Sem categoria

Provocar dor a usuários de crack é afronta aos direitos humanos

Passadas pouco mais de duas semanas desde que a Polícia Militar iniciou a ocupação da região conhecida como Cracolândia, no centro da capital paulista, as controvérsias e questionamentos em torno da ação estão longe de um ponto final. Diretor do Programa de Orientação e Assistência a Dependentes (Proad), da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Dartiu Xavier da Silveira faz parte de uma parcela que rechaça a estratégia escolhida pela Prefeitura e pelo Estado para lidar com o problema.

Em entrevista a Terra Magazine, ele questionou a eficácia do combate ao tráfico de drogas na área – um dos principais argumentos para justificar a operação – e da abordagem que tem sido realizada junto aos usuários de crack. O diretor do Proad diz que, até agora, "não conseguiu ver acerto".

"O grande problema foi abordar uma questão iminentemente social a partir de uma medida repressiva. Mesmo que se fale que além do aspecto social tem o aspecto médico, ainda assim, a melhor maneira de abordar a questão do crack não é através de uma medida repressiva", disse.

Na avaliação dele, é vendida a visão errônea de que a situação na Cracolândia foi provocada pelas drogas. "Isso não é verdade. Já temos vários estudos de campo, tanto no Brasil quanto fora, mostrando que o que leva as pessoas a essa situação é a falta de acesso à moradia, ao ensino, à saúde. A droga é consequência, não é causa. Então, como se propõe uma ação que vai agir na consequência, e não na causa? É como fechar a porta após a entrada do ladrão".

O psiquiatra classificou ainda como um "contrassenso" a alardeada política de "dor e sofrimento" do Estado e da Prefeitura, baseada na ideia de que, com a abstinência, os dependentes iriam em busca de tratamento oferecido pelo poder público.

"É uma afronta aos direitos humanos. Sabemos que as pessoas que vão para a dependência química têm um nível de sofrimento incrível. Causar mais sofrimento a quem está sofrendo é um contrassenso"

Confira os principais trechos da entrevista.

Repressão

"Não estou conseguindo ver (acerto). O grande problema foi abordar uma questão iminentemente social a partir de uma medida repressiva. Mesmo que se fale que além do aspecto social tem o aspecto médico, ainda assim, a melhor maneira de abordar a questão do crack não é através de uma medida repressiva.

É um problema difícil. São Paulo tem recursos, mas a questão é o direcionamento desses recursos. Toda vez que se fala numa ação na área de drogas, as pessoas só pensam em repressão, em tráfico e esquecem que, se o consumidor não é atingido, que é o usuário ou o dependente, você não consegue mudar esse panorama."

Combate ao tráfico

"O grande questionamento é que a ação ao tráfico que esse tipo de medida tem é muito irrisória, porque não está lidando com os grandes traficantes. É uma ponta da cadeia, a menos importante. A maioria do tráfico lá (na Cracolândia) é o tráfico pequeno, aquele indivíduo que trafica para conseguir a própria droga. Não é o traficante que fica rico com a droga."

"Ação política"

"Não se presta nem a coibir, a desmantelar o tráfico. Não é assim que se presta assistência a quem está com necessidades, sejam necessidades mais sociais que tenham a ver com essa população mais excluída, que são moradia, saúde. E nem aborda a questão da dependência. Sabemos que é contraproducente uma medida repressiva na assistência do dependente.

O que se fala por aí é que é mais uma medida marqueteira para chamar a atenção da mídia. Em um ano eleitoral, parece muito mais uma ação política, uma ação que a população menos esclarecida entende que o governo está fazendo alguma coisa. Só que fazendo alguma coisa que não funciona."

Dependente de crack

"É um mito a história de que o dependente de crack é diferente. Trabalho há 25 anos com dependência. No Proad, atendemos a uma média de 600 consultas por mês. Destas, mais ou menos 150, são dependentes de crack. Só que essa proporção é desde 1993, há 18 anos. Ou seja, já existia o problema do crack de forma bem grave para já ter essa demanda.

A abordagem do dependente de crack é tão difícil quanto a do dependente da cocaína e do álcool. Então, é mito. O que o crack tem de peculiar é que, por ser fumado, acaba sendo, vamos dizer, uma cocaína mais perigosa do ponto de vista de risco de problemas cardiovasculares."

Causa e consequência

"É vendida uma ideia errônea de que a situação horrível da Cracolândia é consequência do uso de drogas. Isso não é verdade. Já temos vários estudos de campo, tanto no Brasil quanto fora, mostrando que o que leva as pessoas a essa situação é a falta de acesso à moradia, ao ensino, à saúde. A droga é consequência, não é causa. Então, como se propõe uma ação que vai agir na consequência, e não na causa? É como fechar a porta após a entrada do ladrão."

Internação compulsória

"Sou contrário por vários motivos. A melhor forma de tratar um dependente não é por regime de internação. A eficácia do tratamento é a maior se ele for ambulatorial. A pessoa levando a vida dela tal como ela é. A situação de internação é muito artificial. Se você estiver num local isolado, internado, seja lá onde for, pode ser até uma prisão, é mais fácil ficar sem usar a droga. Agora, na hora que volta para a vida normal, para os problemas, para as dificuldades, aí que vem o desafio das drogas. É por isso que muitos recaem quando saem da internação."

"Discurso falacioso"

"Um outro questionamento: qual é a motivação de se propor uma internação? Internação é mais cara do que outros tipos de intervenção. Se for pensar na questão social, seriam necessários educadores de rua, pessoas trabalhando em campo para identificar o dependente e levá-los a um sistema de atendimento ambulatorial. Tudo isso é muito mais barato do que a internação. O Estado não tem nem capacidade para absorver todos esses dependentes em regime de internação. É um discurso falacioso. Quando se fala em internação compulsória faz lembrar as medidas de higienização, ou seja, estou tirando as pessoas da rua porque elas me incomondam. Vou colocá-las num "depósito". Fico imaginando depósitos de drogados porque não temos estrutura hospitalar para tratamento."

Rede de atendimento

"A rede é muito precária. Temos diversos serviços ambulatoriais, que são os Caps AD (Centros de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas), do governo federal. Alguns são do governo estadual em colaboração com o governo federal. Alguns Caps são modelo de atendimento. O problema é que nem todos têm equipes muito bem treinadas. Acho que a saída seria a capacitação dessas equipes dos Caps."

"Dor e sofrimento"

"É uma afronta aos direitos humanos. Sabemos que as pessoas que vão para a dependência química têm um nível de sofrimento incrível. Causar mais sofrimento a quem está sofrendo é um contrassenso."