FST: A crise da esquerda e a mula sem cabeça
O Fórum Social Temático 2012 se ocupa, “apenas”, de dois temas: a crise do capitalismo e a destruição do planeta. Sob o pretexto de preparar a Rio + 20, muitos que aqui estão parecem comprometidos com uma crítica radical do que chamam de “capitalismo verde” ou “econeoliberalismo”. Nessa crítica, além dos balanços e das lutas contra barragens, sobressai a atualidade do embate político e teórico entre Reforma e Revolução.
Publicado 27/01/2012 12:26
Gonzaga Belluzzo, em debate no FST / Foto: Imagem de vídeo feito pela Carta Maior
O economista da Unicamp e Facamp, Luiz Gonzaga Belluzzo, disse quarta-feira (25), numa entrevista coletiva na Carta Maior, que esta dicotomia deveria ser revisitada (no seu caso, em defesa de um reformismo radical).
Mais do que um debate sobre a organização dos trabalhadores frente à história, no entanto, Belluzo propõe a retomada do enfrentamento de dois dos aspectos mais fundamentais analisados por Marx: a importância histórica do mercado e o privilégio do presente.
Dentre os participantes das centenas de atividades agendadas (fora as canceladas) neste Fórum, certamente o pessoal que faz tijolos com garrafas pet usadas pode estar presente. Como se sabe, tijolos feitos com garrafas pet são considerados de alta resistência e grande capacidade de impermeabilização.
De baixo custo e fácil manuseio, torna-se um candidato mais do que habilitado a entrar no mercado da construção civil. Talvez se possa resumir um dos problemas e dificuldades que frequentam os debates neste Fórum como sendo o do significado de uma empresa de tijolos de garrafas pet usadas.
Por exemplo, seja como cooperativa ou como empresa (pequena, média, tanto faz), poderia a Cia Garrafas Pet Recicladas Construção Ltda ser contratada pela Coca Cola, num consórcio liderado pela Odebrecht e pelo BNDES, para a construção de uma grande barragem na fronteira da Amazônia com a Venezuela?
Uma parte dos ativistas que estão aqui dirão sem tergiversar que uma empresa dessas não pode ser outra coisa que um exemplo da ameaça do “capitalismo verde”. Outros, mais silenciosos e pragmáticos, defenderão que a estrutura cooperativada e a troca da Coca-Cola, quem sabe pela Ambev, seriam não apenas fatores de legitimação do empreendimento imaginado, como um elemento de envergadura geopolítica para o Brasil. Esta hipótese experimentada não pretende ser usada como provocação, apenas. O que se pretende, trazendo-a à baila é enfrentar um problema mais difícil do que as recusas e escolhas “verdes” e “carbon free” dão a ver, nas revoltas anti-barragens ou a favor do “mercado ecológico”.
No debate da manhã de quinta-feira, promovido pela Carta Maior, nenhum dos participantes falou da crise ambiental. Não se sabe se algum dos debatedores tem conhecimento dos empreendimentos em tijolos de garrafas pet e qual a sua opinião sobre a construção de Belo Monte. No entanto, se prestarmos atenção ao que foi dito e debatido, talvez se torne possível, se não evitar Belo Monte, ao menos não sucumbir às ameaças que assombram a defesa do meio ambiente.
O marco da atualidade do debate sobre Reforma e Revolução nos termos propostos por Luiz Gonzaga Belluzzo talvez ajude a enfrentar a grave crise ambiental: trata-se de revisitar o conceito de mercado e de retomar as lições marxistas sobre a transformação do capitalismo a partir dele mesmo, atualmente. Talvez assim o mercado global (porque, como se sabe, não há outro) deixe de ter a atual configuração de uma “mula sem cabeça”, como diagnosticou Belluzo, e passe a ser algo menos estúpido (com todo respeito às mulas) e mais conscientemente dirigido.
“O sistema financeiro virou uma mula sem cabeça” mas se engana, alerta o professor, quem pensa que a crise é apenas financeira. Se a crise é a do capitalismo realmente existente, e parece afinal que todos os participantes concordaram a respeito, a fragmentação, a perda de acúmulo de consciência e o afastamento da juventude da luta pelo poder configuram um quadro preocupante: a crise da esquerda dificulta a ideia mesma de “rumo”, no século XXI.
“Não existe equilíbrio na crise”
Mario Burkun, economista argentino da Universidade de Buenos Aires, chamou a atenção para o que se tem de pensar a respeito da crise. Levando em conta o que chamou de mudança na relação espaço-temporal da produção capitalista, que se apartou do aspecto social em seu metabolismo, e também a consequente autonomia quase total do sistema financeiro sobre o produtivo, Burkún chamou a atenção para a forte dissociação entre as oscilações da crise.
Nós, a América Latina, estamos, disse o economista argentino, no “pólo positivo” do atual estágio da crise. Além de não se ter hoje garantias de que essa posição não mudará, deve-se reconhecer que “o neoliberalismo segue sendo a ideologia dominante”, de modo que é preciso se começar a pensar a partir de um outro lugar, que não o dos governos voltados ao controle e gestão do sistema. “Temos de pensar em outras coisas: 1) não existe equilíbrio na crise; 2) não há solução de estabilidade”. Para Burkún, a coincidência do tratamento do Estado entre esquerda e direita configuram o problema político fundamental.
Avaliando as dificuldades de refazimento do país, depois da grave crise de 2001, o professor argentino ponderou sobre o que vem pela frente. “Depois da crise, tivemos muito trabalho para refazer as coisas, com uma juventude sem confiança e com um quadro partidário fragmentado”, ponderou. Hoje, com a implementação de políticas sociais voltadas aos setores mais fragilizados da sociedade, passados já alguns anos do início da recuperação econômica argentina, o problema assume outra face: “As medidas de assistência dos mais despossuídos via políticas basicamente copiadas do Brasil dinamizaram a economia, tiraram os de baixo da miséria, melhoraram as suas vidas, mas não houve acompanhamento dos níveis de consciência”.
Para se ter uma ideia mais ou menos clara do que a expressão “níveis de consciência” quer dizer talvez a intervenção do diretor do Le Monde Diplomatique seja esclarecedora. Ignacio Ramonet começou a sua fala com uma retificação claramente europeia do título do painel: “eu creio que o título não é este, da crise do neoliberalismo, mas a crise da esquerda e a neo-energia do neoliberalismo. Porque esta é a realidade que estamos enfrentando. Vou falar mais da Europa. Mas a ideia que temos na Europa é que efetivamente houve a ilusão de que o neoliberalismo entrava em crise, quando o Lehman Brothers caiu, em 15 de setembro de 2008. Quando este banco quebrou, todo mundo pensava que o ciclo neoliberal tinha terminado. Pensava-se que tinham chegado ao fim os 30 anos de ciclo de neoliberalismo”, lembrou Ramonet.
Falaram, inclusive Sarkozy (quer dizer, não somente a esquerda), na necessidade de regulação dos mercados e no regresso da política, exatamente para se salvar o capitalismo.
“Assim”, observou, “os Estados se endividaram para bancar os mercados e lançaram políticas de empregos subvencionados. E, em 3 anos, os mercados se recompuseram e se voltaram de novo contra os Estados. Nas atuais reuniões de cúpulas já não se fala mais do regresso do Estado, na necessidade de políticas neokeynesianas e os mercados voltam a se impor sobre os Estados”.
O fato de os estados e da própria União Europeia não terem reagido com relativa autonomia ou com decisões mais altivas, simplesmente, quando da eclosão da grande crise, estabeleceu as condições para a intervenção do FMI na região, hoje.
Mas, questiona Ramonet, “como é que a União Europeia, que é a primeira potência comercial do mundo, que tem alguns dos países mais importantes do mundo, como é possível que o Banco Central Europeu necessite da ajuda do FMI? Tecnicamente, não precisa. Porque tem dinheiro e reserva internacional. Necessita para impor políticas de ajuste, que o FMI sabe aplicar com mais controle. O recurso ao FMI é político, para que ele traga o seu método de intimidar aos países europeus”, denunciou.
A crise é da esquerda, avalia o jornalista francês, não somente porque o neoliberalismo segue triunfante, mas porque foi a própria esquerda, ou soi disant esquerda (a atual socialdemocracia europeia) que viabilizou essa submissão aos ditames da finança. O saldo dessa interferência “reabilitada” pela injeção de recursos e garantias estatais (na verdade, hipotecando e executando direitos sociais) é a queda de 8 governos desde que estourou a crise, em 2008 (Portugal, Irlanda, Dinamarca, Eslováquia, Grécia, Itália e Espanha) e o avanço da extrema direita, a mais regressiva, racista e irracional.
“No caso da Grécia e da Itália, o mercado impôs membros para os governos. Um fenômeno de golpe de estado financeiro. E não houve nenhuma reação da esquerda do governo. Só reação da população, nas ruas. Por um lado, a consequência é o avanço da extrema direita (antissemita, racista), que está no governo da Grécia e, por outra parte, um afastamento da política por parte da sociedade, que passa a rechaçar a política. Do Chile a Israel, passando pelos EUA, Londres e em muitos lugares na AL. Ou seja, temos uma crise em que o único que está se portando bem é o neoliberalismo, enquanto a política, a democracia e a sociedade estão padecendo de uma crise da qual não sabemos como sair”, constatou Ramonet
A intervenção do professor Belluzzo voltou-se a alguns dos temas clássicos da economia política e retomou o que já tinha observado na coletiva de quarta (25). “Vou me concentrar no tema das alternativas das esquerdas. Ontem eu disse na coletiva que os governos, ao socorrerem os bancos, nada mais fizeram do que cumprir os seus desígnios, por conta do caráter coletivo da gestão capitalista que é exercido por essas instituições. Eles são os gestores do crédito. Agora, há mesmo uma crise da finança?”, questiona, para traçar um pequeno histórico do desmonte do estado do padrão ouro do pós guerra, em que a estrutura fiscal era basicamente progressiva e que supunha um alto padrão de regulamentação dos mercados.
“Quando falamos da crise da finança, estamos escondendo alguma coisa”.
Para Belluzzo, a crise é da forma de acumulação do capital. As empresas produtivas também foram para a finança, lembra o economista, referindo os privilégios dos acionistas no estabelecimento dos rumos dos investimentos e demais decisões empresariais dentro do sistema produtivo. Um dos maiores problemas, segundo o economista, é que que o neoliberalismo requereu uma “tremenda regressividade fiscal”, o que é um fator de concentração e portanto de desigualdade.
“Nós perdemos essa batalha em meados dos anos 70. O governo Miterrand tentou, em 82, e foi obrigado a voltar para trás. Nós perdemos isso nos anos 70 (porque eu me incluo nessa corrente que acha que a economia deve aos cidadãos uma vida boa e decente). E nós devemos começar a discutir qual é o ponto central dessa maquinaria, que é o sistema financeiro, que é (tem muita gente que não leu o Livro III do Caítal, então não sabe disso), que é o capital par excelence”.
Para Belluzo, a sua opinião é a de Marx: o socialismo vai nascer da luta política transformadora do capitalismo. “Não vamos reinventar a sociedade, vamos partir do que o capitalismo inventou. Isso o Lenin também disse. Eu tô dizendo uma banalidade. Quando Lênin viu o sistema de crédito do capitalismo, disse: taí uma grande novidade. Não devemos confundir o mercado com o capitalismo. Temos de controlar os elementos que produzem o mercado, temos de fazer com que as relações mercantis funcionem para o bem estar da comunidade”, concluiu.
A seguir, na segunda parte do texto, vamos acompanhar a intervenção do Alto Representante para o Mercosul, Samuel Pinheiro Guimarães, bem como os debates que se seguiram às falas dos convidados. Talvez assim a crise da esquerda frente aos desafios impostos pela indústria possível dos tijolos de garrafas pet usadas venha a ser tratada em perspectiva.
Belluzzo citou Adorno, no debate que se seguiu, a propósito do que Burkún chamou de “ganhos de consciência”, acima: “não há liberdade sem compreensão”. O embate sobre Reforma e Revolução, como se poderá ler, é menos trivial e arcaico do que parece.
Fonte: Carta Maior