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Mais do que pública, a TV Cultura é patrimônio cultural

Quantas crises mais a TV Cultura, de São Paulo (SP), resistirá? Quantos desmontes o governo tucano ainda fará em seu orçamento e estrutura? A rádio e TV Cultura são legítimos espaços públicos. Apesar do Brasil não ser um país com tradição em emissora pública, o pouco que já foi produzido mostra que é possível fazer mais e melhor na televisão brasileira. Mas isso incomoda a mídia comercial e hegemônica, que agora contribui diretamente com a privatização da Rede Cultura.

De São Paulo, Deborah Moreira


Ato contra a privataria da TV Cultura, em S. Paulo/foto: Barão de Itararé

Preocupados com o futuro da emissora pública, ex-funcionários, movimentos da sociedade civil em defesa da democratização da comunicação, jornalistas, blogueiros e parlamentares se reuniram na noite de terça-feira (3), no auditório do Sindicato dos Engenheiros de São Paulo, para realizar um ato contra a “privataria” da TV Cultura.

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O termo privataria foi cunhado no livro de Amaury Ribeiro Jr. A Privataria Tucana, que reuniu provas sobre um complexo sistema montado pela lavanderia tucana “express” durante as privatizações. Era o nosso dinheiro vazando para as contas das aves paulistas.

A TV Cultura está na mira desse bando. Uma emissora que já registrou 12 pontos de audiência no Ibope com programas infantis inteligentes e criativos, na década de 1990, causando preocupação na concorrência, que precisou se mexer para não perder audiência, como o SBT.

“Eu vim aqui hoje não por questões políticas e nem para falar de nenhum partido, nem da oposição e nem da situação. Vim como uma cidadã brasileira que construiu uma carreira que tem 37 anos e que a hora que deus resolver me levar, vocês podem correr na TV Cultura porque é lá que tem o maior acervo desta criatura aqui. Eu comecei aparecendo em televisão em 1974, ao lado do Cartola, em um programa dirigido por Fernando Faro, intitulado Ensaio”, declarou a cantora e compositora Leci Brandão, sendo muito aplaudida pelos cerca de 150 presentes, que lotaram o auditório para ouvir mais de uma dezena de manifestações públicas.

A também deputada estadual pelo PCdoB relembrou suas participações em diversos programas como Bem Brasil, Metrópolis, Manos e Minas, além de ter integrado a campanha contra o João Sayad, presidente da emissora, e em defesa do programa Manos e Minas, ameaçado de ser cortado da grade por ele em agosto de 2010.

“A primeira preocupação dele (João Sayad) foi mexer na diversidade. Ou seja, tira o programa dos negros, do hip hop e do rap”, disse a artista.

“Seja maquiador, servente, cameraman, iluminadores, apresentadores, que a construção da nossa vida se deve muito a vocês. E é por isso que estou aqui. Todos usam tanto a palavra celebridade, mas celebridade é a TV Cultura, porque nunca vai ser apagada da história”, finalizou Leci Brandão.


Movimentos e personalidades se reúnem em ato em defesa da TV Cultura
/foto: Vermelho


Nomes que fizeram história

Em quase todas as manifestações, era possível ouvir elogios aos profissionais da Fundação Padre Anchieta, como o produtor musical Fernando Faro, idealizador do programa Ensaio; Lia Machado Alvin, produtora da rádio; e Maria Amélia Rocha Lopes, ex-diretora do Metrópolis, que dirigia o programa Manos e Minas quando foi demitida da rede, que estava presente no evento de terça.

“Eles não contavam que a população de São Paulo tinha interesse em ver este tipo de programa, que mostrava o caldeirão cultural da periferia. Nós tínhamos convicção de que fazíamos algo de relevância” disse na época Maria Amélia, referindo-se à campanha em defesa do programa. O Manos e Minas continuou, mas muitos dos que se posicionaram favoráveis foram demitidos.

“O maior discurso de defesa da rádio e TV Cultura é como cada um de nós foi positivamente influenciado e formado por sua programação”, declarou João Brant, do Intervozes, que também falou em defesa da emissora.

Ele ressaltou que na gestão Sayad há uma crise que não dá espaço para um retorno do que já foi, tendo em vista o número de demissões e de extinções de programas. Para tanto, citou três pontos que simbolizam a gestão problemática de Sayad.

“Quando assumiu a presidência disse que desconhecia o Fernando Faro, ou seja, desconhece a cultura brasileira; depois ele perguntou para que servia a tal da ilha de edição, afirmando que no Estadão nunca havia visto uma daquelas. Quer dizer: é um sujeito que nem entende de televisão; depois, toma uma série de medidas administrativas de demissão de funcionários com estabilidade garantida, gerando um passivo trabalhista da ordem de R$ 150 a 200 milhões. Ou seja, não serve também como gestor. O que ele está fazendo lá senão comandando um profundo processo de desmonte?”, questionou João Brant.

A emissora já demitiu mais de mil funcionários nos últimos anos. No início de março anunciou a demissão de mais 56, e a extinção dos programas Vitrine, Entrelinhas e Cultura Retrô, e reformulará o Metrópolis, que se tornará diário.

“Existe uma disputa interna dentro do PSDB que envolve o conselho curador e o conselho executivo na administração da TV Cultura. É uma briga pelo espaço político da máquina interna”, frisou o presidente do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo, José Augusto Camargo, o Guto, que relembrou que a crise da TV Cultura é muito antiga, desde quando os Diários Associados foram comprados pelo governo do estado.

Ele também lembrou que, em 2003, houve uma tentativa de criar uma CPI da TV Cultura na Assembleia Legislativa de SP.

“É preciso que nos organizemos em duas frentes. A do debate público e no campo institucional e político. Temos que ressuscitar a CPI de 2003 que nunca aconteceu”, declarou Guto.

Crises

O “ex-antigo funcionário” Laurindo Leal Filho, especialista em TV pública no país, fez uma fala mais prolongada para explicar, cronologicamente, o processo de deterioração que a rede vem sofrendo.

“A história da TV Cultura é marcada por crise. Não é novidade isso que vem ocorrendo. Embora neste momento existam situações nunca antes vividas pela Fundação como a privatização do espaço público com empresas privadas utilizando seu espaço, que é público”, observou Lalo, como é conhecido. Ele alertou para o perigo que representa essa “cooptação” das empresas privadas no espaço público, lembrando que muitos jornalistas e críticos de TV contribuem com o debate.

“O pouco que sai de crítica corre o risco de não sair mais”, afirmou. Como exemplo, Laurindo citou a manchete “Um castelo em ruínas”, do caderno Ilustrada, da Folha de S. Paulo, que abordava o desmanche do infantil Castelo Ra-tim-bum.

Em sua avaliação, uma das mais graves crises, que quase abalou o modelo institucional da Fundação, que é um modelo que garante “uma certa liberdade institucional” da fundação em face do governo estadual, semelhante ao da BBC de Londres (que é financiada pelo cidadão), foi na gestão biônica de Paulo Maluf, indicado ao governo pela ditadura.

“O seu substituto, atual presidente da CBF, José Maria Marin, destituiu a diretoria e quis impor suas vontades na TV. Felizmente não conseguiu constitucionalmente e por conta da defesa do Ministério Público, na pessoa do procurador Francisco Bandeira Lins”, recordou Lalo.

Com relação aos recentes convênios firmados entre a Cultura e empresas privadas, o jornalista e blogueiro Luís Nassif lamentou: “Esse negócio com a Folha e a Abril é uma absoluta falta de cultura de quem se coloca à frente da Cultura”. Para ele, as sucessivas gestões tucanas criaram uma “absoluta insensibilidade para qualquer tipo de manifestação”, generalizando como “isso é coisa do PT”.

“O Sayad alegou que economizaria dinheiro deixando de filmar a Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (Osesp) e em seu lugar colocaria DVDs da Deutsche Welle (TV pública alemã). Ora, é um absurdo não registrar a manifestação cultural da classe A de São Paulo. Se não tem sensibilidade nem para a classe A, imagine para as manifestações culturais populares, da periferia, que deveriam ter lugar num canal público”, lamentou Nassif.

Unir esforços

A jornalista Renata Miele, do Centro de Estudos de Mídia Alternativa Barão de Itararé, indagou o que teria saído nas manchetes e editoriais dos jornais se a revista Carta Capital tivesse um programa na TV pública do Brasil, ou qualquer outro veículo de comunicação alternativo fizesse o mesmo que o Grupo Folha e o Grupo Abril.

“Tem um sentido simbólico no desmonte da TV Cultura. Eles querem acabar com tudo que é público, como também acabar com todo o movimento político que estamos construindo para a democratização da comunicação no país”, indignou-se Renata Miele.

Ela propôs que o movimento em defesa da TV Cultura se una às diversas frentes que combatem à hegemonia na mídia, como a Frente Parlamentar pela Liberdade de Expressão e o Direitos à comunicação com Participação Popular, da Câmara dos Deputados, que recentemente organizou um seminário e apontou a necessidade de um seminário nacional para discutir regulação da comunicação pública.