantes era uma ponte para a necessária identidade pessoal e familiar, necessária para vencer a condição de estrangeiro que isola. Ali conheci militantes exemplares que combinavam uma profunda formação teórica marxista com uma preocupação humanista permanente, originada na vida clandestina junto às camadas mais pobres da população portuguesa ao longo de dezenas de anos.

Mergulhei nos trabalhos de apoio à reforma agrária que, organizados pelos comunistas portugueses que atuaram clandestinamente nas regiões do Alentejo e Ribatejo durante 40 anos de ditadura de Salazar, não sofria as contradições do projeto FAO. A questão rural fora profundamente estudada por Álvaro Cunhal, Secretário Geral do PCP e pelo engenheiro agrônomo Júlio Martins, nos tempos em que ficaram presos, e estavam já editados os livros que serviam de orientação em 1974. Foram formadaa UCPs – Unidades Coletivas de Produção – que permaneciam como propriedade nacional gerida por uma assembléia de trabalhadores eleita, ao contrário das cooperativas que atribuíam a propriedade aos trabalhadores.

Foi criada uma organização de apoio voluntário – CRARA (Comissão revolucionária de apoio à reforma agrária) – que reunia recursos de financiamento, apoio profissional e de organização, e promovia visitas regulares de trabalhadores voluntários, de grupos médicos e de alfabetizadores para assegurar os recursos necessários até que as UCPs constituídas pudessem ser apoiadas técnica e profissionalmente pelo Estado. A CRARA dinamizava, através de meios de comunicação voluntários, a informação nacional e européia no meio urbano sobre a situação da reforma agrária que, do Alentejo expandiu-se como força política nacional ligando-se aos pequenos agricultores de todo o país. Em apoio à CNA (Confederação Nacional de Agricultura) e ao MARN (Movimento de agricultores e rendeiros do Norte) defendendo leis que assegurassem o desenvolvimento daquelas formas de produção agrícola nas zonas de minifúndio, foi possível ultrapassar as diferenças existentes entre proletários e camponeses que eram acirradas pela propaganda anticomunista .

Os trabalhos de militância em prol da reforma agrária eram realizados em várias frentes: nos Ministérios, com a preparação de legislação específica e promoção de encontros entre os trabalhadores e organismos governamentais; com a redação de artigos para ampla divulgação dos programas de trabalho e captação de investimentos e formas de apoio voluntário para a sua realização; em contatos internacionais com universidades e associações solidárias (França, Bélgica, Holanda, países socialistas); no apoio a produção de filmes e documentários nacionais e internacionais (por exemplo da Thames Television de Londres) e trabalhos universitários na Holanda; junto ao movimento sindical para integração dos sindicatos agrícolas a nível nacional e internacional; com a promoção de estudos jurídicos referentes à produção e comercialização agrícolas e à organização social do setor rural.

A reforma agrária, pelo seu êxito na produção (UCPs receberam prêmios de produção e produtividade e a OCDE destacou a sua importância na Europa) e por constituir um exemplo da luta revolucionária dos trabalhadores que atraia a solidariedade de vários setores urbanos da sociedade portuguesa e de outros países, despertou o antagonismo dos social-democratas monitorados pelo imperialismo (Kissinger, Secretário de Estado dos E.U. e o embaixador Carlucci, alto funcionário da CIA) e pela Internacional Socialista.

O PS, liderado por Mario Soares, trabalhou pela derrubada do Coronel Vasco Gonçalves, que ocupou o cargo de Primeiro Ministro nos primeiros meses da Revolução dos Cravos dando inicio a um vasto programa de nacionalizações e intervenções para impedir a reação terrorista dos opositores à transformação democrática de Portugal. Eleito Mário Soares, os dirigentes socialistas se somaram aos defensores do sistema capitalista e latifundiário, levantando obstáculos a todos os caminhos para o prosseguimento da reforma agrária e das nacionalizações. Começou por propor que fossem criadas cooperativas de propriedade dos trabalhadores, sem definir as responsabilidades e direitos do Estado. Assim introduziu a ambição individual pela apropriação da terra minando a unidade em torno do trabalho e da produção e do próprio Estado. As UCPs foram destruídas, as terras devolvidas aos antigos agrários, houve conflitos policiais, prisões e mortes.

Restaram na sociedade portuguesa os efeitos políticos e sociais que levaram para as pequenas cidades das regiões agrícolas as iniciativas de transformação da vida rural através das Câmaras Municipais. A militância prosseguiu no apoio ao Poder Local que foi dinamizado para a construção de infra-estruturas econômicas e sociais, desenvolvendo as áreas urbanas do Alentejo e Ribatejo.

O PCP promoveu debates abertos sobre cada setor de atividade econômica e social, durante o período em que a Revolução dos Cravos manteve a sua dinâmica. Eram momentos de balanço e reflexão marxista sobre a realidade do país. Os militantes tinham oportunidade de aprofundar o seu conhecimento empírico confrontado com os textos teóricos e a opinião de destacados profissionais de várias tendências políticas.

O registro da evolução do processo revolucionário em cada área consta da documentação partidária, das conclusões de reuniões específicas para balanço da situação, de textos divulgados em artigos e palestras. Dificilmente eram produzidos livros com análises históricas no momento em que ocorriam as lutas sociais, devido à necessidade de serem preservadas algumas decisões políticas em curso. O relato histórico em cada caso só seria possível com distanciamento em relação à dinâmica do processo. Esta carência de documentação organizada para divulgação permitiu que predominassem as opiniões sociais-democratas ou de direita que escreveram com a visão que lhes era conveniente e possível, sem a integração profunda com a realidade vivida pelo povo que foi o verdadeiro autor do processo revolucionário.

O domínio social-democrata na Europa

A Revolução dos Cravos existiu na sua plena pujança durante o Governo dirigido pelo Cel. Vasco Gonçalves. O povo participante conseguiu manter as UCPs produtivas, e uma intensa defesa das que foram sendo devolvidas aos antigos proprietários, por mais sete anos. As intervenções de trabalhadores nas empresas em processo de nacionalização foram repelidas pelo Governo PS que se aliou aos “senhores de antigamente”, como se dizia. Todo o processo revolucionário foi minado de cima para baixo e, apesar da forte organização popular liderada pelo PCP e a Intersindical Nacional, ao longo de vários anos tornou-se dominante uma cultura de medo alimentada pelas ficções terroristas que a midia passou a divulgar sobre o “perigo comunista”.

Fui a Cabo Verde com um projeto de formação de agentes de participação popular a ser coordenado pelo PAIGC – partido africano pela independência da Guiné e Cabo Verde – que estava no Governo.

Ali trabalhei durante dois anos com total apoio dos camaradas caboverdeanos, organizando cursos para funcionários públicos, elementos de várias associações de solidariedade, sindicalistas, representantes das Forças Armadas e dirigentes partidários. Vivia-se no país o rescaldo da luta revolucionária dirigida por Amilcar Cabral que fora vitoriosa contra o colonialismo português no território da Guiné Bissau. À luz da independência conquistada o Governo de Cabo Verde reconstruia a administração nacional através de um trabalho militante aprofundado que unia as características de associação popular tradicionais, de origem tribal, às formas de organização administrativa moderna. Destavam-se as Comissões de Moradores, os Tribunais Populares, a Milícia Popular.

Cada módulo do curso suscitava o esclarecimento sobre a realidade nacional apresentado pelos alunos. Desse conhecimento foram produzidos artigos publicados pela imprensa local, que serviam de incentivo aos debates nas reuniões partidárias algumas vezes conduzidas por ministros e quadros superiores da administração governamental. No segundo ano de trabalho começou-se a sentir a presença da social-democracia que se infiltrava através de quadros técnicos ligados à cooperação internacional. Viviamos o final da década de 1980 quando era patente a implosão da URSS com todas as consequências articuladas pelo imperialismo norte-americano, agora estreitamente ligado à CEE – Comissão de Estados Europeus – que deu origem à União Europeia.

As dificuldades cresciam, em Cabo Verde, para que os agentes de participação pudessem realizar os trabalhos finais que haviam sido definidos por eles no curso. Sem condições para terminar o trabalho reuni o que foi realizado na zona urbana de Santiago e tive a surpresa comovedora de receber da zona rural – justamente onde os agentes não falavam o português, mas sim o crioulo, e muitos eram analfabetos – um quadro síntese de todo o levantamento das condições de vida nas aldeias, apontando as necessidades de infra-estrutura, escolas, postos de saúde, recursos para lazer. O responsável do PAIGC explicou que, enquanto a população aplicava o questionário elaborado em conjunto no curso, sempre com a ajuda dos adolescentes que já eram alfabetizados, cresceu o número de participantes nas reuniões partidárias onde as questões passaram a ser tratadas com maior atenção a fim de ser estabelecida uma escala de prioridade para iniciar as construções ligando o apoio do Governo com a prática de “djuntamon” (mutirão) tribal.

Fim do socialismo na Europa, abalo mundial

Foi um tempo depressivo, de forte sentimento de orfandade política. Em Portugal foram os velhos militantes do PCP que alertaram os mais jovens de que a história tem altos e baixos, mas recupera o rumo por efeito do trabalho militante permanente. Era necessário estudar novos métodos de trabalho, corrigir erros e dependências de uma situação favorável de luta, agora abalada.

Voltei ao Brasil e tentei reencontrar as minhas origens para reconstruir a vida. Os velhos camaradas e amigos haviam desaparecido com idade avançada. Os mais jovens haviam seguido, na sua maioria, caminhos divergentes do que haviamos iniciado juntos. Um antigo professor, amigo e ex-camarada comunista fora eleito Presidente do Brasil (FHC). O seu governo liderava o neo-liberalismo que tentava afogar as lutas contra a ditadura militar e o imperialismo. A sociedade brasileira encontrava-se dominada por pensamentos místicos e por uma linguagem metafísica que impedia qualquer conversa sobre a realidade que eu conhecera 25 anos antes nos países em que vivi. Fiz uma reciclagem para atualizar a capacidade de comunicação que já me faltava.

A eleição de Lula em 2002 foi uma entrada de oxigênio na masmorra. A esquerda brasileira emergiu das cinzas onde ficaram muitas brasas durante os anos negros da ditadura e os dúbios do neoliberalismo fortemente aliado à social-democracia europeia, em especial a de Portugal. Mantive o alento militante escrevendo para o ”Avante”, jornal do PCP, e no Portal Vermelho do PCdoB.

Levei à discussão as propostas de desenvolvimento nacional que o Governo Lula defendia e que, a meu ver, permitia uma importante, ainda que lenta caminhada revolucionária. Acenderam-se os debates com alguns camaradas portugueses que condenavam o “reformismo burguês” e não vêm as perigosas alianças que fazemos como acidentes de percurso. Foi uma grande escola este debate que eu continuei a defender conhecendo a realidade dos trabalhos incansáveis da sociedade brasileira que consegue vencer o neoliberalismo e manter na América Latina o exemplo da dignidade nacional e da solidariedade com todos os povos em luta.

Sou otimista e a esperança de que o Estado se torne democrático há de me animar sempre. Acredito no valor do ser humano desde que não lhe seja imposto um sistema de vida e de pensamento oportunista, cruel e egoísta.

Encontrei condições para engajar a militância que faz parte essencial da minha vida. E, aos poucos, fui podendo reconstruir a existência com novos amigos e camaradas de outros partidos que representam hoje a extensão da minha verdadeira família.

E, a luta continua!

Zillah Branco