A Rússia depois das eleições: do centrismo ao centro-esquerda?
Como era previsível, Vladimir Putin foi reeleito com grande maioria à Presidência da Federação Russa. Apesar das vozes sobre supostas fraudes, iniciadas por ocasião das contestações dos resultados das eleições legislativas de dezembro passado, que haviam preparado o terreno para a difusão do ceticismo na opinião pública (principalmente na opinião pública ocidental), é oportuno olhar a realidade tal como ela é: o consenso de que Putin goza é muito amplo.
Por Spartaco A. Puttini
Publicado 10/03/2012 23:22
Se temos em conta o fato de que mesmo em comparação com as últimas e contestadas eleições legislativas as fraudes evidenciadas agora se revelaram marginais, ou seja, incapazes de reverter o resultado das urnas, então se pode honestamente dizer que o apoio a Putin é amplamente majoritário.
Nestas eleições presidenciais Putin obteve 63% dos votos, vale dizer, muito mais do que obtivera seu partido, o Rússia Unida, nas eleições legislativas (cerca de 49%). Desde que os principais partidos russos apresentaram candidatos à Presidência, enquanto a estreita e desqualificada oposição da direita liberal (do líder do Yabloko, Yavlisnkij, conhecido frequentador da Trilateral, aos velhos companheiros de Ieltsin, como Nemtzov) se opôs ao voto preparando-se para contestá-lo ou apoiou o milhardário Prokhorov (como fez o ex-ministro das finanças Kudrin), é possível traçar um paralelo e tentar formular um juízo sobre a política russa e sobre suas perspectivas depois das rodadas eleitorais destes meses.
O dado que se destaca é a façanha de Putin com relação ao seu partido. Os russos confiam em Putin e muito menos no seu partido, isto é, nos homens que o cercam, em todos os níveis.
A confiança em Putin se explica com os resultados por ele obtidos desde que entrou nas instâncias do poder no crepúsculo da era Ieltsin. É oportuno recordar que Putin conseguiu salvar a Rússia da desintegração que parecia ter começado por causa da guerra da Chechênia e da perigosa autonomia que Ieltsin tinha concedido a numerosos entes (estados e regiões) de que se compõe a Federação com a única finalidade de se manter no poder.
Somente no nível jurídico, os russos tinham de lidar com uma verdadeira selva de códigos e leis que em muitos casos estavam em franca contradição com as próprias leis federais. Igualmente, os russos devem ter represado e em alguns casos punido as oligarquias mafiosas que tinham prosperado à sombra de Ieltsin. Naqueles anos se realizou o grande saque das riquezas russas, fenômeno iniciado pela catastrófica perestroika gorbachoviana, não por acaso batizada por alguns de “catastroika”.
Segundo estimativas, nos anos 1990, das privatizações de 145 mil empresas, o Estado recebeu apenas 9,7 bilhões de dólares, uma cifra comparável às despesas feitas pelos turistas russos no exterior somente no ano de 2003!
Nos mesmos anos, o padrão de vida dos cidadãos russos, como é amplamente conhecido, caía devido às imposições das receitas econômicas falidas do neoliberalismo. A mortalidade infantil aumentava, a expectativa de vida reduzia-se drasticamente em pouquíssimo tempo. A economia estava em colapso.
Com Putin começou uma inversão de tendência que levou o Estado a intervir para racionalizar e salvar o sistema produtivo do país, ao menos nos setores estratégicos e de ponta com alto conteúdo tecnológico, e o nível de vida das massas russas se elevou.
A economia começou a crescer, mesmo se em boa medida isto se deveu às exportações de matérias primas e a uma conjuntura favorável.
Mesmo em termos de democracia, recorde-se que na época dos liberais (que em boa medida hoje protestam nas ruas), o parlamento era bombardeado porque não completamente inclinado a Ieltsin e ao seu clã que contavam com o aplauso geral de todos os grandes patrocinadores da democracia, desde os EUA do democrata Clinton, aos reformistas e que três anos depois roubavam clamorosamente as eleições presidenciais virando o resultado, subtraindo a vitória aos comunistas e dando a Ieltsin o seu último mandato, como admitiu recentemente Medvedev no Kremlin, onde a portas fechadas, há alguns dias, tinha se encontrado com os expoentes da direita política excluída da corrida à presidência. Como quem diz: “mas logo vocês se queixam?!”
Embora não tenham sido curadas as feridas abertas no país pela catastroica, e embora a política social, como justamente sustentam os comunistas, seja absolutamente insatisfastória, com os dois mandatos presidenciais de Putin os russos encontraram, depois de muito tempo, a possibilidade de olhar o futuro com um certo otimismo.
Os resultados obtidos por Putin foram julgados “impressionantes” pelo ex-chefe de governo Primakov nas suas memórias. Sobretudo a Rússia voltou a ter um papel chave na cena internacional, promovendo a emergência de uma ordem multipolar e desempenhando, em sintonia com a China, uma fundamental função de equilíbrio contra os impulsos agressivos dos Estados Unidos. A Rússia representa hoje o elemento central do equilíbrio de poder e o principal freio às forças destrutivas do imperialismo. Coisa de que os russos se orgulham justamente.
Sendo esta a diferença entre os resultados obtidos por Putin nas eleições presidenciais e os do seu partido Rússia Unida nas eleições legislativas de dezembro, não é correta a tese propalada pela mídia, segundo a qual as últimas eleições legislativas significaram uma derrota para Putin.
É oportuno notar que em dezembro a chapa do partido Rússia Unida era encabeçada por Medvedev e que algumas de suas propostas não são exatamente do agrado da maioria dos russos. Entre estas uma frequente inclinação a projetar a privatização de alguns setores que retornaram ao controle do Estado. Os russos sabem que as privatizações são sinônimo de latrocínio das riquezas nacionais, são cônscios da alta corrupção nas altas e baixas esferas do poder e esta saída de Medvedev junto com outras (a aquiescência com a agressão à Líbia, um tom muito conciliador com a política agressiva norte-americana, percebida como uma ameaça direta para a Rússia, as escolhas feitas em matéria de reforma nas Forças Armadas) alimentaram o espectro do retorno à ordem neoliberal.
Rússia Unida é de resto o resultado da confluência em torno de Putin de uma parte da galáxia liberal “ieltsiniana”, que o havia cooptado ao poder (sobrevivendo, à diferença de alguns), e das forças de centro-esquerda que o ex-premiê Primakov tinha reunido na formação Pátria-Toda a Rússia. O programa de Putin parece ser mais próximo do de Primakov em todos os sentidos, especialmente em política externa, e não é por acaso que o próprio prestigioso ex-chefe de governo e ex-ministro do Exterior apoiou publicamente a terceira candidatura de Putin. Mas os anos do período de Medvedev despertaram velhos fantasmas e provavelmente muitos russos esperam deste retorno de Vladimir Putin ao Kremlin o fim da ambiguidade.
É talvez esta a chave de leitura para compreender, ao menos em parte, os dados das duas rodadas eleitorais russas, a de dezembro e a de março. Ao votar nas chapas para o legislativo, os russos preferiram premiar sobretudo a esquerda comunista (o Partido Comunista da Federação Russa – PCFR) ou nacionalista (Rússia Justa) que juntas obtiveram um terço dos votos. Fazendo assim, os eleitores sublinharam a sua preferência por uma política que, esquematizando, poderemos definir nos seguintes termos: firmeza nos confrontos ao imperialismo ocidental, defesa patriótica, intervenção do Estado na economia, justiça social, combate à corrupção.
No momento da escolha do presidente, porém, a confiança em Putin parece ainda sólida e todos os principais adversários obtiveram menos votos do que os obtidos por seus partidos três meses antes: Ziuganov 17% contra os 20% obtidos pelo Partido Comunista, o líder do partido Rússia Justa, Mironov, alcançou mesmo um terço do seu eleitorado das legislativas, resultado talvez óbvio se se considera que esta formação nasceu para estimular Putin no sentido da esquerda. Também o candidato da direita nacionalista, Jirinovski, não escapou a essa tendência, obtendo menos votos dos que seu partido havia alcançado nas eleições legislativas de dezembro.
O que se espera agora é saber que lições Putin extrairá dessa situação. A impressão é de que a campanhia soou e o intervalo acabou. Mesmo usando um tom beligerante durante a campanha eleitoral, o Partido Comunista propôs ao poder um governo de coalizão de centro-esquerda. Por ora, Putin falou de “acordo com os que nos rodeiam”, enquanto combatia os grupos dirigidos do exterior, referindo-se claramente aos manifestantes “brancos” que sonham com o golpe colorido. Alguns entendimentos parecem estar em curso para fazer amadurecer a situação política para uma abertura à esquerda guiada por Putin, que poderia vir ao encontro das indicações fornecidas pelos russos nas urnas. Neste caso, o sistema político russo deverá enfrentar as dores do parto, porque é improvável que o partido Rússia Unida, tal como é hoje, possa resistir a uma abertura à esquerda.
Em todo caso, todo o mundo estará com os olhos voltados para o Kremlin. Porque a Rússia é um elemento fundamental para a construção de um mundo multipolar e para a derrota dos planos do imperialismo estadunidense.
Fonte: Marx 21 (www.marx21.it)
Traduzido do italiano por José Reinaldo Carvalho, editor do Vermelho