Argentina: crise de 2001 foi fértil em soluções coletivas
Em um pátio quente e de iluminação precária, um grupo forma uma roda de cadeiras, todos tomam assento e começa uma discussão que vai se arrastar pelas próximas duas, talvez três horas. É assim todas as quintas-feiras. Há quase dez anos.
Por: João Peres
Publicado 09/12/2011 20:39
A Assembleia 20 de Dezembro fica no bairro de classe média assalariada de Avellaneda, distante do centro de Buenos Aires. É uma das remanescentes entre as 272 assembleias de bairro que surgiram na Argentina entre o fim da década de 1990 e os primeiros meses do novo século. Uma década de políticas neoliberais dava aos argentinos uma série de dramas comuns. Juntar-se, se não salvava, dava alento.
Os moradores de Avellaneda, como tantos, decidiram abrir um refeitório comunitário para dividir a pouca comida. “O governo não dava nenhuma esperança, nenhum sinal de que estava no caminho certo”, lembra Daniel Muñoz, que até hoje frequenta a assembleia do bairro. “Víamos gente rica com gente pobre. Havia meninos desnutridos, falta de trabalho”.
O refeitório segue funcionando e tem como público principal os imigrantes que residem no bairro. No geral, bolivianos, peruanos e paraguaios que trabalham ou trabalharam em situações precárias ou análogas à escravidão. Daí surgiu outro filhote da associação, a primeira cooperativa têxtil internacional que assegura vender roupas livres de trabalho escravo. A assembleia, atualmente, discute basicamente as centenas de ações judiciais movidas pelo grupo, que trabalha na denúncia de tráfico de pessoas e exploração de mão de obra em confecções.
Não é só comida
Um longo corredor vai revelando ao fundo um galpão amarelo. Dos dois lados há vagões antigos dando pistas sobre a origem do lugar. Próximo a um trilho abandonado cresce uma horta. Do lado de dentro da antiga construção, logo de cara há uma lanchonete, um estande que vende patês, conservas e afins, e assim se vão sucedendo os produtos: queijos, frutas, pães, legumes, verduras, frutas, frangos.
O Galpão do bairro de Chacarita é visitado às quartas e aos sábados por fregueses fiéis. Nem sempre foi assim. “Tínhamos de sair na rua para vender para que os produtores pudessem ao menos pagar o frete e voltar na semana seguinte”, conta Federico Arce, coordenador do local. As portas foram abertas há cinco anos em um dos milhares de símbolos da Argentina dos anos de Carlos Menem (1989-99). Em um país em que o desemprego abunda, sobram espaços vazios.
O Galpão funciona em um prédio outrora pertencente à rede ferroviária. Os trilhos na Argentina, que chegaram a 43 mil quilômetros no segundo governo peronista, na década de 1950, caíram a apenas 8.300 ao fim do menemismo. Nasceram povoados-fantasmas onde antes passavam os trilhos, empurrando mais gente para as inchadas metrópoles.
Em Buenos Aires, a Associação Mutual Sentimento nasceu em 1998 como reação a isto e a muitos problemas mais. Foi a formalização dos encontros promovidos por ex-presos políticos da ditadura (1976-83). A organização discutia as questões daquele momento: saúde, emprego, educação, pobreza. E incentivava as “redes de troca”, que trouxeram à Argentina a figura do “prosumidor”, um consumidor capaz de produzir ou oferecer algo para outros prosumidores.
Clubes organizados
Em 2001, havia na Argentina 4.500 clubes do gênero, a ponto de surgir um projeto de lei que tentava formalizar essas organizações, fundamentais em uma economia empobrecida. “Era algo totalmente novidadeiro em relação ao que ocorre em quase toda parte do mundo. Começar a utilizar a troca era superador, revelador, e foram sabotando porque para certos grupos de poder isso era uma ameaça enorme para seus poderes”, considera Federico.
As redes de troca foram desaparecendo à medida em que surgiram entraves e em que a economia formal começou a retomar algum nível de organização. A Mutual Sentimento, porém, resolveu seguir trabalhando contra um sistema que entende calcado na desigualdade. Ao visitarem produtores de arroz, integrantes da associação compararam o quanto eles recebiam com o valor que se pagava pelo produto final no supermercado. Alguém no caminho ganhava muito dinheiro.
Era hora de atacar as relações de produção. O Galpão é uma iniciativa tímida em tamanho, mas importante em ideias. “As pessoas vêm querendo que alguém lhes empreste o ouvido. Contam que têm determinado problema, que querem tal comida. Isso não se encontra no supermercado. Aqui podemos conversar, trocamos receita”, diz Néstor Ábalo. Aos 72, o técnico industrial aposentado vive desde 1994 no campo. Começou a estudar a produção de orgânicos e logo concluiu que era o melhor para a própria saúde.
Década infame
Durante a “década infame”, os sete hectares que tem foram hipotecados, como os de centenas de milhares de produtores – há quem fale em 200 mil. Quando veio o convite para integrar O Galpão, passou a viajar todas as semanas com mochila e sacolas cheios de frangos e queijos. Trem, baldeação, trem, ônibus. Demorou para começar a dar retorno. Hoje, porém, tem clientes-amigos e comprou uma caminhonete para transportar as mercadorias. “É fantástico quando se ganha dinheiro naquilo que se gosta.”
Enquanto o café esfria sobre a mesa, Federico se empolga falando sobre o açúcar. Lembra que se trata de um produto simbólico nas relações de exploração de trabalho sul-americanas, da escravidão de africanos à servidão de camponeses, e fica feliz por saber que em O Galpão se vende um produto livre de exploração e de intermediários, remunerando diretamente os produtores pelo trabalho.
Para este jovem de Corrientes, a agroecologia introduz o cidadão em um caminho sem volta. “A ideia é poder fazer algo totalmente alternativo, quebrar este ciclo, fora do sistema. Fazer algo totalmente humano no qual a questão primordial seja a concepção pessoal e as relações entre as pessoas. O ser humano não precisou seguir o capitalismo durante a maior parte de sua existência.”
Fonte: Rede Brasil Atual