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Alipio Freire: A ABL-425 e os Dois Demônios

O artigo da senhora Sylvia Colombo, "O que é isto, Montonero", publicado na edição deste domingo (2) da Folha de S. Paulo, além dos objetivos óbvios (e sórdidos) com relação à criação da Comissão da Verdade proposta pelo governo da presidente Dilma Rousseff e que, depois de aprovada na Câmara, será votada em breve no Senado – onde esperamos seja também aprovada – nada contém de novidade.

Por Alipio Freire

Seja em termos das posições dos donos do jornal, seja em termos da tese sobre a qual se assenta, e à qual não se refere e finge desconhecer, dado o requentado de última hora: a chamada Teoria dos Dois Demônios, forjada ainda nos anos 1980 pelo recém-finado escritor argentino Ernesto Sabato, e explicitada pela primeira vez no prólogo do Informe “Nunca más”, nos seguintes termos:

"Durante a década de 1970, a Argentina foi convulsionada por um terror que provinha tanto da extrema direita, como da extrema esquerda, fenômeno ocorrido em diversos países (…) aos delitos dos terroristas, as Forças Armadas responderam com um terrorismo infinitamente pior que aquele que combatiam, pois desde 24 de março de 1976 contaram com o poderio e a impunidade do Estado absoluto, sequestrando, torturando e assassinando milhares de seres humanos". (grifo nosso)

“Nunca más” é o nome do informe apresentado pela Comissão Nacional sobre o Desaparecimento de Pessoas (Conadep) da Argentina, conhecido também como “Informe Sabato”, uma vez que foi o escritor quem presidiu a Comissão. O Informe da Conadep foi entregue oficialmente ao presidente Raúl Alfonsín, em 20 de setembro de 1984.

Ou seja, uma teoria já testada (sem sucesso) 27 anos antes da senhora Sylvia nos brindar com o seu texto insidioso, lacrimoso e medíocre, ainda assim – e por isto mesmo – capaz de empolgar @s leitor@s mais desavisad@s, sobretudo aquel@s que batem ponto cada noite a verter lágrimas a cada ejaculação dos atores da Globo e/ou outros canais (refiro-me aqui a canais de TVs e não aos canais lacrimais ou à uretra).

No Uruguai

Ainda nos anos 1980, o Partido Colorado e as Forças Armadas do Uruguai tentaram sem êxito sustentar a tese dos Dois Demônios e, nos anos 1990, foi a vez do Partido Blanco voltar à carga com a mesma teoria, então reelaborada (e maquiada) pelo senhor Jorge Tróccoli, um militar nacionalista reformado. Bem mais sofisticado que Sábato, o senhor Tróccoli cria a metáfora de uma pinça, cujos braços (alavancas) eram manipuladas, uma pelos tupamaros e a outra por esquadrões de suboficiais e oficiais das três Armas. A rigor, como já assinalaram vários críticos dessa visão/explicação, a versão do senhor Tróccoli, além de desprezar a realidade sócio-econômica da época, esconde os partidos políticos, e acaba por eximi-los de toda responsabilidade. Diga-se de passagem, Tróccoli explicita em seu texto:

“Apertados por uma pinça, da qual uma das alavancas era movida pelo terrorismo da guerrilha subversiva, e a outra, o terrorismo do Estado, [nós,] os democratas uruguaios não fomos compreendidos, nem por uns, nem por outros. (…) Tupamaros e golpistas se retroalimentaram com seus excessos e práticas de enlouquecida violência”.

Aliás, mais que os partidos políticos, o talento do senhor Tróccoli – com sua metáfora da pinça – busca também obnubilar a ação e papel das Forças Armadas do seu país, substituídos no texto, ora por “Terrorismo do Estado”, ora por “golpistas” – como chamam a nossa atenção autores como o historiador Álvaro Rico. (Apud Diego Sempol “La historiografia blanca sobre el pasado reciente: entre el tetimonio y la historia”, in “Ditaduras e Democracia na América Latina – Balanço Histórico e Perspectivas”; Orgs. Carlos Fico, Marieta de Moraes Ferreira, Maria Paula Araújo e Samantha Viz Quadrat; FGV Editora; págs. 110 e 11) (grifo nosso)

O que é isto, dona Sylvia Gabeira?

Como podemos constatar em qualquer dicionário, “a obnubilação é o estado de perturbação da consciência, caracterizado por ofuscação da vista e obscurecimento do pensamento” (Wikipedia).

Como podemos constatar através das mercadorias que nos vende diariamente a grande mídia comercial, a perturbação da consciência do leitor (ou ouvinte, ou espectador) por ofuscação da vista e/ou ofuscação do seu pensamento, tem sido a regra desse setor industrial (a grande mídia comercial) de produção de ficções, que costumam apresentar como notícias, registros da objetividade factual, isentos e acima do bem e do mal.

No que diz respeito à “ofuscação da vista” do leitor, para além dos efeitos diuturnos de corte-montagem, zooms ou outros recursos e trucagens (edição de imagens) dos noticiários e reportagens especiais das tvs, temos cada vez mais aprimoradas as manipulações de fotos da imprensa e jornais virtuais da grande mídia comercial. O último grande escândalo nesse sentido, foi a manipulação – pelo Estadão on-line – da foto do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva em Salvador, há menos de duas semanas (terça-feira, 20 de setembro), quando recebeu o título de doutor honoris causa da Universidade Federal da Bahia (UFBA). A foto, tirada quando o estudante Fernando Maltez (24 anos, aluno do último semestre do curso de Direito) recebia um esfuziante abraço do ex-presidente, do qual é grande admirador. Título, legenda e texto transformaram aquele abraço num “ataque de um manifestante que participava de um ato de protesto e vaias contra o ex-presidente, que teria tumultuado a sessão solene na Reitoria da UFBA”.
Já em termos de ofuscação do pensamento do leitor, a manipulação costuma seguir o seguinte receituário:

Durante dias seguidos, a grande mídia comercial, com argumentos exclusivamente “ideologizados” (para mantermos a expressão da senhora Sylvia) estimula, pede ou até exige invasões – sejam de acampamentos do MST ou de outros movimentos pela reforma agrária; sejam prédios vazios por ocupados por movimentos dos sem-teto; sejam de países que interessem aos Estados Unidos da América (EUA) invadir e ocupar.

Assim, o “Delenda est Carthago” do velho censor da Útica parece nos ecoar, mais de dois milênios depois, amplificado e globalizado pelas novas tecnologias de ponta: Catão, o Antigo, (234 – 149 a.C.) nos jornais nacionais; Catão entrevistado por dona Hebe Camargo (“Que linda a sua toga, Cat!”); Catão na “Dança dos Famosos”; Catão no “Ratinho”; na dona Ana Maria Braga; na “Porta da Esperança”; em livro de gastronomia – “Receitas da culinária romana dos séculos 3 e 2 antes de Christo”; nas colunas sociais; nas seções policiais; nas revistas “Play-Boy”, “Caras” – e na Ilha de Caras; na “Marie Claire” e “Quem” – à disposição em barbeiros, cabeleireiros unissex que prometem “escova progressiva inteligente”, podólogos, casas de depilação, salas de espera de hospitais, consultórios médicos e odontológicos.

Enfim, “Ou Catão para todos, ou Catão para ninguém”, parece anunciar democraticamente a grande mídia comercial, depois de descobrir um caso do Velho Censor com uma atriz-modelo da novela das 8, ou com uma Paquita da Xuxa. Um dos nossos acadêmicos escreverá “A vida íntima de Catão – biografia autorizada”, e uma jovem aspirante ao título de doutora em Filosofia defenderá tese definitiva sobre o assunto: “Cartografia da Solidão – Estudo de Caso – Catão, o Antigo: cesura epistemológica e a busca de novos paradigmas”, que será aprovada pela banca com um “Dez com Louvor” e indicação para publicação, e que a grande mídia comercial repercutirá em programas e cadernos especiais.

Assim, com o circo montado e o espetáculo no picadeiro depois dessa bateria de esclarecimentos, e manifesta como vontade legítima de todos os povos do mundo, a Operação Cartago anunciada e exigida por Catão, e pretendida pelo Império, numa noite qualquer acaba por ser desencadeada – sempre através de “mísseis inteligentes”, numa apoteose à Razão, em busca de uma guerra cult, cool and clean: a ciência a serviço da higienização.

Consumada a violência dos mísseis, bombardeios aéreos, divisões de blindados e Infantaria, é a vez de nos oferecerem gratuitamente imagens de crianças órfãs – em prantos e/ou mutiladas (melhor se ambos); imagens e declarações de mulheres em adiantado estado de gravidez; mães que, ensandecidas pela brutalidade amamentam cadáveres de bebês destroçados; jovens viúvas que se abraçam aos corpos carbonizados dos seus maridos, etc. etc. etc. Ou seja, apela-se agora para a comiseração pública (e, de preferência, manifestações catárticas) com relação às próprias vítimas dos massacres que a mesma parafernália midiática de direita que agora pranteia, estimulou, pediu e até exigiu, transferindo para os “rebeldes” (todos aqueles que resistem às ações policiais e/ou militares de invasão e ocupação dos seus territórios – seja Cabul, Bagdá, Trípoli ou o Complexo do Alemão) a responsabilidade por suas próprias desgraças.

Essa ofuscação direta do pensamento do leitor foi exatamente o caminho escolhido pela senhora Sylvia para vender seu peixe: criancinhas desaparecidas e/ou mortas; viúvas em situação de penúria; civis inocentes atingidos por supostas “bombas dos rebeldes” (aos quais se referem também como “terroristas”); idosos famintos revolvendo escombros; e todo um arsenal de clichês pungentes e lacrimejáveis, através dos quais, vítimas são transformadas em réus, ou se processam outras mandracarias igualmente obscenas. Quantas vezes já vimos, depois de raids do Estado de Israel apoiados e legitimados por essa grande mídia comercial, fotos de crianças palestinas meio a destroços e/ou em prantos e/ou feridas, mutiladas, etc?

Quantas vezes lemos (ou ouvimos) que “rebeldes” do Afeganistão, Iraque ou qualquer país invadido pelos EUA e/ou Otan atacam as forças que ali foram levar a cultura, a civilização, a democracia e a paz?

É nesta linha da ofuscação direta do pensamento do público (através da exploração dos sentimentos e emoções dos seus eventuais leitores), que a senhora Sylvia Colombo tenta trabalhar, de modo grosseiro e pouco inteligente, sua versão medíocre dos Dois Demônios.

Iogurte Vigor

Como diria Millôr Fernandes, nesse seu afã, dona Sylvia “Chegou ao limite da sua incompetência. Não obstante, prosseguiu”. Exausta, mas não satisfeita, a articulista encerra seu texto com um intelectual búlgaro, o senhor Tzvetan Todorov, que teria visitado Buenos Aires, onde haveria criticado “a transformação ideologizada e maniqueísta dos guerrilheiros em vítimas”.

Risível. Absolutamente risível.

Isto nos faz lembrar o romance “O púcaro búlgaro”, de Campos de Carvalho, lançado em 1964: a Bulgária enquanto ficção geográfica. E, num quadro desse tipo, tanto faz se o intelectual (Ah, os intelectuais!) se chamasse de fato Tzvetan Todorov, ou Jogourt Wíggor. O importante é que seja essa coisa mágica à qual se atribui a condição de “intelectual” (um estado superior do ser!), e que venha de algum lugar tão distante, remoto e desconhecido dos leitores, ouvintes e espectadores quanto misterioso, e que assim se preste a qualquer fantasia na cabeça dos desavisados.

Não fosse isto, certamente poderia ter servido qualquer frase do senhor Alfredo Sirkis, cujo segundo nome (pelo fato de ser incomum) se presta à fabulação e cujo histórico “legitima” suas declarações (Diga-se de passagem, até nos surpreende que o senhor Sirkis não tenha sido convidado pelo doutor Nelson Jobim, para assessora-lo quando ocupava a pasta da Defesa). Mas qualquer frase do senhor Sirkis teria sempre um grave defeito de gênese: seu emissor (senhor Sirkis) mora logo ali, no Rio de Janeiro que outrora cartão postal possível de ser encontrado em qualquer esquina, hoje é muito mais acessível na condição de ambientação e cenário privilegiado das novelas. E mais: as falas (orais ou escritas) do senhor Sirkis não necessitam de tradução – o que perde muito dos “mistérios” exigidos para o efeito desejado.

A ABL-425

Enfim, depois de tudo que escrevemos sobre os Dois Demônios e outras trancendências, cumpre-nos esclarecer o que parece ser o grande mistério deste texto: a ABL-425.
Sem mistérios: ABL-425 significa apenas Alameda Barão de Limeira, número 425, endereço da Empresa Folha da Manhã, esse grande laboratório alquímico, ao qual pertence o jornal Folha de S. Paulo – além de outros títulos.

Mas que antes de ser desvendado o mistério, os leitores achavam a fórmula ABL-425 bem mais imponente que um simples endereço, achavam. Parecia algo da esfera dos poderes da República, algo mais solene do que seu prosaico significado.

É a esse tipo a manipulação das palavras (e outras representações) que somos submetidos todos os dias e a todo o momento.

É por essas e outras que (como creio já ter escrito antes) a fuga destabacada de dona Maria, sua família e cerca de 15 mil outros parasitas, em 1808, necessita ser referida oficialmente como “Transmigração da Família Real Portuguesa e sua Corte para o Brasil”, e a quartelada de opereta do 15 de novembro de 1889 se traveste de “Proclamação da República”.

"Demorô!
De boa, Mano"