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"Principal desafio da Argentina é político, não econômico"

Há dez anos a Argentina vivia uma revolta popular conhecida como “argentinaço”. Mais de 800 pessoas tomaram as ruas em protesto contra o modelo neoliberal ortodoxo que desembocou na pior crise social e institucional da história argentina. Hoje o cenário é bem diferente: um país estabilizado, com uma economia crescente e melhoria nos indicadores sociais. Para entender as mudanças e os desafios da nova Argentina, o Vermelho entrevistou o cientista político João Carlos Botelho.

Por Vanessa Silva

Posse Cristina - Blog do Planalto

As melhorias econômicas nos oito anos em que o partido Justicialista, de orientação peronista, está no poder foram ressaltadas por Cristina em seu discurso de posse: “A Argentina deu um salto fenomenal desde que ele [Néstor Kirchner] assumiu com 22% dos votos (…) hoje temos um país que cresceu mais que em seus 200 anos de história e alcançamos o maior salário mínimo vital móvel da região”. Ph.D. pela Universidad de Salamanca e professor de Ciência Política da Universidade Federal de Goiás, Botelho ressalta que no segundo mandato de Cristina o maior desafio será político e não econômico. Acompanhe a entrevista enviada por e-mail:

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Vermelho: A Cristina Kirchner conta com amplo apoio popular e mantém uma boa relação com os demais governos sul-americanos. Apesar disso, a imprensa brasileira e mesmo a argentina insistem em apontar as contradições e em tecer críticas ao processo que está sendo implementado no país vizinho. Como você avalia a situação?

João Carlos Botelho: Fazer críticas, a quem quer que seja, é parte das funções de um veículo de comunicação. Um problema é a tentativa de se colocar na posição de porta-voz da sociedade. Um veículo de comunicação, ou o conjunto deles, não representa os interesses da sociedade em que atua, por dois motivos principais. Em primeiro lugar, cada sociedade se divide em muitos grupos, com interesses próprios. Portanto, não há como representar os interesses de todos esses grupos nem como definir, por conta própria, quais seriam os interesses coletivos da sociedade que a mídia representaria.

O segundo motivo é que cada veículo tem seus próprios interesses e os defende, o que é legítimo. Isso deixa de ser legítimo, porém, quando não há transparência, principalmente ao se tentar oferecer ao público interesses próprios como interesses coletivos da sociedade. Outro problema é que a mídia tem dificuldade em lidar com as críticas que se dirigem à sua atividade e, para não reconhecer essa dificuldade, tende a se apoiar no argumento da liberdade de imprensa. Ora, se a imprensa é livre, a crítica ao seu trabalho também é, o que não significa, necessariamente, uma tentativa de cercear a liberdade de imprensa.

Vermelho: Durante os 8 anos do “kirchnerismo” o país viu sua economia crescer, a pobreza e o desemprego diminuírem. Alguns analistas, no entanto, apostam no fracasso do governo apontando o crescimento da inflação e a fuga de dólares do país. Esses fatores podem ser usados como indicativos de que as coisas não vão tão bem?
JCB: A principal dificuldade dos oito anos de kirchnerismo não está na economia, e sim na política. Néstor e Cristina Kirchner não foram capazes de superar ou amenizar a tradição conflitiva da política argentina. O conflito é parte da atividade política. Uma tradição como a brasileira, de recusar o conflito, também não é benéfica. O conflito permanente, porém, tampouco o é. No período do kirchnerismo, a tradição conflitiva não só foi mantida como reforçada. Os Kirchner tiveram e ainda têm, no caso de Cristina, dificuldade em evitar o conflito. Em vários momentos, inclusive, a impressão é que se busca o conflito como forma de, no caso de sucesso, aumentar o capital político. O maior desafio de Cristina, portanto, é controlar sua tendência conflitiva e buscar influenciar nesse sentido a prática política no seu país. Com a reeleição tranquila [em outubro, a presidente foi reeleita com 54% dos votos] e a situação favorável da economia, o momento é propício para isso.

Vermelho: O PIB do Brasil, maior parceiro comercial da Argentina, ficou estagnado no terceiro trimestre. Isso pode impactar os rumos da economia e, sobretudo, as políticas sociais que estão sendo implementadas naquele país?
JCB: As economias tanto na Argentina como no Brasil continuam aquecidas. E medidas vêm sendo tomadas, ou ao menos planejadas, para que os mercados dos dois países sustentem seus crescimentos e sejam menos afetados pela crise internacional. Assim, por ora, não há alteração de cenário à vista no curto prazo.

Vermelho: Na Argentina, fala-se muito de aprofundamento do modelo neste terceiro período de governo da Frente para a Vitória. Também é um bordão dos apoiadores de Cristina o “Nunca menos”, que indica que não aceitarão retrocessos nas conquistas que tiveram nos últimos tempos. Quais são, a seu ver, os desafios deste processo? Acredita ser possível realmente aprofundar o modelo mesmo com uma classe dominante descontente, como se observa pelo tom das reportagens publicadas tanto aqui como lá por ocasião da posse de Cristina, reportagens que tentam deslegitimar seu mandato.
JCB: A resposta já foi introduzida anteriormente. O maior desafio de Cristina, então, é a superação da tradição conflitiva da política argentina. Antes de apontar outros, é necessário definir o que seria o modelo kirchenerista, como menciona a pergunta. Não chega a ser um modelo, que tenha traços marcantes em relação a outros e possa ser seguido em mais países. O melhor seria falar de características do kirchenerismo. Algumas delas são: 1) a intervenção do Estado na economia; 2) as políticas sociais; 3) a tentativa de diversificar a propriedade dos veículos de comunicação; 4) a política de revisão de anistias e estímulo à punição de responsáveis por violações aos direitos humanos durante a última ditadura militar; e 5) a recuperação da soberania argentina no cenário internacional.

Há desafios, portanto, para sustentar todos esses aspectos. O principal deles talvez se refira ao terceiro aspecto. Os governos dos Kirchner têm sido mais incisivos na tentativa de diversificar a propriedade dos meios de comunicação do que as administrações petistas no Brasil, mas não sem problemas. O enfrentamento aberto com os principais veículos não é o melhor caminho. Cristina tem o desafio de prosseguir com a política de diversificação da propriedade, mas de uma forma que evite a declaração de guerra e que crie mecanismos para que a diversificação se dê a partir da base, ou seja, com a massificação da produção de informação, e não desde o Estado.

Vermelho: Por fim, foi criada no início de dezembro a Celac com intenção de promover a integração latino-americana e caribenha. Como vê este processo? Ele poderá ser um passo adiante com relação ao Mercosul e à própria Unasul, ainda que conte com a participação de Colômbia, Chile, México e outros governos notoriamente pró Estados Unidos?
JCB: A Celac é um processo mais simbólico do que prático. Afinal, com 33 países, é difícil avançar para uma integração mais efetiva, o que nem é o objetivo. A Celac, então, tem um papel no sentidos de simbolizar a insatisfação com os rumos da cooperação em âmbito continental que foi conduzida até agora pelos Estados Unidos e de mostrar que há uma aproximação no âmbito da América Latina e do Caribe que independe dos governos norte-americanos. É claro que o tipo de insatisfação não é o mesmo para todos. Alguns, como o grosso dos países sul-americanos, consideram que o processo continental se limitou a atender aos interesses dos Estados Unidos e têm atuado para reforçar sua autonomia nos cenários regional e internacional. Outros, como muitos países centro-americanos, usam as oportunidades criadas pelo protagonismo da América do Sul para ter meios de barganha com os Estados Unidos. A Celac, portanto, não é nem pretende ser um passo adiante em relação ao Mercosul e à Unasul. Sobretudo para a diplomacia brasileira, o espaço de um processo mais efetivo de integração é a América do Sul, e não a América Latina.