A questão da solidão humana no mundo atual
Dentro de sua linha de sobriedade, de originalidade e, evidentemente, de competência, o cinema argentino nos oferece agora Um Conto Chinês, de Sebastián Borensztein, premiado no Festival de Roma deste ano, que aborda, com suficiente senso de ironia e arguta conotação política, tomando por base fatos reais, a questão da solidão humana no mundo atual.
Publicado 29/12/2011 16:24
O roteiro, do próprio Borensztein, narra a história do dono de uma loja de ferragens, Roberto De Cesare (Ricardo Darin), veterano da estúpida Guerra das Malvinas, que leva vida monótona e solitária, em Buenos Aires, sempre mal humorado, cuidando de seus negócios e cultuando a memória dos pais. De difícil comunicabilidade com o meio em que vive, Roberto tem por hobby colecionar notícias da imprensa sobre casos extravagantes, que ocorrem nos diversos pontos do universo.
A película se inicia, em vista disso, em Fucheng, na China, onde um fato insólito está para acontecer. O artesão Jun (Ignacio Huang) e sua noiva se encontram num barco, navegando serenamente num lago próximo da cidade, captado pela plasticidade da fotografia de Rodrigo Pulpeiro. No momento em que Jun se distancia um pouco da noiva para apanhar as alianças a fim de lhe propor casamento, uma vaca, caída do céu, atinge-a, matando-a instantaneamente.
A ação volta à Argentina. Neurastênico, Roberto, enquanto atende, de má vontade, um cliente, recebe a visita de Mari (Muriel Santa Ana), uma criatura doce, agradável, com quem ele já teve um relacionamento, que está de retorno à cidade, pois vive no interior, numa fazenda. Depois de alguns dias, ele, desfrutando horas de folga, perto do aeroporto, presencia a cena grotesca de um indivíduo ser jogado para fora de um táxi. É Jun, que só fala o idioma pátrio, mas tem gravado no braço o nome de quem ele está à procura, um tio, irmão mais velho de seu pai.
Embora não entenda uma só palavra do que Jun tenta lhe explicar, Roberto resolve levá-lo, em seu carro, ao endereço indicado na tatuagem. Durante o trajeto, Jun, sentindo-se mal, vomita no veículo, o que força Roberto, irado, a deixá-lo num ponto de ônibus ao léu da sorte. Ao chegar a casa, entretanto, sob forte chuva, ele decide apanhar, de novo, o chinês para conduzi-lo até o endereço do tio. Lá chegando, porém, fica sabendo que a propriedade fora vendida há alguns anos e que o atual ocupante não tem indicação do rumo tomado pelos antigos donos, uma família chinesa.
Em vista de tudo isso e, por último, do mau atendimento que recebera numa delegacia, comandada por um verdadeiro bandido, que desejava trancafiar Jun numa cela, como se fora criminoso, Roberto não vê outra saída senão permitir, contrariado, que Jun passe a noite em sua casa: – Eu não estou acostumado a ter companhia! – ele afirma, sem ser entendido, naturalmente por Jun, que apenas sorri, quando lhe são oferecidos, por seu anfitrião, o quarto e a cama para dormir. Desde então tem início o verdadeiro martírio, melhor dizendo, o caos kafkaniano, enfrentado por Roberto para ajudar Jun a localizar os seus familiares.
É quando também o sábio roteiro de Borensztein investe contra a ineficiência do estado burocrático, no caso da Argentina e da China, para resolver os mais comezinhos problemas pessoais de seus cidadãos. O cineasta sabe explorar de sua narrativa – pontuada, a todo tempo, por adequada e eficiente composição musical de Lucio Godoy – a dose certa de crítica (é bom advertir, nesse sentido, os espectadores para que não deixem a sala de exibição antes do término dos créditos finais) ao jogo de interesses comercial e bélico das grandes potências internacionais, que trituram, cada vez mais, a vida dos indivíduos.
Além disso, Borensztein teve o privilégio de contar com um ator soberbo, Ricardo Darin (O Segredo dos Seus Olhos), para personificar o seu protagonista, Roberto De Cesare. Como sempre, Darin domina a cena com entrega total à personagem, para quem encontra o olhar perspicaz e desconfiado, a justeza no uso dos palavrões e a maneira peculiar de comer o pão, sem o miolo, constituindo, com isso, solene e maníaco ritual. Ele, mais uma vez, está magnífico!…
Muriel Santa Ana, atriz e cantora do teatro argentino, como a meiga Mari, tem também, nessa sua estreia no cinema, uma atuação perfeita, digna de nota. E Ignacio Huang, como Jun, mostra, antes de tudo, o grande mérito de atuar, contracenando com Darin e com Muriel, em quase igual condição. Os demais integrantes do elenco estão todos, da mesma forma, muito bem.
De Reynaldo Domingos Ferreira
Em www.cafenapolitica.com