MS: deputados apontam descaso em relação à situação indígena
Para quem trafega pelo trecho da rodovia estadual MS-386 que liga as cidades sul-mato-grossenses de Amambaí e Ponta Porã, na fronteira com o Paraguai, é impossível não notar os barracos onde Mariluce Alves vive com os cinco filhos e sete adultos. No calor amplificado pelas folhas de zinco e pela lona plástica, o pai de Mariluce, José Alves, 71 anos, repousa a perna, atrofiada por um acidente, deitado em uma rede. Das crianças em idade escolar, duas não têm documentos.
Publicado 05/12/2011 09:01
Embora sofram com a situação precária, a família Guarani Kaiowá vive nos limites de uma área indígena devidamente reconhecida pelo Estado. Resignado, o aposentado afirma que, apesar do risco de criar as crianças próximo à movimentada rodovia por onde transitam os caminhões carregados de soja e cana-de-acúcar, aquele é o único pedaço de terra disponível para sua família, já que a aldeia está lotada. Vivendo na região há mais de uma década, Mariluce e o pai não cogitam se mudar para longe da comunidade e pedem a atenção das autoridades.
Entre os relatos ouvidos pelos integrantes da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados durante os dois dias em que percorreram a região a partir da cidade de Dourados, no sul do estado, a situação da família Alves representa o que os deputados – a exemplo de entidades ligadas à causa indígena e de especialistas – classificam como “descaso” com que o Estado brasileiro trata a questão.
“Precisamos da presença do Estado aqui em Mato Grosso do Sul. Sem isso, aqueles que se sentem donos da terra e das pessoas acabam por impor sua própria lei”, afirmou à Agência Brasil a deputada Erika Kokay (PT-DF), destacando a urgência de o país reconhecer a gravidade da violência a que a população indígena no estado está submetida.
Segundo o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), 250 indígenas foram mortos em Mato Grosso do Sul entre 2003 e 2010. Embora muitas das mortes sejam resultado de crimes comuns, como brigas entre os próprios moradores de uma comunidade, a maioria está ligada à luta pela terra que índios e fazendeiros travam há décadas.
“É um ataque brutal. O país não pode permitir que dezenas de indígenas sejam assassinados e continuar a crer que está em uma democracia”, comentou a parlamentar. “Temos que buscar instrumentos para acelerar a demarcação de terras indígenas e resolver o problema fundiário, sem o que, nós não vamos conseguir resolver o conflito. Enquanto isso, temos que assegurar a vida das pessoas que lutam para voltar para suas próprias terras. Precisamos impedir a impunidade e aumentar a estrutura dos órgãos do Estado aqui em Mato Grosso do Sul. Fortalecer a Funai [Fundação Nacional do Índio]. E também a Polícia Federal, cuja atual estrutura é insuficiente para responder à demanda e às condições de tensionamento”, completou Érica Kokay.
Para o presidente da Frente Parlamentar Pelos Povos Indígenas da Câmara dos Deputados, Padre Ton (PT-RO), a solução do problema não é simples e exige, além de mudanças nas leis, maior diálogo entre o Congresso Nacional e os poderes Executivos e Legislativo sobre o tema.
“Constatamos que os índios estão sofrendo um genocídio quase igual ao dos judeus durante a Segunda Guerra Mundial. Vimos a miséria, o confinamento, a situação de fome; ouvimos os relatos sobre as ameaças e desaparecimento de pessoas, inclusive de crianças. Colhemos muitas sugestões e notamos que é necessária a participação do governo federal para resolvermos o problema. E que será necessária a união do Poder Judiciário, Legislativo e Executivo”, disse o deputado.
As sugestões e as considerações dos deputados constarão do relatório que os parlamentares irão apresentar à comissão, ao presidente da Câmara, deputado Marco Maia (PT-RS), à presidência da República e a outras instâncias do governo, como o Ministério da Justiça (a quem a PF e a Funai estão subordinadas) e à Secretaria Especial de Direitos Humanos. “Nosso papel é denunciar as agressões aos povos que são os legítimos donos de nossas terras”, disse Padre Ton.
Funai
A atual estrutura da Fundação Nacional do Índio (Funai) em Mato Grosso do Sul é insuficiente para lidar com o conflito entre comunidades indígenas e proprietários rurais. A afirmação é da própria coordenadora regional do órgão em Dourados, Maria Aparecida Mendes de Oliveira. Localizada na região sul do estado, onde o conflito fundiário é mais intenso, Dourados é a segunda maior cidade sul-mato-grossense.
“A demanda de trabalho é muito grande. Mesmo nas oito reservas indígenas já demarcadas no estado, que abrigam uma grande população, há vulnerabilidade social. E nas áreas menores, onde a densidade demográfica acaba sendo muito alta [devido ao número de habitantes em relação ao tamanho da área], há guetos habitados por uma população étnica desassistida pelo Estado brasileiro, o que leva a um grau de fragilidade muito alto", disse Maria Aparecida durante a visita de integrantes da Comissão de Direitos Humanos e Minorias e da Frente Parlamentar Pelos Povos Indígenas ao estado, no último final de semana.
“Por isso é importante a vinda dos parlamentares à região. Abrir espaço para ouvir quem vivencia esta situação de conflito é fundamental e permite aos nossos representantes sentir de perto e compreender a situação que os índios vivenciam. E também a fragilidade da própria Funai neste momento de conflito e tensionamento”, declarou a coordenadora.
Mortes de indígenas
Entidades ligadas à causa indígena e órgãos governamentais apontam Mato Grosso do Sul como o estado mais perigoso para os índios viverem. Segundo o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), 250 indígenas foram mortos em Mato Grosso do Sul de 2003 a 2010. Embora muitas destas mortes sejam resultado de crimes comuns, como brigas entre os próprios moradores de uma comunidade, a maioria está ligada à luta pela terra que índios e fazendeiros travam há décadas. E, para especialistas, muitos dos crimes entre índios são consequência da situação de confinamento em reservas cuja área se tornou insuficiente para abrigar a todos, da falta de perspectivas ou da perda da identidade cultural, que, entre coisas, ocasiona a derrocada dos tradicionais mecanismos de mediação de conflitos internos.
“Eles são vítimas da miséria, da fome e do preconceito. Isso acaba por contribuir para a violência interna, de índios contra índios, o que tem contribuído para o crescimento da população carcerária indígena”, comentou Maria Aparecida, comparando a condenação de índios por crimes comuns à demora para que os denunciados por crimes contra os indígenas sejam levados a júri.
“Há uma lentidão por parte da Justiça para julgar os culpados pelas mortes dos índios [vítimas do conflito fundiário que se arrasta há décadas]. A cada nova ocorrência é aberto um inquérito policial. Alguns avançam, mas, de 28 processos judiciais, apenas dois foram a júri”, lembrou a coordenadora, referindo-se aos casos de Marçal de Souza e de Marcos Veron.
Também conhecido como Tupã-Ie, Souza foi assassinado em 25 de novembro de 1983, na Aldeia Compestre Ypê, localizada no município de Antônio João (MS), na fronteira do Brasil com o Paraguai. O fazendeiro, Líbero Monteiro de Lima, acusado de ser o mandante da morte do líder guarani foi absolvido em dois julgamentos. O capataz de Líbero, Rômulo Gamarra, acusado de ser o executor do crime, chegou a ser preso, mas também acabou absolvido.
O segundo julgamento a que ela se refere é o dos acusados pela morte do cacique Guarani Kaiowá, Marcos Veron, e de outros cinco índios. Veron foi morto a coronhadas por seguranças contratados para desocupar a Fazenda Brasília do Sul, em Juti (MS), em fevereiro de 2003. Os acusados Carlos Roberto dos Santos, Jorge Cristaldo Insabralde e Estevão Romero foram inocentados pela morte de Veron, mas condenados por sequestros, tortura, lesão corporal e formação de quadrilha. Coube recurso à decisão, mas a reportagem não conseguiu confirmar se a defesa questionou a determinação da Justiça.
O Ministério Público Federal (MPF) vai pedir que a Justiça Federal responsabilize o Estado brasileiro pela atual situação dos cerca de 50 mil índios Guarani Kaiowá que vivem em Mato Grosso do Sul.
Fonte: Agência Brasil