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Patrick Fontaine: O que pensa um banqueiro francês sobre a crise?

O acaso me levou a sentar à mesa com um dos diretores do BNP Paribas, a maior empresa da França e, segundo a revista Forbes, a maior empresa do mundo em valor de ativos, com US$ 2.7 trilhões em 2011.

Por Patrick Fontaine Reis de Araújo*

Fui até o banco, a pedido de uma amiga, buscar alguns documentos que deveriam ser entregues no Brasil; e como voltaria ao Rio em poucos dias, poderia fazê-lo levando-os em minha bagagem de mão. Não sabia quem iria encontrar, sabia apenas que seria um funcionário do banco, que possuía relações com o Brasil e que falava português.

Um senhor de meia idade, simpático, sorridente e com um português perfeito, me recebeu e levou-me até sua sala. Serviu-me um café, abriu as janelas, que davam para o prestigioso Opera em Paris, e sentou-se à minha frente. Estranhei a localização extremamente privilegiada do local e comecei a me perguntar o quão importante na escala hierárquica do banco seria aquele homem. Em meio a conversas introdutórias e superficiais ele soltou: “Você volta pra casa em boa hora. As coisas não vão bem por aqui”. Com ar extremamente insatisfeito e angustiado começou – e não parou tão cedo – a falar sobre a crise na zona do euro.

Até então ele não imaginava que eu era economista, e muito menos que estudava o assunto, e continuou a tecer comentários marcantes. Para poder entender melhor o que estava acontecendo, ousei e perguntei qual era a função dele no banco. Tratava-se do diretor do departamento de empresas e instituições, que, segundo ele próprio, decide a alocação de recursos em empresas de todo o mundo, inclusive na Grécia. Entendi então o porquê de tanto inconformismo. Era um dos 10 mais importantes executivos do banco e estava diretamente envolvido na tragédia greco-econômica que ocorria naquele momento. Apressei-me e comecei a tomar nota.

Lembro-me de tê-lo ouvido dizer (e anotei em letras maiúsculas), repetidas vezes, que os 350 milhões de euros aplicados na Grécia estavam perdidos, e que sabia onde estavam: “do outro lado dos Alpes!”. O diretor fazia referência à Suíça, dando a entender que o dinheiro estava nas contas bancárias suíças de donos de empresas tomadoras de empréstimo gregas. Disse-me que havia na Grécia 5 mil pessoas com renda superior a 100 mil euros mensais, e que muitas – aquelas ligadas ao setor de navegação – não pagavam um centavo de impostos. De fato o diretor tinha razão: estranhamente a legislação grega concede isenção de impostos aos proprietários de embarcações, suas famílias e seus sócios, lembrando que a Grécia é líder mundial neste setor.

Afirmou que o BNP teria sido ‘’convidado’’ pelo governo francês a não vender nenhum dos ativos aplicados na Grécia, sob risco de agravamento da crise.  Acrescentou argumentando que as medidas de austeridade recentemente impostas seriam um suicídio econômico e levariam a economia grega à bancarrota, devido ao efeito negativo sobre a demanda. Com ousadia admirável, sugeriu que a dívida soberana da Grécia fosse reduzida à metade sem ônus ou imposições alguns para o Estado. Disse ainda que a crise afetava diretamente a todos no banco, inclusive os funcionários mais básicos, que recebiam em participações acionárias, as quais haviam perdido muito valor nos últimos dois anos.

O diretor se mostrou avesso às inovações financeiras recentemente desenvolvidas, tais como os hedge funds e os credit default swaps , apesar de minorar a importância dos últimos, que segundo ele têm ‘’volume financeiro insignificante’’, ao contrário dos primeiros. Criticou a ‘’estratégia norte-americana de restrição da saída de dólares’’, afirmando que tal atitude impôs restrições ao funcionamento de bancos ingleses e franceses, levando ao abandono de certas atividades que dependiam do fluxo de dólares.

Até aqui suas opiniões haviam sido surpreendentemente sensatas. O banqueiro se mostrou compreensivo quanto às falhas do atual sistema financeiro e reconheceu que as medidas de austeridade significariam perda de demanda, além de se mostrar simpático à possibilidade de redução da dívida grega, mesmo que isso implicasse enormes perdas para o banco que representa. No entanto, quando lhe perguntei qual teria sido a principal causa para a atual crise, as respostas foram na direção contrária.

Para ele, um dos maiores problemas atualmente na Europa seria a ineficácia do setor público, e citou o sistema de educação francês como um exemplo de desperdício. Os 1,6 milhão de empregados fariam da Éducation Nationale o terceiro maior empregador do mundo, segundo ele algo completamente fora de proporção, vistas as dimensões da França. O Estado estaria sobredimensionado, cobrando impostos em demasia para se sustentar, o que levaria empresários a se estabelecerem no exterior para contornar esses custos: “A ‘fiscalidade’ na França se tornou insuportável! Ganho bem minha vida, mas eu e meus colegas não aguentamos mais pagar impostos”.

Mais uma vez o acaso me foi favorável, já que naquele momento eu estava com um dos livros que havia usado na minha dissertação na mochila: Les Dettes Illégitmes (As Dívidas Ilegítimas) de François Chesnais. Pedi permissão pra ler em voz alta um trecho que dizia que de 1986 a 2007 os impostos para as camadas mais ricas da França haviam sido reduzidos de 65% para 40%, ou seja, a tal “fiscalidade” francesa não estaria tão insuportável assim. Ele se esquivou dizendo que a redução havia sido compensada com novos impostos sobre empregadores. Seus argumentos começaram então a perder consistência, e ele mesmo percebeu isso. Passou a criticar a imigração, a ineficácia da polícia e citou Voltaire para dizer que tinha dificuldades de expor sua opinião em seu país: ‘’Quero ter o poder de poder falar!’’. Atacou também o setor privado, criticando as nove semanas de férias às quais os franceses têm direito, e degringolou-se nos argumentos que se tornaram aleatórios.

Depois de mais de uma hora conversando, sem que nenhuma de suas atribuições interrompesse nossa conversa, virou-se e disse que precisava voltar a trabalhar. Voltou a sorrir, foi novamente simpático e me desejou uma boa viagem, sem esquecer-se de me agradecer pelo favor que eu iria lhe prestar.

O que se tira desse encontro? Aprendi como funciona a cabeça de um banqueiro; ou pelo menos a deste. Em primeiro lugar, percebe-se que ele não se sente responsável por nada do que aconteceu durante a crise. Depois, sua análise sobre fatos passados é razoavelmente esclarecida, se aproximando das análises da academia, com o porém de se isentar de toda e qualquer culpa. Algo alarmante é que o viés classista se mantém presente em seu discurso: ele se enxerga como o trabalhador vitimado da elite, pagador de impostos, enquanto o resto da sociedade é composta por preguiçosos interessados em abocanhar cargos públicos para não ter que trabalhar. Quando uma opinião vem impregnada por este viés, é difícil aproveitar qualquer argumento que seja.

No entanto, o que mais preocupa é projetar o comportamento deste banqueiro para o futuro. O fato de ele não reconhecer sua culpa fará com que suas escolhas continuem a ser perversas para o conjunto da sociedade. Talvez ele não aplique mais em hedge funds, considerando o aprendizado da crise, mas o fará em um novo instrumento financeiro que lhe permita ter maior lucratividade com menor esforço. É precisamente essa busca irresponsável pelo lucro que gera instabilidade nas finanças globais. Lucros sucessivos e crescentes a partir de esforços minguantes são a radiografia de uma bolha; e bolhas estouram. O banqueiro não considera as consequências sistêmicas de suas escolhas, e nem se espera isso dele, já que sua função é defender o interesse da empresa.

Mas durante as crises financeiras, a sociedade em conjunto é penalizada. Talvez seja a hora de começar a questionar a serventia e a coerência de um sistema bancário privado. Cada vez mais a frase do professor Robert Guttmann, da Hofstra University, me parece apropriada: “As finanças são importantes e instáveis demais para serem deixadas nas mãos dos banqueiros.” Na dos privados, pelo menos.

*Pesquisador de Desenvolvimento Tecnológico Industrial, CNPq/UFRJ