Sem categoria

Cap. 13 – Reunidos num ato lutuoso…

…queriam se ver livres do vexame das rezas

Xisto sumira na semana do pré-carnaval. Para não pensarem que fracassara de vez, dissera que ía à Bahia para se juntar a negras de patuás e miçangas. Acreditava no candomblé, sem confessar a crença. Com Chica, estimulara o arroubo pelos mistérios; incitara-a com minúcias colhidas em almanaques, em conversas com pais-de-santo. Falava como um mago cujos aconselhamentos nenhuma donzela podia descuidar. Mencionava poderes; na frente dos camaradas, no entanto, não tinha artes de conferencista. Com Chica, misturando dialética e umbanda, era um prestidigitador.

Os santos de Salvador, ao que parece, não lhe deram boas-vindas. Imaginara entrar num terreiro do Pelourinho, ser recebido por uma negra vistosa, coroando-o com um barrete azul. O propósito era integrar-se no candomblé baiano, provar sua competência como conhecedor das artes do batuque. Um dia, pensara, diria tudo a Chica. Mas voltou sem qualquer miudeza, deprimiu-se como um desvalido. Bem vestido, calça com vinco combinando com a magreza das pernas, e camisa com mangas compridas para esconder os braços esticados. A barbicha crescera solta, as costeletas enroscadas em fios crespos; as sobrancelhas seguiram as costeletas, feito trepadeiras encravadas no rosto.

Entrou na oficina de Chica arrastando os pés nas alpercatas de couro. Queria dar notícias e ouvir outras. A Chica pareceu um vodum falido, buscando o poder extraviado.

– Xisto! Eu o tinha como um mestre-de-cerimônias a essa altura…

Ele riu sem graça.

– Soube de sua briga com as beatas, acompanhei pelos jornais. Como está?

– Recuperada. As beatas continuam rezando contra mim, só isso. A campanha teve fim. Aceita um cafezinho?

– Prefiro chá de canela. Voltei para me renovar. Onde estão todos?

– Maújo está trabalhando. Não tenho notícias dos outros. Foi à casa de Gertrude?

Preferiu não responder. Viera primeiro visitar Chica. Ela intuiria fácil. Achou conveniente não confessar.

Julgou as sardas de Chica mais visíveis, a pele sem rugas, viçosa, os ombros largos; fizera-se mulher de tronco, com quadris providos. Perplexo, Xisto pensara que a mulher com o pescoço fino, cheirando a patchuli, seria sempre a diva cativa de seus aconselhamentos, educada na culinária vegetariana. Sabendo dos gostos de Maújo, ele adivinhou as moquecas no leite de coco. A suspeita aumentou quando ela julgou sua aparência.

– Você está magro, pálido… Esteve doente?

– Não me dei com a cozinha baiana, é diarréica.

– E os vegetais?

– Não há um quarteirão que não cheire a peixes e crustáceos. Era difícil achar um restaurante com cozinha vegetariana. Só em casa de alguns amigos, artistas solitários. Mas eu não podia fazer as refeições todos os dias em suas casas. Depois, a família avisou que não podia mandar mais dinheiro.

– Como vai seu pai?

– Muito doente. Acho que não passa deste ano.

– O que ele tem?

– Câncer na próstata. Já não consegue urinar.

Sentiu-se sem forças para atraí-la a uma conversa com enfeites. Sempre que isso acontecia, ocultava-se em reticências, com os três pontinhos escritos no seu rosto. Agora, com a notícia de que o pai sofria com um tumor, podia desfrutar da atenção de Chica. Ela, sem rapapés de fêmea, repôs os restos de energia que ele deixara nos rituais do Pelourinho, nas ladeiras de Salvador. Xisto, olhando para o mar na beira do Forte de São Marcelo, pensara em se jogar nas águas; arrepiou-se só de pensar que ela podia saber.

– E não tem jeito?

– Já foi operado. Agora a doença voltou. Toma remédio para aliviar o sofrimento, mas os médicos já desenganaram.

Bebeu o chá como se na Bahia não houvesse, sentado num banquinho de madeira esculpida, encostado à parede. Em sua frente, Chica, sentada no chão sobre um plástico grosso onde espalhara a terracota úmida; tinha ferramentas e uma toalha que só usava se fosse apertar a mão de alguém. Não apertara a mão de Xisto, deixara-se abraçar por ele, com os braços e ombros cheirando a terra. A Xisto pareceu estar redescobrindo a seiva conhecida de seu olfato. Chica, como de costume, não se deu conta do próprio cheiro, dos suores nos poros luzidios. Conversou sem tirar os olhos das surubas, no contato macio de suas mãos.

– No carnaval, volta para os Filhos de Gandhi ?

– Não sei. Depende de meu pai. Talvez eu tenha que passar o carnaval sem sair de casa. Minha mãe não tem doença, mas não tem mobilidade quando anda. Tem a cozinheira, mas essa não sai da cozinha.

– Se é apenas uma cozinheira…

– Está há vinte anos lá em casa.

– Coitada.

O sol mostrou-se todo às três horas. O calor, de mistura com a morrinha dos esgotos, invadiu o terraço. Chica ofereceu doce de goiaba. Ele, magro e sem apetite, recusou. Aproveitou, ela, para espalhar as estatuetas nos fundos da oficina, na plataforma de cimento de um poço em desuso. Despediram-se sem compromisso de que voltariam a se ver, sem votos de felicidade recíproca. Xisto não quisera, não quis saber se ela era feliz com Maújo; doíam-lhe os propósitos de felicidade pessoal. Não queria confessar-se a ninguém, só falar mal do xinxim de galinha que comera em Salvador. Achara conveniente esperar pela renovação a que se referira; podia ser na Ribeira ou no Mercado Modelo.

Na semana seguinte, um médico a tarde inteira no quarto do pai de Xisto. Do aposento, pela porta semi-aberta, o clorofórmio untado à pele do moribundo escapou para a sala, antecipando o velório.

Chica recebeu o telegrama com a notícia da morte. O corpo, velado na capela do cemitério dos ingleses, onde a família tinha jazigo perpétuo. Viúva e filho comunicam, dizia o aviso fúnebre, intimando a presença de amigos. Chica não faltou. Conhecera a mãe de Xisto, almoçara em sua casa; instigara o sonho de que, um dia, seria a mulher dele; sem embargo de crenças. De preferência de papel passado, como dissera a velha nos cantos da casa.

– Não quero ir sozinha.

– Não sei qual será sua reação com a minha presença no velório. Ele não mandou telegrama para mim.

– Você vai me acompanhando, Maújo. Ele não é seu inimigo. Se há ressentimento, sua ausência só vai confirmar isso.

– Não sei se ele pensa assim.

– Assim ou de outro jeito, preocupe-se apenas comigo quando chegar lá.

– Não precisa mais falar. Beije-me.

Junto à coluna de mármore polido, Gertrude absorveu a frieza da pedra. Viu Maújo com Chica, sem examiná-los. Caetano, de seu lado, imitou-a; não deixou de observar Xisto ao lado da mãe, na frente do altar. A velha, conformada com a perda do marido, não chorou, rendida ao fato. O filho cruzara os braços, olhando para o piso, catando respostas indistintas. Oferecera-se em holocausto na mesa de sacrifícios atrás de si. Respondeu à indagação no rosto de Caetano; foi em sua direção e perguntou no ouvido:

– O que Maújo está fazendo aqui?

Chica abraçou a viúva, sussurrou-lhe os pêsames.

Xisto voltou para junto da mãe, ouviu o pesar de Chica no curto trajeto. Sentiu estranheza por ver as duas perto uma da outra, a ex- e a atual parelha de Maújo. A memória resgatou a rumba no Estrela, a fuga de Chica feito uma ave errante, a reunião com o propósito de forçar a autocrítica de Maújo.

Xisto queria expulsar Maújo do recinto.

A vida reuniu-os num ato lutuoso, purgando-os sem que se dessem conta. Queriam se ver livres do vexame de orações, balbuciadas por velhas voluntárias de sacrifícios.
Xisto baixou a cabeça, marcial, pensando no volteio que sua vida dera. A depressão o fez pensar que, se não tivesse viajado, teria cuidado do pai, talvez evitado a morte.