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O declínio da Europa e a ascensão financeira da China

A crise europeia, um dos temas em debate na reunião da Cúpula do G20 que começa quinta-feira (3) em Cannes, rendeu acontecimentos inusitados ao longo da semana passada.

Por Umberto Martins

Na última quinta-feira (27), após a reunião de líderes da Zona do Euro que decidiu cortar pela metade o valor da impagável dívida grega, o presidente da França, Nicolas Sarkozy, telefonou ao homólogo chinês, Hu Jintao, com um pedido de socorro, reforçado nos dias seguintes pelo chefe do Fundo Europeu de Estabilização Financeira (FEEF), o alemão Klaus Regling, que viajou a Pequim com o pires na mão.

Contraste

Já não é segredo para ninguém que a Europa está falida. Com raras exceções, que incluem a rica e poderosa Alemanha, os governos do velho continente estão às voltas com déficits explosivos e dívidas impagáveis, consequentes em certa medida das intervenções feitas para socorrer bancos em crise. Em geral, os Estados não só carecem de poupança própria como demandam desesperadamente financiamento externo e depositam minguadas esperanças na ampliação do fundo de resgate, o FEEF, ao mesmo tempo em que submetem a chamada sociedade civil a ajustes dramáticos e recessivos a pretexto de equilibrar os orçamentos.

A China, ao contrário, parece estar nadando em dinheiro. Suas reservas, que no final de setembro deste ano subiram a US$ 3,2 trilhões, constituem, neste momento crítico, um invejável excedente econômico. Trata-se de uma poupança que por definição é externa e que em maior ou menor medida pode ser usada para atenuar a crise da dívida europeia. É este o desejo dos líderes da União Europeia, que apelam ao ouro de Pequim para engordar o FEEF e viabilizar a expansão do fundo para 1 trilhão de euros.

A vida dá voltas

O episódio despertou paixões nacionalistas na França e constrangimento em muitos políticos europeus, mas a necessidade atropelou orgulhos e até agora tem falado mais alto. Trata-se de um acontecimento extraordinário, emblemático das mudanças objetivas que estão em curso na economia mundial, com o progressivo deslocamento do poder econômico do chamado Ocidente para o Oriente e das potências capitalistas lideradas pelos EUA para a China.

Este movimento da história, acelerado pela crise, decorre de duas leis básicas da reprodução do capitalismo na sua fase imperialista: o desenvolvimento desigual das nações e o parasitismo econômico no antigo 1º Mundo. O que mais parece surpreendente é a rapidez da mudança. Vale recordar que foi só no final do século 20 que a Europa levantou os últimos vestígios da sua presença colonial na China, com a saída de Hong Kong e de Macau.

Reflexo do crescimento

As reservas da China refletem a expansão ininterrupta do país ao ritmo médio de 10% ao ano durante as três últimas décadas, e têm, basicamente, duas fontes: o superávit obtido no comércio exterior, principalmente no intercâmbio com os EUA, e os investimentos externos realizados pelas transnacionais na economia chinesa, atraídas pelo crescimento e a perspectiva de maximização dos lucros. As potências capitalistas avançaram no mesmo período entre 2 a 3% ao ano, em meio a crises e ampliando desequilíbrios e dívidas.

Os recursos em poder do governo chinês, dirigido pelo Partido Comunista, não estão entesourados. Existem na forma de investimentos externos, principalmente em títulos. Até hoje, os EUA são o principal destino dessas aplicações. Pequim é o maior credor da Casa Branca, com mais de US$ 1 trilhão em títulos públicos do Tesouro estadunidense.

A Europa também está em dívida com Pequim, que já investiu US$ 500 bilhões na região. Os europeus esperam ampliar esta participação e ao que tudo indica contam com a boa vontade dos líderes asiáticos neste sentido. A China é a maior exportadora mundial e a Europa é o seu maior mercado, absorvendo um quinto das suas vendas – os Estados Unidos são o segundo, com cerca de 18%.

Toma lá dá cá

Os interesses da China vão além do comércio. O país também tem interesse em diversificar seus investimentos externos, reduzindo ainda mais sua exposição ao dólar, embora isto possa acarretar problemas de financiamento para a dívida estadunidense. O ministro chinês de Comércio Exterior, Chen Deming, reiterou nesta segunda-feira (31) que o país está disposto a ajudar o combalido bloco europeu, "já que todos os países estão no mesmo barco e precisam cooperar para que a Europa se recupere". Ele prometeu um "apoio real".

Mas a ajuda, se for concretizada, não sairá de graça. As relações entre nações são mais baseadas em interesses do que em qualquer outra consideração. Por isto, é quase sempre na base do toma lá dá cá. Entre outras coisas, os líderes chineses pedem, em contrapartida, garantia para seus investimentos, reconhecimento do país como economia de mercado e fim ou abrandamento de muitas restrições, especialmente as que estão associadas a áreas sensíveis de alta tecnologia.

Preferência por ativos reais

A conjuntura turva também abriu os olhos dos chineses para os riscos embutidos nos investimentos em títulos, que Karl Marx computava como capital fictício, cujo valor (descolado, mas não independente da produção) pode depreciar, como ocorre com os ativos denominados em dólar, ou mesmo derreter. Por isto, os chineses fizeram notar que preferem investir suas reservas em ativos reais, o que se faz através de investimentos diretos, seja na aquisição de empresas (como acaba de ocorrer com a Swedish Automobile NV – Swan –, proprietária da Saab) ou instalação de novas unidades produtivas.

As reservas constituem um poderoso instrumento da projeção do poder econômico da China pelo mundo. A força da riqueza que nasce do trabalho do povo chinês e se reproduz principalmente na indústria, disseminada no comércio exterior, já transformou a próspera nação asiática numa potência financeira, revolucionando a geografia econômica e política e tornando mais candente a necessidade de uma nova ordem mundial.