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"Revoltas árabes querem melhorar padrão de vida e não democracia"

Para a professora Analúcia Danilevicz Pereira, as manifestações que têm deixado o mundo árabe em ebulição nos últimos meses apresentam como principal motivo a decadência do padrão econômico da população e não a busca pela democracia.

Em entrevista à IHU On-Line, realizada por telefone, ela declarou que “estes Estados têm governos que estão há muito tempo no poder, em alguns destes países existe o sistema político monárquico, outros são repúblicas com presidentes que estão há muito tempo no governo. E isto, até então, não era problema, tanto que ficaram todo esse tempo no poder. No momento em que a população não é mais atendida nas suas necessidades, aí sim se gera um problema político”.

Analúcia Danilevicz Pereira é licenciada em História pela PUCRS e especialista em História Contemporânea pela Faculdade Porto Alegrense de Educação Ciências e Letras; e em Processos de Integração na Ásia, Europa e América pela Universiteit Leiden (Holanda). É doutora em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Atualmente, é professora na Escola Superior de Propaganda e Marketing, na Faculdade Porto-Alegrense e na UFRGS.

Confira a entrevista:

IHU On-Line: Como entender o mundo árabe contemporâneo?
Analúcia Danilevicz Pereira: Historicamente, esta é uma das regiões mais importantes do mundo, em função dos recursos, principalmente energéticos, que são fundamentais para o desenvolvimento da Europa e mundial. É uma região de passagem, de ligação entre três continentes.

IHU On-Line: Com as manifestações políticas que têm deixado o mundo árabe em ebulição nos últimos meses, podemos entender essa região como um laboratório de experimentação política?
Analúcia Danilevicz Pereira: Não creio na ideia de laboratório. O que está acontecendo lá é um processo – embora tenha causado surpresa em alguns analistas – perfeitamente compreensível dentro da história política e econômica da região. Outras regiões do mundo já passaram, de certa forma, por situação semelhante, em outros momentos.

O que chama atenção é que houve um movimento que foi se espalhando para vários países da região. Novos movimentos e manifestações populares têm sido gerados com frequência em vários países europeus, ainda que não chamem tanta atenção quanto o que está acontecendo no mundo árabe hoje.

Todo aquele discurso em torno de demandas por democracia e valores do gênero não são exatamente as causas destas mobilizações. Estas regiões – que até então tinham uma certa estabilidade econômica – começaram a sentir os efeitos da crise econômica que começou nos EUA em 2008 e, aos poucos, foi avançando sobre a Europa e países árabes.

Hoje, os europeus e árabes continuam vivendo as consequências dessa crise. Não há exatamente uma motivação para uma nova configuração de Estado em termos políticos, mas há uma demanda por melhoria de qualidade de vida destas pessoas.

IHU On-Line: O que os árabes buscam é a democracia?
Analúcia Danilevicz Pereira: O discurso em busca da democracia não está na pauta principal das mobilizações nos países árabes. O que ocorre é uma tentativa de resgatar um padrão de vida que se tinha até os anos 1990. Depois disso, após diversas crises econômicas, culminando na maior crise, que é a de 2008, os índices de desemprego aumentaram, as pessoas empobreceram e tudo isso fez com que as pessoas se mobilizassem agora.

IHU On-Line: O que há de diferenças entre as reivindicações feitas pelos manifestantes do Egito, da Tunísia e da Líbia? E as similaridades?
Analúcia Danilevicz Pereira: Em cada país o impacto destas mobilizações vai ser diferente. Por exemplo, se nós compararmos o que aconteceu na Tunísia e o que aconteceu no Egito e depois ainda comparar com o que aconteceu na Líbia nós vamos ter resultados bastante diferentes.

A Tunísia inicia o movimento por uma reivindicação quase individual, foi uma manifestação de uma pessoa que colocou fogo em si mesma para mostrar sua indignação. Foi isso que acabou estourando um movimento bastante amplo que tem como resultado a deposição do governante.

No Egito já é um movimento bastante diferente, não pela mobilização em si, mas pelo fato de que ali havia um aliado ocidental. Sua saída vai se dar a partir de uma espécie de negociação, ele acaba renunciando ao poder depois de alguma resistência e de manifestações das principais potências ocidentais.

Na Líbia a situação é completamente diferente. A mobilização, aparentemente popular, nasce a partir de ex-participantes do governo do Kadafi, e isso se configurou numa tentativa de golpe de Estado. Ou seja, deixou de ser uma manifestação propriamente popular. Os resultados, portanto, são diferentes num mesmo contexto regional de crise econômica e que acabou desencadeando crises políticas também.

IHU On-Line:  O que há de similar nestas reivindicações?
Analúcia Danilevicz Pereira: Há uma conjuntura de crise econômica. As pessoas, neste sentido, reivindicam uma melhoria na sua condição financeira. Tratam-se de Estados que tinham um padrão econômico que integrava a população de uma maneira equilibrada e, com o fim da Guerra Fria e de algumas relações que se estabeleciam entre estes países e outros que não existem mais, começa a haver uma mudança na capacidade de desenvolvimento econômico de alguns destes estados. Isto acaba gerando uma crise que afeta a sociedade diretamente. Ainda que a conjuntura seja a mesma, que a causa seja comum, mas cada país deve ser analisado individualmente.

IHU On-Line: Qual é o perfil da oposição e da situação nestes países árabes? Podemos dizer que existe uma esquerda no mundo árabe?
Analúcia Danilevicz Pereira: Este perfil ainda está sendo definido. Ainda é difícil pensar e definir a oposição nesses países. Em alguns casos, a oposição é formada por integrantes populares, ou seja, por pessoas comuns que vão para a rua se manifestar contra o governo. De toda forma, toda mobilização acaba gerando lideranças, e muitas destas lideranças não são exatamente identificadas ou não foram produzidas de forma a gerar uma oposição que pudesse almejar a chegada ao poder.

Estes Estados têm governos que estão há muito tempo no poder, em alguns destes países existe o sistema político monárquico, outros são repúblicas com presidentes que estão há muito tempo no governo. E isto, até então, não era problema, tanto que ficaram todo esse tempo no poder. No momento em que a população não é mais atendida nas suas necessidades, aí sim se gera um problema político, ou seja, nasce uma reação a quem está no poder.

Não podemos avaliar isto com o nosso olhar, com os nossos valores políticos ocidentais, porque a maioria destes Estados nunca experimentou, por exemplo, a democracia representativa que nós conhecemos. Estes países não produziram esta experiência porque a perspectiva e história política destes países é diferente da nossa.

Não há uma oposição estruturada em termos políticos, são mobilizações dispersas. Exceto, claro, no caso da Líbia, que há claramente um grupo organizado que agora está aliado às potências ocidentais. Ali, sim, sabemos que existem pessoas que pertenciam ao governo Kadafi e que tentaram derrubá-lo e, não conseguindo, acabaram recebendo apoio externo.

IHU On-line: Países vistos como “líderes”, como os EUA, têm algum tipo de papel nesse novo mundo árabe?
Analúcia Danilevicz Pereira: Eu acredito que muito desta crise que se produziu no mundo árabe, de uma maneira geral, está relacionada a um vácuo de poder internacional, que está relacionada justamente à crise de hegemonia estadunidense. Os Estados Unidos não têm mais respaldo político e as condições de estabelecer grandes alianças na região não existem mais, como tentou em outros momentos, inclusive tentando encabeçar mediação em processos de paz, como é o caso concreto árabe-palestino. É difícil pensar que, mais uma vez, uma potência estrangeira vai resolver os problemas destes Estados.

As relações estão muito frágeis e isto pode ser confirmado na própria manifestação estadunidense em relação a estes conflitos. Em alguns casos, e eram casos de interesses estratégicos, eles sem manifestaram e tentaram emitir alguma opinião ou atuaram, como aconteceu no caso da Líbia. Em outros casos houve uma omissão completa, ou seja, onde havia Estados aliados aos Estados Unidos, como aconteceu na Arábia Saudita, os estadunidenses não se manifestaram.

O que podemos perceber é que há um enfraquecimento do papel de liderança dos EUA, e os Estados estão resolvendo quase que individualmente as suas questões internas. Se não individualmente, ao menos estão resolvendo regionalmente com alguma aliança regional, mas não há mais a capacidade de uma potência ocidental atuar ali com voz mais alta que possa, em algum momento, produzir efeito. Esta condição não existe mais.

IHU On-Line: As revoltas árabes podem ter algum tipo de “espelhamento” na América Latina?
Analúcia Danilevicz Pereira: Acredito que não. A América Latina, de uma maneira geral, está vivendo um outro momento político. Existem países que conquistaram uma capacidade de desenvolvimento bastante dinâmica. Há um processo de integração em andamento, há um diálogo bem intenso entre os países da região, aqueles países que conseguiram se desenvolver e que estão se desenvolvendo bem acabam promovendo o bem-estar à população.

A situação atual não cria condições para manifestações como estão ocorrendo nos países árabes. O que leva as pessoas a se manifestarem? Elas acabam sofrendo os impactos de uma crise econômica, são desprovidas de um bem-estar e não é o que está acontecendo na América Latina. Evidentemente, há muitas diferenças nos níveis de desenvolvimento dos Estados, mas há um processo de cooperação em andamento e isto é muito positivo. Se acontecerem manifestações por aqui serão muito esparsas, a partir de contextos muito específicos, mas não de uma forma generalizada.