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Yannis Varoufakis: a economia política do salvamento na eurozona

Na sequência do Crash de 1929, Keynes criticou com ênfase a sabedoria convencional do seu tempo (o chamado ponto de vista do Tesouro) o qual sustentava que, dando tempo suficiente, a economia ajustar-se-ia a qualquer recessão ao deixar caírem salários e taxas de juro até que os "espíritos animais" dos empreendedores fossem suficientemente pressionados para estimular tanto o emprego adicional como o investimento necessário para acabar a recessão.

Por Yannis Varoufaki*

A objeção de Keynes era que, a seguir a uma crise financeira maciça que consegue infectar a economia "real", é altamente provável que a grande diminuição na produção, investimento e rendimento conduza a um equilíbrio "mau". Numa situação em que o desemprego é persistentemente alto (e não responde a reduções de salários que levam o trabalho a tornar-se baratíssimo), o investimento é mais raro do que a neve no deserto (mesmo depois de as taxas de juro terem caído para zero, a chamada armadilha da liquidez) e, geralmente, uma economia imobilizada num novo equilíbrio de desemprego não pode escapar disso mesmo que os preços sejam livres para se ajustarem. Sob tais circunstâncias, pensava Keynes, visar déficits do orçamento governamental, por meio de cortes nos gastos, é definitivamente errado. A sua proposta era que, quando uma economia se descobre trancada num equilíbrio de desemprego, qualquer tentativa para tentar "sair do declínio" é equivalente a alguém cortar o seu próprio nariz porque não gosta da sua cara. Não, para Keynes o truque era "crescer para sair da depressão".

Naquele tempo, o Ponto de Vista do Tesouro (isto é, que estabilizadores automáticos fariam o que fosse preciso) parecia cada vez mais uma promessa vazia e vulnerável ao gracejo de Keynes de que "no longo prazo estaremos todos mortos". Foi preciso uma intervenção de alguém de fora para articular (a) a mais forte crítica a Keynes e à sua advocacia da intervenção governamental durante uma recessão e (b) a mais poderosa defesa da superioridade do mercado como um mecanismo de distribuição de recursos em que a intromissão do governo só pode tolher e prejudicar – com efeitos deletérios para todos a longo prazo. Esse "alguém de fora" não foi outro senão Friedrich von Hayek .

Tal como Keynes, Hayek principiou por um diagnóstico do problema: um tratado sobre o que provoca recessões em geral e a do Crash de 1929 em particular. Hayek sugeriu que a causa principal de recessões era a criação do crédito excessivo que as antecedia, levando a investimentos que possivelmente não podiam demonstrar-se lucrativos no longo prazo. A sequência de acontecimentos era, segundo Hayek, tão previsível como catastrófica. Bons tempos geravam otimismo, otimismo pedia investimentos, investimento mais alto levava a rendimentos mais altos e consumo perdulário, a taxas de juros caíam quando banqueiros competiam entre si para conceder empréstimos a pessoas/firmas/estados às quais faltava a capacidade para reembolsar os seus empréstimos no caso da mais ligeira situação de baixa, etc.

A queda era portanto um resultado necessário do boom. Era, no essencial, a única cura para a exuberância irracional que a causava. Num dos famosos ditos de Hayek, o boom é a ilusão ao passo que a queda é o chamado da realidade. E o que deveria ser feito quando atingidos pela queda? Simples: Deixar a recessão fazer o seu trabalho, deixá-la liquidar as dívidas podres permitindo-lhes serem canceladas, uma vez que nunca poderão ser reembolsadas. Se isto significar sofrimento para a multidão, então será assim. Tal como o bêbado deve sofrer estoicamente os sintomas da sua ressaca, também a economia capitalista deve aguardar a saída da recessão. Ela dói mas a sua função é divina pois contrai a montanha de crédito sem valor anteriormente acumulada no sistema. A bancarrota é, durante esta fase de consolidação, desagradável mas altamente necessária. Um pouco como o Inferno no seu relacionamento simbiótico com o dogma cristão.

Neste ponto é de grande interesse e significado por lado a lado o Ponto de Vista do Tesouro (o qual Keynes desprezou) com o de Hayek. Aparentemente, tanto os burocratas do Tesouro como Hayek convergiam na sua oposição a Keynes – estímulo fiscal inspirado e um empenho na tarefa de reduzir a dívida do governo. Em resposta a Keynes, tanto responsáveis do Tesouro como Hayek gracejavam que a sua proposta para curar dívida por meio de mais dívida era ridícula. Mas qual a diferença entre Hayek e o Tesouro? Havia alguma?

Sim, havia. E além disso importante: Enquanto o Tesouro argumentava que a queda do salário e da taxa de juros restaurariam a economia para o ponto em que estava antes da queda, Hayek não fazia tais promessas. Quanto aos prognósticos keynesianos de que a liquidação de dívidas podres, e a contração geral que se seguiria, nunca poderia levar a economia ao estado anterior ao Crash, Hayek encolhia os ombros e dizia: C'est la vie. Uma vez que o boom era de qualquer forma "não natural", seria tolo (e talvez não ético) esperar que a queda nos levasse de volta para onde estávamos antes de tudo ir à bancarrota. Para onde nos levará? A resposta de Hayek era: Malditos sejamos se soubermos! Mas seja para onde for que nos leve, será melhor do que o lugar onde enterraremos a seguir um estímulo fiscal do governo e mais dívida. Deixe o sistema ser varrido de toda dívida podre, via bancarrotas maciças, e então deixe o sistema de mercado fazer o que ele faz melhor: produzir o melhor de todos os futuros disponíveis.

Neste artigo, desistirei de contrapor ainda mais Hayek e Keynes. Nem insistirei mais nos prós e contras do pensamento de Hayek. Pois o meu objetivo aqui é focar os efeitos peculiares que os salvamentos da eurozona (com a Grécia como um dos meus principais casos de estudo) tiveram na mentalidade de neoliberais cuja inspiração tradicional tem sido Friederich von Hayek.

Hayek e a Grécia

Fosse von Hayek enviar-nos uma missiva do éter quanto ao salvamento grego, o que é que nos diria? Ele certamente não pensaria duas vezes antes de apontar as duas principais causas da tragédia que nos últimos tempos estão transformando a Grécia num deserto.

A primeira causa da situação grega

A primeira causa que Hayek destacaria seriam, naturalmente, as bolhas que estiveram aumentando gradualmente através do crédito bancário excessivo (tanto para o sector privado grego como para o público) nos reinos das bolsas, do mercado imobiliário, do governo e, naturalmente, do mercado de trabalho. Os rios de crédito que fluíram para dentro da Grécia fizeram com que todos os "preços", em cada um destes reinos, se tornasse inchado maciçamente causando, portanto, um boom o qual, assim como a noite se segue ao dia, tinha de estourar. E uma vez que o boom era exorbitante, em relação à capacidade produtiva real do país, o estouro foi terrivelmente catastrófico.

Assim, os gregos devem aceitar (posso ouvir Hayek pontificando) que não há alternativa de liquidar ações insustentáveis (isto é, aprender a viver com preços de ações muito baixas na bolsa de valores de Atenas), liquidar a agricultura cujos produtos realmente nunca tiveram um mercado (pelo menos nenhum que não confiasse na bondade do contribuinte europeu), liquidar preços imobiliários (notando o absurdo anterior a 2009 de apartamentos em Kolonaki [NT 2] custarem preços de Nova York), liquidar o governo (isto é, encerrar a maior parte dos seus departamentos) e, naturalmente, liquidar o trabalho (isto é, livrar-se de empregos que não produzem um valor equivalente ao seu custo para o patrão).

A segunda causa da situação grega

Deixe-me agora ir à segunda causa da atual situação da Grécia que, na minha opinião, Hayek destacaria: A calamitosa intenção dos salvamentos de impedir um não cumprimento grego no interior da eurozona. Uma vez que todas as dívidas podres devem ser liquidadas, segundo Hayek, a dívida pública grega (discutivelmente a pior das dívidas podres) devia ser a primeira a ser cancelada. Será isto uma observação não aplicável dentro da eurozona? Antes de responder, é útil olhar previamente para a relação ambivalente de Hayek com a ideia de uma união monetária europeia a ser administrada por um Banco Central Europeu. Conhecido como cético acerca de bancos centrais (na verdade, num famoso documento de 1974 Hayek havia proposto a privatização do dinheiro, isto é, permitir a bancos privados que emitissem as suas próprias divisas, as quais competiriam então pela confiança do público), em 1978 ele tinha isto a dizer acerca de um futuro euro:

Embora eu simpatize fortemente com o desejo de completar a unificação econômica da Europa Ocidental pela libertação completa do fluxo de dinheiro entre países, tenho sérias dúvidas quanto a fazer isso através da criação de uma nova divisa europeia administrada por alguma espécie de autoridade supra-nacional. Além da extrema improbabilidade de que os países membros concordassem sobre a política prática a ser seguida por uma autoridade monetária comum (e a inevitabilidade prática de alguns países ficarem com uma divisa pior do que a que têm agora), parece altamente improvável que [a nova divisa] fosse melhor administrada do que as atuais divisas nacionais".

No entanto, Hayek aceitou de modo relutante uma divisa como o euro se bem que a advertir que "partidos políticos incontrolados e moeda estável são inerentemente incompatíveis" [1] (itálicos no original). Seja o que for que Hayek tivesse pensado da tentativa da Sra. Merkel, do Sr. Sarkozy e do Sr. Draghi de "salvar" o euro de uma maneira absolutamente subserviente aos "partidos políticos descontrolados" da Alemanha, França e Itália, há uma coisa que não se discute: Friedrich von Hayek teria reprovado a tentativa da Europa de criar novas formas de dívida tóxica (ver os títulos EFSF que estão financiando os salvamentos) a fim de assegurar que velhas dívidas totalmente insustentáveis (como as da República Helênica), criadas pelo boom, fossem preservadas por tanto tempo quanto possível e a qualquer custo humano e econômico.

Em suma, se bem que não seja de todo claro se Hayek teria recomendado a preservação, dissolução ou dissolução parcial da eurozona, está para além de dúvida que ele teria feito campanha vigorosa pela liquidação das dívidas (podres) da Grécia. O não cumprimento pleno teria sido, aos olhos de Hayek, a única rota de ação não em conflito com a sua visão do que está em causa na eurozona de hoje. Um ponto de vista que o levaria a chocar-se com a raison d'être de todos os salvamentos na Europa (sem mencionar a LTRO do Sr. Draghi que lhe provocaria uma cólera interminável).

O caso curioso dos neoliberais da Grécia

Desde a irrupção da crise tenho-me encontrado frente a representantes da pequena, mas altamente influente comunidade grega de neoliberais inspirados por Hayek. Levou pouco tempo para perceber uma grande dicotomia peculiar que os tipificava, a qual penso ser instrutiva acerca dos danos que os salvamentos estão fazendo para vida intelectual da Europa tanto dentro como fora das fronteiras da Grécia. Trata-se disto: Enquanto neoliberais gregos mantêm a cólera de Hayek quanto à causa primeira da atual situação da Grécia, eles estão em profunda (e não intelectual) negação quanto à causa segunda.

Por outro lado, eles são entusiásticos na difusão da mensagem de Hayek de que, dentro do Bailoutistão (com a Grécia sendo a mais proeminente província desta nova "nação"), não há a alternativa de liquidar ações, valores da agricultura, preços do imobiliário, a maior parte dos departamentos governamentais e grande parte do trabalho ainda empregado. Contudo, em contraste agudo, a única coisa que não querem ver liquidada é a dívida pública da Grécia para com os bancos a qual, segundo o próprio Hayek, criou o problema em primeiro lugar! Por que a dispensa da dívida pública grega da lista de dívidas/ativos podres a serem liquidados? E por que a falta de explicação do motivo porque esta dispensa é recomendada? Duas possíveis respostas explicam a esquizofrenia dos neoliberais gregos.

Primeiro, talvez entendam mal o que os seus gurus libertários pretendiam, possivelmente devido a um poder analítico limitado. Ou, em segundo lugar, o caso grego é especial e exige que Hayek seja ouvido em tudo exceto quando se trata da liquidação da dívida do setor público. Contudo, não acredito que os neoliberais da Grécia simplesmente não tenham conseguido entender a mensagem de Hayek. Sou, ao contrário, da opinião de que são as circunstâncias especiais da Grécia que os levam a excluir a dívida pública da lista de ativos que devem ser liquidados. Se lhes pedíssemos para explicar o que são estas "circunstâncias especiais", penso que, após uma longa discussão, desconfiaríamos de que são levados a isentar a dívida pública dos ativos a serem liquidados por uma razão simples e deprimente: perderam a fé na capacidade das elites nacionais gregas para levar a cabo o processo de liquidação. Perderam a fé na capacidade das autoridades gregas, dos empresários gregos, mesmo em si próprios, para pilotarem a Grécia, através da liquidação hayekiana, no caminho de um estado libertário dos negócios. E como não pensam que as elites gregas possam fazer isto, depositam todas as suas esperanças em que as elites do Norte da Europa (talvez com a assistência do FMI) farão isso por eles. E para assegurar que isto venha a acontecer, ficam felizes em sacrificar um princípio básico hayekiano a fim de não antagonizar os parceiros europeus do Norte os quais, por suas próprias razões, estão ansiosos por continuar a acumular novos empréstimos insustentáveis em cima do estado grego (ao invés de liquidar os existentes).

Epílogo

Uma transação faustiana parece ter sido selada entre os neoliberais hayekianos do bailoutistão (com a variedade da Grécia sendo o mais notável exemplo) e a abordagem estatista de salvamento do BCE-UE-FMI. Isto explica parcialmente o que designarei como Anomalia Liberal da Periferia Europeia: neoliberais que estão felizes com a ideia de enormes empréstimos financiados pelo contribuinte a entidades estatais insolventes. Contudo, esta explicação é apenas parcial, pois deixa de explicar uma importante observação. Recordando a inferência de Sherlock Holmes do abominável "cão que não latiu", levanta-se a questão (respeitante aos hayekianos gregos e também aos irlandeses): Por que nada disseram acerca da necessidade de liquidar os banqueiros da nação? (Ou melhor, os acionistas de bancos irlandeses?)

Minha tese é que, mesmo aceitando a hipótese acima da transação faustiana (nomeadamente de que as elites locais perderam a fé em si próprias e querem a troika para supervisionar a sua própria e estranha "Estrada para a Servidão" [NT 3] ), não há nada no manual neoliberal que possa explicar o seu silêncio total sobre os bancos nacionais (ex.: gregos ou irlandeses) que desempenharam um enorme papel, muitíssimo negativo, no provocar do boom que levou à queda. Apesar de que Hayek recomendaria que estes banqueiros fossem liquidados de imediato (a fim de ensinar a todos uma lição acerca das consequências da excessiva criação de crédito), os neoliberais da Grécia e da Irlanda são absolutamente silenciosos sobre isto. Por que é assim? No caso da Grécia, a resposta é evidente: Por causa do relacionamento extremamente aconchegante entre os ditos neoliberais e os banqueiros. Ponto.

Em conclusão, os salvamentos da eurozona assumiram um outro pedágio oculto: eles estriparam a honestidade intelectual da própria escola de pensamento à qual recorre para inspiração grande parte das elites da Europa.

Notas
[1] Friedrich von Hayek, “Market Standards for Money”, Economic Affairs, April-May 1986.
[2] O melhor que eles podem fazer é argumentar que se a Grécia não cumprir não será capaz de retornar aos mercados monetários; um argumento quase absurdo uma vez que (A) a Grécia não retornará, de qualquer forma, aos mercados e (B) o argumento de Hayek seria que isto é uma coisa esplêndida (pois forçaria o estado grego a viver dentro dos seus meios e restaurar a sua reputação através da frugalidade e da prudência).

NT
[NT 1] Bailoutistão: Palavra derivada de bail-out (salvamento).
[NT 2) Kolonaki: Bairro rico de Atenas.
[NT 3] Estrada para a servidão ( Road to Serfdom ): Título de um livro de Hayek.