Guerrilha do Araguaia: “Meninos, eu vi Dr João Carlos”
Breve memorial da passagem de João Carlos Haas Sobrinho por Porto Franco num depoimento de Fortunato Macedo
Publicado 03/06/2011 18:04 | Editado 04/03/2020 16:47
por Márcio Jerry
É impossível passar por Porto Franco sem sentir a presença de João Carlos Haas Sobrinho. Os depoimentos se sucedem, sempre marcados por visível emoção e um profundo respeito que 40 anos não sepultaram.
A referência imediata é a do jovem médico dedicado, sempre disponível, afável e solidário. Numa cidade sem nenhum médico permanente, João Carlos logo virou um ídolo na pequena Porto Franco de 67.
A saída, tão inesperada quanto a chegada, o silêncio, a saudade e enfim a notícia chocante de que o médico era um guerrilheiro e tinha sido morto. Um enredo vivo filtrado pelo olhar de quem à época era uma criança.
A criança do final de 60 é hoje o cidadão Fortunato Macedo, ex-vereador que apresentou a sugestão para que a Câmara concedesse o título de cidadão portofranquino a João Carlos.
Ele descreve um breve memorial da passagem do médico-guerrilheiro que em menos de dois anos inscreveu seu nome na história da cidade e mais que isso, no coração das pessoas que o conheceram.
“As mãos desse homem são abençoadas”
Fortunato Macedo
Esse refrão, repetido em todos os cantos de Porto Franco, é a maior lembrança que tenho do Dr João Carlos. Suas mãos tinham tato de bondade e de justiça.
Eu era criança, era muito curioso. É muito prazer, eu conheci o Dr João Carlos!
Não se sabia de onde ele vinha, quem era e o que queria, não se sabia de sua família. Foi bem melhor assim, pois os seus atos dispensaram qualquer pergunta. Ele foi perfeito.
Jamais Porto Franco viu tanto silêncio e paz como na sua chegada. Mas também nunca se viu por aqui tanto barulho, clamor, saudade e tanta consternação na sua saída. No fim daquela concentração na porta do posto de saúde/hospital – na Praça Getúlio Vargas, em cima daquele caminhão que serviu de palanque – o silêncio foi total. Na verdade, foi o silêncio mais ensurdecedor que ouvi até hoje – o Dr João Carlos iria embora. Que pena !!! Como Dr João Carlos deixou saudades !!!
Vejo até agora o Expedito botando água para o Dr João Carlos, lavando e engraxando sua bicicleta Monark Barra Circular – aquela bicicleta azul, bonita e novinha em folha. Eu morria de vontade de dar uma voltinha naquela bicicleta! Mas, por mérito, ele a deixou par o Expedito. O Expedito, não se sabe por que “cargas d´água”, ele trocou a biclicleta com o João Barros por um espingarda calibre 22 – uma fobéia.
Vejo a Dona Dejaci ajudando o Dr João Carlos e a Dona Dedé – parteira/enfermeira de todas as horas – enfermeira/parteira de todos nós.
Vejo-o lendo muitos livros de medicina, falando de Hipócrates, Paracelso e outros vultos da medicina. Meu irmão – o Ruy – perguntando tudo – creio que por isso e por ele ter curado o Ruy de uma verminose persistente ele seguiu a profissão do Dr João Carlos.
Entre tantas generosidades, agradeço por ele ter resolvido meu problema de hipovitaminose e raquitismo. Foi também por que que tive a oportunidade de casar com a Sinay – ela nasceu pelas mãos do Dr João Carlos e Dona Dedé.
Toda doença desconhecida naquela época era “febre”. Numas dessas febres resistentes, o Colemar Filho(Filho do vereador Colemar e autor do Projeto de Lei que concede o Título hoje comemorado foi salvo pelo Dr João Carlos).
Ele foi um defensor do meio ambiente, meu falou muito dos animais e dos alimentos – isto me ajudou a ser médico veterinário. E foi com alguma lembrança sua que me tornei advogado, na busca de prestação jurisdicional para os mais necessitados. Também não posso esquecer as nossas pescarias com Dr João Carlos na Ingarana ou na Pedra do Braga: sempre na companhia do Hélbio(filho do Seu Políbio), do Nélio(filho do Seu Antonio Sá) e do Hélio(meu irmão). Dr João Carlos adorava pescar Mandi Cabeça de Ferro e Piau Cabeça Gorda e depois comer frito no azeite de côco babaçu.
Sua fama de bom médico corria rápido e, como dizia a Dona Branca: “por aqui é Deus e o Dr João Carlos”.
Dr João Carlos era bom de baile. Lembro até de duas namoradas dele: a Aidê, uma jovem bonita de Pontalina-GO que passava férias em Porto Franco hospedada na casa da tia Carmelina; e a Cassionilda, que morava/estudava na casa do tio Edeci Santos. Dr João Carlos era participativo e muito integrado na nossa comunidade.
Lembro bem de sua presença lá em casa, contando muita história – era fantástica a sua cultura geral e o gosto pela medicina e pela justiça social. Vejo com muita clareza ele na conzinha lá de casa comendo costelinha de porco com polenta, aliás a tal da polenta que ele ensinou a mamãe fazer. Foi com ele que aprendi a comer polenta e beber chimarrão. Hoje já não faço mais isto, pois me disseram que polenta tem alta caloria. Dr João Carlos adorava comer banana comprida no leite, mingau de arroz, que ele chamava de arroz doce. Ele apreciava comer bolo cacete e as mangabas feita pela Dona Zeca ou pela Evinha da Lina. A mamãe e a dona Raimunda do Colemar mandavam a gente levar os bolos.
Eu, o Hélio(meu irmão) e o Ernani(meu primo), com muita frequência levávamos pequi, oiti e manga de cheiro para o Dr João Carlos. O Ernani inclusive é afilhado dele – quanto privilégio.
Dr João Carlos gostava de uma boa música, era desportista. Com certeza está hoje vibrando com o título deste ano de campeão gaúcho do seu Internacional, o Colorado.
Lembro muito bem o dia que o Dr João Carlos me levou,com o Haroldo, meu irmão, para cortar o cabelo com o seu Mário. Depois fomos várias vezes sozinhos. Seu Mário cortou o cabelo de muito menino em Porto Franco e toda vê repetia: “vou fazer um corte pra deixar você parecido com os galãs do Rio de Janeiro”. Nós virávamos, com muita alegria, apenas galãs do rio Tocantins. Muito tempo depois soube que quem cortava nosso cabelo era o senhor MAURÍCIO GRABOIS. Quanta honra pra mim!!!
Nós corremos muito atrás das partidas de futebol pra ver a seleção de Porto Franco jogar. Vimos muitos os amigos do Dr João Carlos, Gilberto e o Zé Carlos – dois sujeitos legais – jogando na seleção de nossa cidade. Gilberto, excelente ponta de lança goleador. Já o Zé Carlos era meio cintura dura, mas um ponteiro direito raçudo. Só tempos depois soubemos que o Gilberto era genro de Maurício Grabois e o Zé Carlos, ou André Grabois, era filho.
Interessante quando Dr João Carlos nos fala de história, economia, políticas públicas e conhecimentos gerais. Foi com ele que ouvi pela primeira vez falar de Karl Marx, Mostesquieu, Fran Kafka, Manuel Bandeira, Mário Quintana e Érico Veríssimo e tantos outros escritores.
Dr João Carlos foi um excelente médico de corpos e médico de gente. Entendi muito bem os seus propósitos, a sua vontade de curar toda a sociedade de feridas profundas, como a pobreza total, a fome,a tortura, o analfabetismo, a corrupção e o desemprego.
Ele me fez entender, desde cedo, que ainda e sempre há tempo e esperança para combater desigualdades, preconceitos, ditaduras, tiranias e oligarquias. Dr João Carlos nos ensinou que a morte física jamais poderá servir de pretexto para de desistir sempre à morte ideológica.
Lamento muito terem sumido aquela foto tirada no batente lá de casa pelo fotógrafo Luis Penca. Era uma bela foto: o Hélio, meu irmão, de um lado e eu do outro, de calção e sem camisa, e o Dr João Carlos no meio, sentado, lendo pra nós Dom Casmurro, de Machado de Assis.
Com ele aprendi a entender que só e transforma uma nação pela educação e pela justiça social.
Não esqueci até hoje quando ele cantava bem baixinho pra gente Hasta Siempre Comandante( De Carlos Puebla), Bella Ciao(música italiana de autor anônimo – criação dos combatentes partidários, de 1945) e foi com ele que comecei a gostar de Pra Não Dizer que Não Falei das Flores(de Geraldo Vandré).
Um dia ele nos falou do extraordinário cantor e compositor Lupicínio Rodrigues. Pareceu estranho, pois torcedor COLORADO não costuma falar em autor de hino GREMISTA! Dr João Carlos foi humilde e muito justo.
Foi por ele que pela primeira vez ouvi se falar da UNE. Creio que isto me inspirou a mais tarde pertencer a UNE e de tantas lutas nas escolas e nas ruas.
Não posso mais, infelizmente, mostrar os escritos que fazíamos para ele ler e receber o seu visto. Perdemos o seu precioso autógrafo, perdemos fotos e registros preciosos. Também fomos algozes de censuras, mas ficou a doce lembrança de muita coisa que ele fez.
Só muito tempo depois entendi que esperança sempre vence o medo.
Seu exemplo me ajudou a entender o que é liberdade política, inclusão e justiça social.
Sei que sua inspiração me deu a oportunidade de ter sido vereador,Secretário Municipal, Vice-prefeito, Secretário de Estado e deputado.
Fiquei honrado quando, Secretário Municipal d Planejamento e Coordenação Política no primeiro mandato do prefeito Deoclides Macedo, participei da municipalização da saúde e na construção do Hospital sugeri ao prefeito que desse ao Centro Cirúrgico o nome de Dr João Carlos Haas Sobrinho. A homenagem foi providencial e merecida.
Conheço bem a intransigência, o autoritarismo, a perseguição, a injustiça e a falta de oportunidades. Sempre vi os menos favorecidos serem desrespeitados em seus direitos e garantias sociais.
Na década de 70, morando em Goiânia, soubemos da morte do Dr João Carlos na Guerrilha do Araguaia. A mamãe chorou muito, o papai chorou muito, nós choramos muito. Parafraseando Bentinho ao falar de José Dias em Dom Casmurro: “Por que hei de negar que chorei por ele???”
Por tudo isso, um dia sonhei ver Dr João Carlos cidadão de Porto Franco, cidadão do mundo.
Quis numa época, mas o “sistema” não deixou, quis noutra época e o “sistema” não deixou novamente. Mas agora o povo está permitindo, o tempo deixou, a hora é agora, Deus permitiu.
Assim, agradeço a todos os vereadores, em especial o vereador Colemar Rodrigues do Egito, que entendendo não ser intempestiva a minha solicitação, aprovaram a outorga do título de cidadão portofranquino ao Dr João Carlos Haas Sobrinho. Que o Brasil siga esse exemplo.
Agora me resta a dizer, parafraseando Chico Buarque: “Meninos eu vi, juro que um dia eu vi um homem ser feliz”.
Meninos, eu vi o Dr João Carlos, eu vi um dos homens mais inteligentes e humanos da minha vida. Dr João Carlos foi perfeito.
Dr João Carlos, que a sua lembrança no seja suave e sábia, que a sua vida seja de muita inspiração e nos aguarde no céu: ainda iremos pra muitas trincheiras e, cobertos pela justiça imputada por Deus, haveremos de fazer muita justiça social e viver muita liberdade política.
Fortunato Macedo Filho
Porto Franco, maio de 2011