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Reverências de um império decadente para uma potência em ascensão

Comenta-se que Barack Obama concedeu ao presidente da China, Hu Jintao, em Washington um tratamento privilegiado, que não foi observado no governo de seu antecessor, o republicano George Bush.

Por Umberto Martins

O fato, percebido em gestos como o jantar de gala na Casa Branca, é interpretado como um reconhecimento pragmático (pelos EUA) da irresistível ascensão da China, que ficou mais evidente e ganhou novo impulso no curso da crise mundial do capitalismo deflagrada pela recessão nos EUA em dezembro de 2007, que promete novos desdobramentos.

A secretária de Estado, Hillary Clinton, também se referiu à “responsabilidade especial” das duas potências “por sermos a primeira e a segunda maiores economias", durante entrevista à TV chinesa sobre Coreia do Norte.

Contradições

Mas é ilusão pensar que a visita do presidente chinês resolveu as contradições entre China e EUA e que doravante avançaremos com celeridade no rumo de uma ordem internacional efetivamente multilateral, mais justa, equilibrada e pacífica, em que nossa pátria amada ocupará honrosa posição.

As referências aos temas que compõem o extenso e crescente contencioso entre as duas maiores potências econômicas do mundo (Coreia do Norte, Irã, Taiwan, política cambial e “direitos humanos”, entre outros), feitas principalmente por autoridades americanas, indicam que os fatores que estimulam conflitos entre as duas nações não são desprezíveis.

Embora as divergências tenham aflorado, é certo que predominou a impressão de unidade na pomposa reunião entre os presidentes e transpareceu, em grande estilo, a simbiose dos interesses mútuos, obscurecendo a dialética. As gentilezas dos EUA para com a China são compreensíveis e também sugestivas.

Interdependência

A chamada globalização, obediente à sorridente ironia da história, fez florescer entre os dois países ao longo dos últimos anos uma forte interdependência econômica, que para os EUA se manifesta numa crescente dependência do capital chinês para financiar os escandalosos déficits (público e em conta corrente) do império. A lógica objetiva da acumulação de capital nos marcos do desenvolvimento desigual das nações promoveu um estreito entrelaçamento das duas economias.

A dependência teve origem nas relações industriais, ou mais precisamente no fornecimento, pela competitiva indústria chinesa, de mercadorias mais baratas aos ávidos consumidores norte-americanos. O apetitoso mercado americano foi, e ainda é, a via principal de realização do capital de boa parte das empresas sediadas na China, incluindo multinacionais dos EUA.

As relações comerciais, estimuladas pelo parasitismo de Tio Sam, geraram um persistente déficit para a indústria estadunidense e um crescente superávit em dólares para a China. Com isto, a dependência industrial e comercial contaminou o ramo financeiro, com os EUA comprando fiado e precisando do dinheiro alheio para financiar o consumismo excessivo.

Simbiose e parasitismo

Isto se fazia até ontem com a China investindo parte do seu saldo comercial e em conta corrente, obtido nas transações com os EUA, em títulos públicos e outros ativos norte-americanos. Mas este mecanismo, que chegou a ser interpretado como uma simbiose perfeita e perene entre as duas potências tempos atrás, gera notórias tensões comerciais, refletidas no conflito em torno da política cambial, que Obama (referindo-se à China) chegou a classificar de irritante na última reunião do G20.

A crise piorou as coisas, pois elevou o desemprego a quase 10% da população economicamente ativa, derrubou o consumo e indicou que o padrão vigente de financiamento do passivo decorrente do déficit comercial não é sustentável. Ao recorrer às emissões de dólares, que fluem para o mundo provocando inflação, as autoridades estadunidenses também se esforçam para resgatar a competitividade de sua decadente indústria, ampliando as exportações e reduzindo o hiato comercial.

Contratos bilionários

A dependência de recursos externos para cobrir a necessidade de financiamento do balanço de pagamentos ainda é grande e chocante.Todavia, o governo procura outros meios para alcançar o mesmo fim sem sacrificar os interesses da indústria. É este o sentido dos contratos fechados com a China durante a visita de Hu Jintao no valor de 48 bilhões de dólares.

Certamente este foi o resultado concreto mais relevante do jantar de gala, que observadores americanos definem como a mais suntuosa festa dada pela Casa Branca. Desta vez, o dinheiro não será consumido no circuito estéril do capital fictício expresso em títulos emitidos pelo governo ou pelo sistema financeiro. Vai irrigar o sistema produtivo e pode ter efeitos mais efetivos no combate à estagnação e ao desemprego que as emissões inflacionárias patrocinadas pelo Federal Reserve.

235 mil empregos

O pacote contém, principalmente, o compromisso de importações e investimentos diretos da China nos EUA. Envolve a venda de 200 aviões da Boeing, ao longo de três anos, o que significa exportação de 19 bilhões de dólares para a multinacional; importações de mercadorias de 12 Estados no valor de US$ 25 bilhões; transações de US$ 13,1 bilhões nos ramos de tecnologia de ponta e energia limpa; investimentos chineses em setores produtivos de US$ 3,24 bilhões e negócios bilionários com a General Electric e promessa de investimentos.

Estima-se que os contratos não vão apenas ampliar (e consideravelmente) os lucro das empresas envolvidas, mas também gerar 235 mil novos postos de trabalho nos EUA, direta e indiretamente. A China de Hu Jintao, que se considera uma economia de mercado socialista, foi deveras generosa com o carente Tio Sam, que há muito não consegue sobreviver com meios próprios.

Dependência mútua

No jogo de interesses entre as duas potências, a dependência é mútua, mas não significa a mesma coisa para os dois lados do pacífico. Boa parte das empresas sediadas na China depende do mercado estadunidense para vender suas mercadorias e, com isto, consumar o que Karl Marx chamou de realização do capital. O país, porém, não depende de empréstimos ou investimentos externos para fechar as contas. É credor mundial e não devedor.

Com um quarto das reservas mundiais depositados nos cofres do seu Banco Popular, a potência asiática tem dinheiro de sobra, detém 21% da dívida pública norte-americana e pode se dar ao luxo da generosidade que pagou as honrarias do império e comprou maior estabilidade e respeito nas relações mútuas, ao menos por enquanto. Isto vai custar provavelmente (aliado à flexibilização da política cambial e valorização do yuan) uma redução do superávit comercial chinês e do crônico déficit do parceiro rival.

O maior devedor do mundo

Os EUA já não estão nadando em dinheiro, apesar das emissões sem lastro. Como consequência do rombo no comércio exterior, em que vem incorrendo negligentemente desde o início dos anos 1970, o império deixou de ser credor líquido do mundo e se transformou, já nos anos 1980, em devedor. Hoje ostenta a maior dívida externa do mundo. É um importador líquido de capitais, um país parasitário que não é capaz de pagar suas contas com recursos próprios.

O que transparece na visita de Hu Jintao a Washington, iniciada dia 18 e encerrada nesta sexta-feira (21), é a imagem de um império em franca e irresistível decadência (EUA) e a realidade de uma potência em rápida ascensão (China). O movimento desses dois polos rivais sugere um mundo em transição, que não tende a ser pacífica, e terá influência preponderante nos acontecimentos futuros.