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Da classe operária à Câmara: lições do comunista Aurélio Peres

A manhã de 21 de novembro de 1978, uma terça-feira, foi de festa e alívio para toda uma geração de lideranças que lutavam em São Paulo contra o regime militar (1964-1985). Por volta das 11 horas, o Tribunal Regional Eleitoral (TRE-SP) anunciou que o operário ferramenteiro Aurélio Peres, sindicalista metalúrgico e coordenador do Movimento contra a Carestia, era um dos deputados federais eleitos.

Aurélio Peres

Filiado ao Partido Comunista do Brasil (PCdoB), Aurélio concorreu à Câmara pelo MDB (Movimento Democrático Brasileiro, de oposição à ditadura). Até o dia da votação, 15 de novembro, não acreditava na vitória. Aos 39 anos, lançara-se em uma “candidatura de protesto”, de debate e conscientização, que procurava refletir e, ao mesmo tempo, estimular o crescente repúdio ao regime dos generais-presidentes. Mas, depois de uma campanha memorável, conquistou 47.073 votos e uma vaga na Câmara Federal.

“Fomos chamados para uma nova forma de luta e abrimos caminhos. Não fui eu que ganhei. Foi todo um movimento articulado que pôs o regime militar em xeque muito antes — e muito mais — que os sindicalistas do ABC”, lembrou Aurélio, no sábado (19), durante o debate “Os Movimentos Sociais e o Mandato Parlamentar nos Anos 70/80”. O evento foi promovido na Câmara Municipal de São Paulo, por iniciativa do vereador Jamil Murad (PCdoB).

Ao lado da esposa, Maria da Conceição Peres, e de dezenas de históricos companheiros de lutas e resistência à ditadura, o ex-deputado recordou sua trajetória política, ressaltando sempre que “ainda há muito a fazer” pelo povo brasileiro. “Nossa obra foi apenas começada. Como ainda estou vivo — e ainda na luta —, considero que minha missão não acabou.”

As batalhas contra a carestia

Segundo Aurélio, a origem de sua atuação está na Paróquia Nossa Senhora das Graças de Vila Remo, na região do M’Boi Mirim, na zona sul de São Paulo. “Foram as primeiras experiências do que é organizar o povo em seu local de moradia. A ditadura começou a tremer a partir dessa experiência.”

Nos anos 70, sobretudo na região sul, a atuação dos chamados Clube das Mães começou a impulsionar as mulheres para a linha de frente da luta contra a ditadura. De modestos propósitos iniciais — como entreter as mulheres e orientá-las para a maternidade —, essas iniciativas partiram para a politização. Daí nasceu, em 1973, o Movimento contra o Custo de Vida, “respeitado até pelas forças de repressão” e depois rebatizado de Movimento contra a Carestia.

“Havia vários protestos — por água e esgoto, por creches, por transporte, etc. Mas um elemento que unia todos eles era a carestia decorrente dos salários arrochados. Foi isso que permitiu a unificação das bandeiras dos movimentos contra a ditadura”, afirma Aurélio. “Se hoje as lutas estão um pouco dispersas, é justamente porque faltam bandeiras unificadoras. Mas o movimento organizado tem de lutar sempre — não importa quem estiver no poder.”

O Movimento contra a Carestia organizou um histórico abaixo-assinado que chegou a receber 1,5 milhão de adesões. Entre outras reivindicações, o documento exigia o congelamento de preço dos gêneros de primeira necessidade e o aumento real dos salários para todos os trabalhadores. Em 27 de agosto de 1978, o Ato contra a Carestia reuniu 20 mil pessoas na Catedral da Sé e foi reprimido pela ditadura.

Àquela altura, o movimento já havia lançado dois candidatos em São Paulo — Aurélio Peres à Câmara Federal e a dona-de-casa Irma Passoni à Assembleia Legislativa. A luta para derrubar o arrocho salarial e o elevado custo de vida ganhava diversas capitais do Brasil.

De volta ao parlamento

As denúncias contra a ditadura ecoavam e sensibilizavam o povo, especialmente em São Paulo. Nas eleições de 1978, além de reeleger o senador Franco Montoro, o MDB faturou 37 das 55 cadeiras do estado na Câmara e 53 das 79 vagas na Assembleia Legislativa. A oposição impunha mais uma derrota vexatória à Arena (Aliança Renovadora Nacional), partido alinhado ao regime.

Aurélio e Irma, uma vez eleitos, puderam travar a luta contra a carestia em outras esferas. Para o PCdoB — que atuava na clandestinidade desde 1947 —, a vitória de Aurélio representava, ainda, um regresso histórico à Câmara. Fazia 31 anos que os comunistas estavam impedidos de exercer mandatos parlamentares.

Além disso, os anos 70 foram de forte repressão ao partido, sobretudo na Guerrilha do Araguaia e na Chacina da Lapa. No período de 1972 a 1976, o PCdoB teve dez dirigentes nacionais mortos e outros seis presos, além de dezenas de militantes torturados e desaparecidos.

“Olhando para trás, posso ver o resultado de tudo aquilo que conquistamos”, declara Aurélio. “Nosso mandato era o único de um partido ainda clandestino. Vieram a legalidade, mais vitórias, novos mandatos. Hoje, temos 15 deputados federais, dois senadores, vários deputados estaduais, dezenas de prefeitos e vereadores. O que começamos lá atrás avançou.”

A serviço do povo

O mandato de Aurélio foi inteiramente posto à disposição dos movimentos sindical, comunitário, estudantil, comunista e anti-imperialista. Sua residência oficial, em Brasília, abrigou reuniões e serviu de hospedagem para lutadores do Brasil inteiro que passavam pela capital federal. Até as vítimas do sistema carcerário receberam atenção. “O senador Teotônio Vilela e eu percorremos todos os presídios do país”, recorda-se o ex-deputado.

Muito além de “parlamentar do Movimento contra a Carestia”, Aurélio liderou ações pela anistia a presos políticos e exilados, defendeu o pluripartidarismo e as liberdades de manifestação, empenhou-se nas lutas pela redemocratização no Brasil e nos países do Cone Sul. Em 1982, foi reeleito com 61.200 votos.

No segundo mandato, o foco foi o movimento pelas Diretas-Já, que desencadeou as maiores mobilizações populares da história do Brasil. “Falei em nome dos trabalhadores em vários comícios das Diretas — no Rio, em Cuiabá, em Curitiba, em Fortaleza… Não me restringi ao estado de São Paulo.”

Vinte e quatro anos depois de deixar a Câmara Federal, Aurélio lamenta que a postura de certos parlamentares, mesmo de esquerda, mudou de perfil. “Por que os deputados de hoje são tão poucos acessíveis?”, questiona. “E onde foram parar os operários, que quase não exercem mais mandatos?”, emenda.

Homenagens

Tanto em recente entrevista ao Vermelho como nessa atividade na Câmara Municipal, Aurélio frisou que não se arrepende de nada. No entanto, ponderou: “Foram tempos muitos difíceis, e não sinto saudades”. Ao deixar a vida parlamentar, não conseguiu mais emprego em fábrica alguma — todos os patrões conheciam sua história. Acabou por aposentar-se na Eletropaulo.

Em 24 de novembro de 2010, Aurélio Peres voltou a Brasília para ser homenageado pela bancada de deputados federais do PCdoB. Seu retrato passou a integrar a galeria de líderes do partido na Câmara. Faltava o reencontro com seus antigos companheiros de São Paulo — o que ocorreu na Câmara Municipal.

“Sinto-me emocionado e realizado”, afirma Aurélio Peres. “Agora precisamos lembrar outros camaradas, como o ex-deputado estadual Benedito Cintra, que veio até antes de mim. Essas lutas não podem ser esquecidas.”

De São Paulo,
André Cintra