Líbia: O julgamento póstumo de Kadafi

A obstinada pressão das autoridades líbias para julgar um filho de Muamar Kadafi revela mais uma calculada exacerbação de patriotismo contra âmagos federalistas do que o convencimento da necessária defesa de sua soberania jurídica.

Por Ulisses Canales*

Quase seis meses após auto-erigir-se em governo, o Conselho Nacional de Transição (CNT) crê ter em Saif Islã Kadafi a oportunidade de parodiar um sonhado espetáculo judicial que se viu malogrado pelo assassinato em outubro de 2011 do antigo líder.

Para além de simpatias e versões para os que praticamente colocaram a Líbia à venda em nome da liberdade e a democracia, a pechincha das últimas semanas com a Corte Penal Internacional (CPI) reforçou a tese anterior, compartilhada por vários analistas.

A CPI acusou Saif Islã, e seu falecido pai e o ex-chefe de inteligência Abdulah Senoussi (também detido) de crimes de lesa-humanidade, supostamente cometidos durante as revoltas opositoras desatadas em fevereiro do ano passado na oriental cidade de Bengazi.

O pretenso julgamento em Trípoli do filho mais midiático de Kadafi se descreveria bem como o processo que "poderia ser e nunca foi", independentemente de que na capital líbia, em Haia ou em Zintan, cairá sobre ele uma pesadíssima mistura de ódio, vingança e frustração.

"Nunca foi" e já não será, pois muitos concordam que com a eliminação física do coronel líbio, seus inimigos domésticos e ocidentais e os Estados árabes que alentaram seu derrocamento, se "privaram" de acusá-lo em vida e o derrotar.

Isso ficou evidenciado nas mostras de gozo ou, quando menos, a calada conivência ante a vexatória exibição no frigorífico de um mercado de Misrata dos cadáveres de Kadafi e de seu filho Muatassim, executados extrajudicialmente próximo a Sirte.

Mas "poderia ser", porque após negociações, desencontros e pressões, o tribunal aliado à ONU parece ter desistido da exigência de transladar Saif a Haia e assentiu que se sente no banco dos réus na Líbia, com segurança e observação estrangeiras.

Com pressões que raiavam a obsessão, a referida corte tinha pedido à Líbia no início de abril a "imediata" entrega do detento, depois de recusar pela segunda vez uma moratória solicitada pelo governo de Trípoli para ganhar tempo e adiar os trâmites.

O processo negociador incluiu ameaças abertas de amoestar o país norte-africano ante o Conselho de Segurança da ONU por sua escassa cooperação, e acelerou viagens com fins dissuasivos de líderes do CNT a países árabes com alto nível de interlocução com o Ocidente.

Meses antes, o promotor da CPI Luis Moreno-Ocampo viajou a Trípoli e falou com juízes e autoridades, inclusive o chefe do CNT, Mustafá Abdul-Jalil, achando negativa em todos seus contatos.

O porta-voz do Executivo líbio, Nasser Manaa, deixou claro então que o segundo descendente de Kadafi seria julgado (em Trípoli) com no Ministério da Justiça, a polícia judicial e os aparelhos de segurança, que são os responsáveis "por sua detenção".

Abdul-Jalil apontou que se processará segundo os critérios do tribunal internacional e seus juízes, mas também se terão em conta o que chamou aspirações do povo líbio", ou seja, vingança.

No entanto, a incerteza persiste enquanto ninguém se atreve a vaticinar o desenlace de complicadas tratativas entre o Ministério líbio da Justiça e as milícias da cidade de Zintan que capturaram e mantêm preso Saif Islã desde novembro passado.

Grupos armados de Zintan que lutaram contra Kadafi apoiados por aviões da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) prenderam seu filho no povoado meridional de Ubari, junto a vários ajudantes, quando escapava do bastião leal a seu pai em Bani Walid.

Os chefes militares de Zintan negam-se a entregar o prisioneiro ao CNT argumentando temor de que seja ajudado a escapar quando estiver em Trípoli ou que os próprios ex-insurgentes nessa região o executem no trajeto à capital.

Porta-vozes do governo líbio admitiram que uma comissão integrada por especialistas legais e chefes regionais de Zintan se recusou ao transferir, confirmando o ambiente de caos e ingovernabilidade imperante na que eufemisticamente chamam "nova Líbia".

Ante as hipóteses de fuga ou assassinato, a própria comissão solicitou que Kadafi fique na referida cidade e que juízes nacionais e observadores estrangeiros se desloquem uns 160 quilômetros a sudoeste de Trípoli, se querem assistir ao publicitado julgamento.

Sem dúvida, a postura das novas autoridades líbias frente à CPI permitiu-lhe granjear simpatias de um amplo setor, bem como aplacar ânsias de vingança por fervor nacionalista, sobretudo em um momento de crescente instabilidade e episódios secessionistas em Bengazi.

O primeiro aniversário do que na Líbia se considera "revolução" se comemorou em 17 de fevereiro passado no meio de combates entre tribos Zuwaya e Tubus, depois estendidos a outras regiões e com outros clãs, e uma defesa do federalismo lançada do berço da rebelião.

Abdul-Jalil, desde suas adjudicadas funções de chefe de Estado, admitiu menos de 10 dias depois de Misrata que a Líbia corria o risco de desintegrar-se e "se transformar em uma confederação de cidades, aldeias, regiões e zonas tribais". Instâncias humanitárias internacionais reconheceram que a "nova Líbia" estava em perigo pelos inúmeros e sistemáticos atropelos e violações que cometiam os que disseram lutar pela democracia e a liberdade.

Detenções ilegais, torturas a presos, encarceramentos com critérios raciais, execuções extrajudiciais e crimes de guerra perpetrados com total impunidade em tempos de paz, foram documentados por diferentes inspetores, sem julgamentos à vista.

No entanto, as prioridades do CNT seguem associadas à obsessão anti-Kadafi, a julgar por recentes viagens de Abdul-Jalil a Qatar, um claro suporte da rebelião armada, e a Argélia, onde pediu ao presidente Abdelaziz Bouteflika "conter a família Kadafi".

Dado que de antemão sabia da negativa do governo argelino a revogar o asilo humanitário concedido à viúva e três descendentes do ex-líder líbio, Abdul-Jalil buscou comprometer Argel a impedir ações dessa família que considera desestabilizadora.

Analistas regionais sustentam que tal postura tentou distrair a atenção do chamado de milhares de ex-combatentes em Bengazi, núcleo da antiga Cirenaica, a apoiar o regresso à estrutura federal existente na Líbia de 1951 a 1963 no reinado de Idris I.

A nação norte-africana dividia-se então em três Estados administrativos, a saber, Tripolitania, Fezzan e Cirenaica, região esta última que abarca da costa do mar Mediterrâneo ao limite sul com o Chade, e da fronteira com o Egito a Sirte, terra natal de Kadafi.

Em 6 de março, partidários do federalismo elegeram Ahmed Zubair Senussi, descendente do falecido monarca, como líder do autoproclamado Conselho Interino Regional da Cirenaica, uma vasta área que entesoura três quartas partes das reservas de petróleo do país.

Senussi e seus seguidores destacaram que sua intenção era estabelecer um órgão de segurança para proteger a Cirenaica em cooperação com as ainda forças armadas e de segurança, mas isso não dissipou a inquietude da liderança líbia.

Os partidários do federalismo disseram reconhecer o CNT como seu representante legítimo em assuntos internacionais, mas paradoxalmente desejam administrar seus impostos, recursos naturais, forças policiais e outros assuntos locais à margem do governo de Trípoli.

Junto ao crescente temor à fragmentação do país, às autoridades preocupa que os rebeldes façam questão de eliminar a lei que guiará as eleições de junho para uma Assembleia Constituinte.

Em seu lugar, os defensores da Cirenaica querem um regulamento que "distribua em partes equitativas" os assentos da Constituinte para as três regiões históricas da Líbia, pois a vigente o faz com base no número de habitantes nas maiores cidades e povoados.

Com um Exército que busca renascer a partir do amálgama de militares e ex-insurgentes insatisfeitos, as ameaças de Abdul-Jalil de usar a força para frear âmagos separatistas são inúteis, e explicam a luta por fazer do julgamento de Saif Islã, um julgamento póstumo de seu pai.

* Correspondente da Prensa Latina no Egito.