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O mito da “fundação francesa" de São Luís

Este ano a elite ludovicense (2) (prefeitura de São Luís, governo do Estado do Maranhão e grupos econômicos que operam por aqui) celebrará os 400 anos da “Fundação Francesa de São Luís”, um mito que surgiu em 1912, quando a capital maranhense completou 300 anos.

Por Joaquim Costa de Souza Filho (1)

São Luís

O objetivo das festividades é envolver as populações maranhenses, que da janela da casa, das telas de TV ou mesmo dos visores de telefones celulares assistirão a sonhos e realidade desfilarem juntos e misturados, revelando uma grande oportunidade para se discutir a cidade que, apesar do orgulho narcísico de suas elites, vive ao abandono e desprezo delas mesmas. Essa imagem, a ideia da Fundação Francesa de São Luís, ingressou oficialmente nas últimas décadas nos sistemas de ensino e hoje ocupa lugar central da programação midiática local.

É amplamente aceito que para a elite exercer o seu domínio não lhe interessa o esclarecimento das amplas massas populares, como por exemplo, sobre a relação entre orçamento público e desenvolvimento humano. Ao contrário, nas questões norteadoras da sociedade a confusão ou o “desentendimento” toma conta do “senso comum”. É o caso deste tema que, nos parece, ainda não foi bem colocado para discussão, o que gera muita confusão, alimentando várias opiniões discrepantes. Para uns a cidade de São Luís teria sido fundada por portugueses, para outros por franceses, holandeses, nativos indígenas e outros povos. Também há quem diga que agora isso pouco importa.

Mas qual é o caráter deste enunciado, uma imagem concebida no “mundo das ideias” provincianas, mas que encontra abrigo na pós-modernidade?

Nosso objeto de análise não é propriamente a fundação da cidade de São Luís. Tomando como pressuposto o domínio da elite ludovicense no campo das ideias sobre as demais populações do Maranhão, nos interessa o “Enunciado Ludovicense” (3) da fundação francesa de São Luís que, fundamentado em uma cerimônia religiosa, apresenta-se em um contexto em que é retirado da reflexão seu conceito central: fundação. Ora, a partir dos dicionários de língua portuguesa, por fundação entendemos o ato de assentar os alicerces de um edifício; levantar os fundamentos de uma construção. Ademais, para além da materialidade poder-se-ia admitir as intenções manifestadas ou projetos revelados.

Embora não se considere a verdade como dogma, também não nos aventuramos no horizonte aberto pela pós-modernidade onde não cabem verdades duradouras. E trabalhando com a hipótese de que o que está em questão não é a “fundação de São Luís”, mas o enunciado sobre este fato, nesse quadro obscuro e confuso – em que mesmo aqueles que não se identificam com os interesses da elite reproduzem o discurso em voga – conservamos como fio condutor a busca da verdade racional e objetiva, na qualidade de uma necessidade especificamente humana pelo seu valor produtivo, educativo, moral, estético e especialmente político.

Nosso problema é o Enunciado Ludovicense da Fundação Francesa de São Luís, isto é, sua natureza. Objetivamos tirar o problema da confusão em que se encontra no campo da ciência e da cultura e compreendê-lo em uma ampla perspectiva política. Com isto pretendemos enquadrar essa problemática em bases racionais, ao alcance do entendimento dos “simples mortais”, de modo a permitir àqueles que pretendam contribuir para o debate que o façam claramente. A importância desta reflexão corresponde à necessidade de se entender um discurso que envolve politicamente a capital do Maranhão, um dos estados naturalmente mais ricos da federação brasileira, mas que tem suas populações sobrevivendo como as mais pobres das Américas.

O Enunciado Ludovicense da fundação francesa de São Luís
 
“A História Maranhense é uma das mais descuradas do Brasil. (…) É natural que esteja recheada de mitos, a começar pelo da fundação de São Luís (…) Tais mitos ou sonhos públicos são enunciados às inteligências (…) a desabrochar nossos jovens para a Vida e para a Pátria, no que se impõe desabusada revisão, embora com risco de antipatia e o dissabor de ferir tabus consagrados”. (Lima, 1993. Apud LACROIX, 2008. Grifo nosso.)
Tomemos dois importantes acontecimentos para compreender o problema. No plano da arte e da cultura popular destaca-se o mesmo enredo da fundação francesa… cantado e decantado pelas escolas de samba e grupos carnavalescos locais. Diante da “unanimidade” que a ideia alcançou, preparou-se como momento áureo desse enredo o desfile da Escola de Samba Beija Flor, do Rio de Janeiro. Nesse processo, no afã de promover suas doutrinas e ideologias e procurando adesão para reeditá-las na cultura nacional, a elite ludovicense restaurou e reuniu histórias, mitos, lendas e fantasias para mostra-las na Marquês de Sapucaí. Já no plano da cultura dita erudita destacamos o ciclo de debates promovido pelo Instituto Histórico Geográfico do Maranhão (IHGM).

Sob a responsabilidade da “Comissão de Comemorações dos 400 anos de fundação de São Luís”, o Instituto Histórico e Geográfico do Maranhão – IHGM iniciou um círculo de debates em 28 de julho de 2011, em uma sequência de seis seminários que irão até o dia 12 de setembro de 2012, com os seguintes temas: 1) As primeiras tentativas de ocupação até a consolidação da conquista da terra; 2) Do Reino Unido português ao Império Brasileiro; 3) Maranhão Republicano; 4) A cidade de São Luís foi fundada por franceses; 5) A cidade de São Luís não foi fundada por franceses; 6) A cidade de São Luís foi fundada por quem? Conclusões possíveis.

Considerando a plausibilidade e licitude de possíveis conclusões legitimadoras de peças publicitárias de interesses privados sem grandes compromissos com a história, retomamos o livro “A Fundação Francesa de São Luís e seus mitos” (São Luís: Editora Uema – 2008). Neste livro, lançado em 2001, a professora Maria de Lourdes Lauande Lacroix (4), após uma revisão desabusada da historiografia local, afirma categoricamente que desde o século 17 ao início do século 20 a historiografia regional considerava os franceses invasores das terras maranhenses e não fundadores de São Luís. Ora, se a própria historiografia registra que a construção da cidade teria sido iniciada após a expulsão dos franceses por Jerônimo de Albuquerque Maranhão na Batalha de Guaxenduba, ela questiona: o que teria levado os ludovicenses a dar uma nova interpretação aos acontecimentos?

Sobre a Missão de Daniel de LaTouche, o Senhor de LaRavardière que aportou no Maranhão em 1612, diz que o curto tempo em terras maranhenses e outros interesses ainda relativos à região norte do Brasil não permitiram àquela empreitada fundar uma cidade em São Luís. Citando Berredo a historiadora afirma ainda que o Forte São Luís não passava de uma “débil força de pau a pique”. E mais: “Convém grifar que o nome da cidade invoca o querido santo francês Luís IX, canonizado muito antes do descobrimento do Brasil, muito reverenciado pelos fiéis portugueses, e não uma homenagem prestada a Luís XIII”.

Em consonância com suas informações a confusão começa em 1912, quando surge a ideia de fundação francesa em substituição à versão original. José Ribeiro do Amaral, um importante intelectual, primeiro presidente da Academia Maranhense de Letras, no trabalho Fundação do Maranhão faz uma nova interpretação dos fatos e declara que a fundação de São Luís se deu através de uma missa celebrada em 8 de setembro de 1612 – a segunda missa celebrada por franceses em terras maranhenses.

 

“Este acto, que, pela magnificência e excepcional solenidade de que se revestiu, é considerado como o verdadeiro – auto da fundação da cidade -, foi, sucessivamente, sendo seguido de outros, complementares…” (Ribeiro do Amaral, apud Lacroix, cit)
 
Essa ideia é legitimada por outro importante intelectual local – Mário Meireles em 1962, no livro “França Equinocial”.

Na polêmica registrada (5) em matutinos locais (2001-2005) que se seguiu ao lançamento do livro, estão demarcadas as posições da autora e dos guardiões dos enunciados ludovicenses. Naquele debate suas teses não foram refutadas, aliás, em razão do incômodo de sustentar cientificamente tal enunciado pela ausência das marcas francesas por aqui, o problema é deslocado do escopo epistemológico para o nível da consciência em que os registros não são lidos pela razão, onde não há discurso lógico, mas mitológico.

Segundo o professor Flávio Reis (Departamento de Sociologia e Antropologia da UFMA) ter aquela cerimônia religiosa como “auto de Fundação” da cidade exige uma operação transformadora dos significados dos acontecimentos históricos. Embora possa ser considerada uma “tradição inventada” 300 anos depois da presença francesa em terras maranhenses, atualmente essa transformação é operada sem cerimônia, o que pode ser constatado sem contestação.

Em 13 de junho de 2001 (jornal O Estado do MA) um notável representante da Academia Maranhense de Letras (AML), Jomar Moraes, considerando que embora o referido livro tenha um estilo alucinante e que a autora disponha de grande “habilidade argumentativa na defesa de seus pontos de vista… eles seguem na contramão de fatos consabidos, irrefutáveis e devidamente registrados pela história”. Em outro artigo (jornal O Estado do MA, 04/09/02) diz que naquela solenidade, franceses e índios estavam em “atitude de contrição diante da cruz chanteada em memória daquele ato fundador”. O intelectual ainda se refere aos mesmos fatos como as “solenidades que oficializaram o domínio espiritual e a conquista administrativo-militar da França sobre a nascente colônia…” (jornal O Estado do MA,  05/10/05). Outro membro da AML, Abel Ferreira, (jornal O Estado do MA, 12/09/02) afirma, referindo-se à missa: “Contudo, tal cerimônia ocorreu e, mesmo que não tivesse essa finalidade, pode ser considerada como marco zero, o termo inicial da História de São Luís, especialmente porque não há registro de que os portugueses tenham realizado atos cerimoniosos de fundação da cidade”. (grifos nossos).

Na Revista eletrônica do Instituto Histórico Geográfico do Maranhão de setembro de 2011 (acesso em 23/nov/11) pode ser lido: “Uma missa rezada por capuchinhos e a construção de um forte marcaram a data de fundação de nova cidade: 8 de setembro de 1612”. Já na revista Portal da Ciência, da Universidade Federal do Maranhão (Ano I, Nº I – p.50. – Outubro 2010), se lê: “Em 2012, ano que a cidade de São Luís comemora seus 400 anos, (…) A capital do Estado, fundada por franceses em 8 de setembro de 1612…”. (grifos nossos).

Como se vê não se trata de um lapso histórico ou uma opinião isolada, mas de um esforço concentrado reunindo diversas instituições para defender a ideia de fundação francesa como uma “evidência indiscutível”, uma verdade mitológica, um mito de fundação. Aí surge mais um problema: é possível caracterizar a fundação de São Luís como um acontecimento mitológico, do tipo Mito de origem (de fundação)?

Sobre o mito

Embora superficialmente, aqui elencamos alguns aspectos do mito, necessários à compreensão deste problema. Desde a filosofia clássica grega o termo mito vem sendo criticado e rejeitado. Quando a história enquanto ciência positiva procurou encontrar as bases fundamentais sobre as quais se sustenta irrefutavelmente um enunciado em geral esse termo ganhou uma acepção correspondente a “fábula”, “invenção”, “ficção”. Atualmente o mito de origem é aceito como era compreendido pelas sociedades arcaicas, como designação de uma “história verdadeira”, exemplar e significativa – pelo seu caráter sagrado. Ou seja, hoje há uma ponderação de que o mito de origem não corresponde necessariamente a uma falsidade.

Considerando ser “difícil encontrar uma definição de mito que fosse aceite por todos os eruditos e, ao mesmo tempo, acessível aos não especialistas” Mircea Eliade (Mito e Realidade. São Paulo: Perspectiva, 2010) apresenta o mito como uma realidade cultural extremamente complexa, que pode ser abordada e interpretada através de perspectivas múltiplas e complementares e o define da seguinte forma: “o mito conta uma história sagrada; ele relata um acontecimento ocorrido no tempo primordial, o tempo fabuloso do princípio”.

Situados no contexto sócio religioso, os mitos podem ser divididos em cosmogônicos e de origem; narram uma criação, (origem) seja de uma realidade total – o cosmo, ou apenas um fragmento, como por exemplo, uma ilha ou o próprio homem. O modelo cosmogônico trata da criação do mundo como criação por excelência, e como todo aparecimento ou criação implica a existência de um Mundo, o mito de origem pressupõe e prolonga a cosmogonia. Sobre a estrutura e a função dos mitos, ela apresenta preliminarmente cinco características. 1) Os protagonistas da narrativa mitológica são Entes Sobrenaturais; 2) Por ser obra de Entes Sobrenaturais, o mito é considerado uma história verdadeira; 3) O mito sempre se refere a uma “criação”, contando ao homem como algo veio a existir, e por isso se constitui um paradigma para as ações humanas significativas; 4) O mito não pode ser conhecido exteriormente, abstratamente, mas apenas pelo ritual – que o justifica; 5) O mito impregna-se na cultura pelo poder sagrado e exultante de eventos rememorados ou reatualizados.

No caso da “Fundação Francesa de São Luís” a historiadora encontra na própria historiografia a não correspondência entre o enunciado e o fato histórico o que torna o enunciado uma falsidade. Aqui, o que caracteriza o mito é o sentido atribuído à missa três séculos depois da passagem dos franceses pelo Maranhão. É nesse sentido que a ciência afirma que A “fundação francesa de São Luís” é um mito. Ou seja, neste caso se emprega o vocábulo mito não com referência à Mitologia Tradicional, mas para designar em termos científicos uma imagem falsa – o mito moderno, um discurso que não se sustenta na Ciência nem na Mitologia Tradicional.

“O mito deve ser pensado aqui como mito moderno. É uma fala roubada e restituída, que, ao ser trazida de volta, não se encontra mais no mesmo lugar, para utilizar a formulação sintética de Roland Barthes, no Mitologias. O mito se coloca num terreno ambíguo ‘nem verdadeiro nem falso’, ele simplesmente deforma, apresenta uma nova significação” (Flávio Reis, jornal O Imparcial 08.09.2007). Então, se no escopo epistemológico essa ideia não encontra respaldo, como mito de fundação ela continua desamparada.

Considerações finais

Consideramos que o Enunciado Ludovicense da fundação francesa de São Luís é apresentado ao “domínio público” em termos mitológicos e não nos termos de um discurso lógico, factual. E a pretensão de seus promotores é de imprimir-lhe a força de um mito, e não de um argumento lógico. Neste aspecto este enunciado é de natureza mitológica. Entretanto, se por um lado já não se sustenta como argumento, por outro não reúne as qualidades de um mito de origem, se revelando um mito moderno, e que faz parte de um esforço “para fazer as imagens ultrapassarem a condição de meras matérias-primas das aparências da vida”.

Sobre o carnaval, é mesmo uma festa que reúne fantasias, histórias, mitos e lendas. Quanto ao ciclo de debates do Instituto Histórico e Geográfico do Maranhão, que prioriza a questão da fundação de São Luís, o que poderia ser uma ocorrência esclarecedora como um amplo processo de debate pautado no princípio da objetividade científica, uma vez que essa problemática foi (re)colocada na esfera da mitologia, nos parece mais uma peça a serviço da negação do esclarecimento, pois o lema impresso nos cartazes, folderes e peças publicitárias do IHGM vaticina: A cidade do Maranhão – uma história de 400 anos.

Ora, a própria referência a São Luís como “a cidade do Maranhão” é a representação da “ideologia da singularidade ludovicense” construída no século 19, mas que ainda hoje confunde a mente de muita gente e contribui para manter a cidade de São Luís diferenciada e distanciada das outras regiões do estado e do Brasil. E quando diz “uma história de 400 anos” – embora admita outras “conclusões possíveis” – o IHGM já deixa claro o partido que defende.

Conclui-se finalmente que a “fundação de São Luís” como fato histórico está fora de questão, a contenda é outra. “O que importa é o que se diz”, ou seja, o problema é o enunciado, o discurso. Um discurso de caráter mitológico. Entretanto, embora se encontre desamparado no âmbito da mitologia tradicional, como mito moderno se apresenta associado a uma ideologia (singularidade) local. E, pressupondo que nesta combinação não há neutralidade e cada um desempenha suas funções interferindo em vários aspectos importantes da realidade humana, conclui-se que seguir tal enunciado é uma escolha política. E assim, para além do salutar aspecto teórico, adotar a missa como mito de fundação ou adotar o mito moderno como versão histórica é uma escolha que não se deve reduzir ao refinamento cultural de alguns “iluminados” que contemplam o mundo com a pura luz da razão. Quanto à ideologia da singularidade ludovicense, que pelo viés da cultura procura justificar o “isolamento” de São Luís, é outro problema.
São Luís, MA. Fevereiro de 2012.

Notas

(1) Graduando do curso de Filosofia / Universidade Federal do Maranhão.
(2) São Luizense ou ludovicense é adjetivo gentílico de quem nasce ou está radicado em São Luís. Vem do latim Ludovico, relativo ao nome próprio Luís. In Borralho, José Henrique de Paula. Uma Atenas Equinocial: a literatura e a fundação de um Maranhão no Império brasileiro. São Luís: Edfunc, 2010.
(3) “O Enunciado Ludovicense – outro olhar sobre a fundação de São Luís”, apresentado por este autor no Instituto Histórico Geográfico do Maranhão (IHGM) em julho de 2011.
(4) Professora aposentada da Universidade Federal do MA. (UFMA) e da Universidade Estadual do MA. (UEMA). Graduada em Direito e História, publicou os livros Educação na Baixada Maranhense 1828-1889 (1982); A Fundação Francesa de São Luís e seus mitos (2001); A Campanha da Produção 1948-1958 (2004) e Jerônimo de Albuquerque: guerra e fundação no Brasil colonial (2006).
(5) Ver artigo “Os estilhaços”: debate intelectual sobre a fundação francesa de São Luís do Maranhão, de Jhonatan Uelson Pereira Sousa. Disponível em www.outrostempos.uema.br/Volume04/vol04art08.pdf. Acesso em 14/jul/2011.