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Crivelente: A violência é a protagonista das notícias massivas

Há muito que os estudos para a paz empregam uma perspectiva crítica sobre a resolução dos conflitos, buscando noções pós-liberais. Desde conceitos como o de “paz positiva”, de Johan Galtung – em que a violência superada não seja só a direta, mas também a cultural e a estrutural, a resolução de conflitos é pensada com maior complexidade.

Por Moara Crivelente*

É imprescindível o envolvimento da sociedade afetada pelo conflito na sua resolução, no processo de construção da paz. Para isso, a mídia de massas vem tomando a pior postura.

Galtung ressalta a importância da mídia de notícias na resolução dos conflitos – ou na sua prevenção, idealmente – e a influência que ela pode ter no processo inverso, exaltando diferenças que levam à violência. Pregar a suposta neutralidade, sobretudo em situações de conflito violento, é uma atitude irresponsável tanto dos jornalistas que se empenham nessa retórica quanto dos meios que os empregam – ou que os pressionam para seguirem linhas editoriais que deixam de lado a difusão de debates positivos e de posições conciliatórias.

Além disso, a idéia de objetividade é questionada por autores como Noam Chomsky e Edward Herman, para quem um “Modelo Propaganda” – baseado na dependência que a maioria dos meios têm da iniciativa privada e na sua conexão com as elites políticas – impede que certas abordagens sejam empregadas.

Valores de produção versus construção da paz

A incompatibilidade da mídia de massas com a resolução dos conflitos é melhor explicada sobretudo ao analisar o desempenho de meios mais populares, como a televisão, em alguns cenários, ou a rádio em outros. A procura por drama e sensacionalismo, o imediatismo que leva a uma cobertura descontextualizada, ou instantânea, e a abordagem etnocêntrica de muitos meios fazem com que as relações entre comunidades sigam conflituosas, inviabilizando a aproximação entre elas.

Exemplos são os jornais mais populares de Israel, segundo estudos realizados por Gadi Wolsfeld, da Universidade Hebrea de Jerusalém. Sua cobertura elitizada, feita por israelenses e para israelenses – mesmo quando se trata de assuntos palestinos – perpetua um distanciamento crucial para a manutenção do conflito entre palestinos e israelenses.

Desde a criação de Israel, em 1948, o discurso dos subseqüentes governos israelenses oscila, o que causa oscilações também na abordagem da mídia, influenciada pelas fontes de onde recebe informações – sobretudo governamentais e militares, quando não “especialistas” israelenses – e pela falta de consenso entre as elites políticas, por exemplo.

Além disso, alguns editores levam em conta a capacidade que o governo demonstra para lidar com as crises, ou seja, os episódios violentos que afetam um possível “processo de paz”, tomando posturas críticas ou favoráveis às políticas implementadas, de acordo com o que interpretam.

A desumanização do “outro” na cobertura da morte

Estudos do próprio Wolfsfeld demonstram a diferença entre a cobertura de eventos que causaram a morte cidadãos israelenses e a cobertura sobre a morte de palestinos. Não querendo dizer, salve-se, que no contexto palestino não se faça a mesma diferenciação. Os estudos analisam, por exemplo:
•Aspectos gráficos – que no caso de as fatalidades serem do lado israelense, envolvem fotos dramáticas, imagens de parentes e conhecidos revoltados ou emocionados, e no caso de serem palestinos, resumem-se a gráficos estatísticos ou mapas estratégicos;
•As fontes consultadas – que podem ser parentes no caso de serem israelenses, ou militares e autoridades do governo, no caso de serem palestinos;
•O nível de emoção ou o tempo dedicado à notícia sobre o evento – ambos maiores no caso de as vítimas serem israelenses;
•Entre outros aspectos, como o fato de que as vítimas israelenses geralmente são enquadradas em seu contexto, nomeadas e têm as suas fotos publicadas, enquanto as vítimas palestinas muitas vezes são apenas contabilizadas.

Não há dúvida de que esse tipo de diferenciação nas abordagens serve para demonizar o “outro”, mantê-lo na categoria de “inimigo”, desumanizá-lo e, ainda, justificar a violência empregada, geralmente enquadrada como uma reação necessária a um ataque anterior. Além disso, seguindo a concepção de um modelo comercial de mídias de notícia, esse tipo de tipificação se torna possível, por exemplo, pela inexistência de uma mídia compartilhada entre ambas as comunidades. Torna mais fácil que se justifique a violência contra o “outro”, sempre retratado como uma séria ameaça a “nossa” comunidade.

Justificar a guerra

Através da análise dos discursos não é difícil identificar, na mídia massiva, os padrões de justificação da guerra. A criação constante e a largo prazo de um sistema de inseguranças – ainda que não necessariamente irreais – estabelece um padrão e uma moldura para se pensar a sociedade em termos de perigos, ameaças e desconfiança. O portador deste discurso, geralmente quem tem os meios para defender a população e descobrir futuras ameaças, recebe consentimento para o emprego da violência – sempre em nome da defesa e da segurança ou, mais comumente, dos “interesses nacionais”.

Exemplos constantemente explorados em meios internacionais são as “armas de destruição massiva” (ADM), ameaça utilizada para “justificar” várias guerras não só empreendidas pelos Estados Unidos, mas também com a participação ativa da Otan e de demasiados membros da ONU. Intrigante, para dizer o mínimo, é que não apenas tais armas não foram encontradas – já passamos dessa retórica – mas ainda ninguém questionou o não emprego do termo ADM também às bombas e outros artifícios usados pelos próprios “defensores”.

Para isso teríamos que evidenciar cálculos já dispersos em várias fontes de informação sobre as mortes causadas e os danos materiais, estruturais e psicológicos resultados de constantes bombardeamentos e outros ataques, desde as bombas nucleares no Japão da Segunda Guerra Mundial, até o napalm no Vietnã e as bombas de racimo, ou mesmo o fósforo branco que, ainda que banido pelo Direito Internacional, foi empregado, por exemplo, pelos EUA no Iraque e por Israel em Gaza, Palestina, em 2009.

Dá-se aí a construção de um discurso sólido baseado na constante criação e manutenção de sistemas de justificativa para o emprego da violência contra quem supostamente porte a “ameaça”. Para isso, o jornalismo comercial, menos dedicado às suas responsabilidades como “portador da informação”, contribui cumprindo com a agenda simplista que informa cada vez menos aos cidadãos de quem as elites políticas pedem consentimento para empreender a violência, seja em conflitos armados como os mencionado, seja em políticas de segurança nacional cada vez mais restritivas, punitivas e excludentes.

Noam Chomsky, ainda em seu “Modelo Propaganda”, denuncia a “fabricação do consentimento”; no contexto midiático, todos esses fatores contribuem para o estabelecimento incontestado de uma “moldura de segurança” ou de “defesa” para a produção das notícias, impossibilitando o desenvolvimento de uma “moldura de paz”, em que posturas de conciliação finalmente caberiam.

Outro jornalismo é possível e, para iniciá-lo, é necessário o comprometimento com a complexidade, com a abertura de espaços de diálogo e com a informação contextualizada, que possibilite o debate qualitativo. Continuar enquadrando situações de conflito nos valores comerciais de notícia – sensacionalismo, imediatismo, simplismo, entre outros – servirá apenas para manter a violência, impossibilitando qualquer construção positiva da paz em comunidade.

*Moara Crivelente é licenciada em Relações Internacionais e cursa o Mestrado em Comunicação dos Conflitos Armados Internacionais e dos Sociais na Universidade Autônoma de Barcelona, na Espanha.