“Cairo 678”: A atitude da mulher

Abuso sexual no Egito é o tema deste filme do diretor estreante Mohamed Diab

O diretor egípcio Mohamed Diab não tem medo da verdade. Trata do abuso sexual e do preconceito contra mulheres e do alheamento das autoridades sem paternalismo. Em “Cairo 678” é a visão das mulheres de vários segmentos sociais que se impõe. O filme, estruturado em sequências alternadas para ir juntando-as aos poucos, favorece o entendimento do espectador sobre cada personagem, sua classe, sua profissão, seu cotidiano e sua relação com a sociedade.

Estes entrechos bem articulados traçam um perfil da sociedade egípcia e de sua cultura milenar. Há uma espécie de escala/padrão para Fayza (Nelly Karin), a doméstica, Nelly (Nared El Sabai), a operadora de telemarketing, e a designer de jóias Seba (Boshra). À medida que surgem na tela, os problemas enfrentados por elas afloram, mostrando que, embora sejam de segmentos sociais diferentes, sofrem da mesma agressão. Inexiste liberalidade em seus estamentos. Neles imperam o machismo e a submissão da mulher.

O caso mais emblemático é o de Fayza. Mãe de dois filhos, casada com o policial Adel (Ahmed El Fishaw), ela sofre o mesmo que milhões de trabalhadoras em todos os países do planeta. Enfrenta ônibus cheio, o 678 do título do filme, cuida da casa e dos filhos e tem de ir para a cama com o companheiro mesmo não querendo. Sua diversão restringe-se ao programa de TV. Diferente de Seba, que namorada do médico Sharif, vai ao estádio assistir a partidas de futebol e mora bem. A vida da jovem Nelly difere de ambas: quer se tornar comediante stand up, espaço exclusivo dos homens, em seu país.

Inexiste, portanto, nenhuma relação de classe entre elas, salvo o fato de sofrerem abuso sexual. Mas ambas são insurgentes, desassossegadas, insubmissas. Delas, apenas Fayza, usa turbante, cobrindo parte do rosto. As outras duas não o fazem, o que demonstra certa liberdade de comportamento das mulheres egípcias, em meio ao conservadorismo reinante nas sociedades árabes. Diab costura essas nuances decantando as cenas, para não provocar dubiedade na reação das personagens a seus agressores.

Homens viram pobres diabos

Esta estética permite-lhe tratar o tema com sinceridade, veracidade e realismo. Quando Fayza é abusada sexualmente no ônibus 678 pela primeira vez, ela não sabe como reagir. Torna-se raivosa, frustrada com a atitude do agressor. Em casa, Adel a assedia e ela reage, sem lhe explicar a razão. Equipara as duas atitudes, como se fossem iguais. E Diab não toma partido. Adel não sabe cortejá-la. Com Seba ocorre diferente, ela compartilha com Sharif seu amor ao futebol, no entanto, ele não lhe é solidário quando ela sofre abuso sexual na saída do estádio. Ela fica entregue aos dois agressores sem poder se safar. Passa tratar deste tipo de caso em suas palestras e depois na TV. Daí chama a atenção de Fayza e de Nelly.

Nota-se que a TV, mesmo sendo hoje o espaço do alheamento, da despolitização, da estigmatização e dos modismos, pode servir para a conscientização do espectador, quando o agente impulsor tem compromisso com a sociedade. Nelly une-se às duas por razões iguais, principalmente para escancarar o cinismo, a irresponsabilidade e a cumplicidade das autoridades. E não só do Egito, o caso se repete mundo afora, com matizes diversos. Ela insiste a todo custo em levar ao tribunal seu caso, mesmo que seja, depois, estigmatizada pela sociedade egípcia.

Os três casos, segundo Diab, são reais. Fayza, num instante de desabafo, trai-se pelo conservadorismo. Insurge-se contra a maneira de vestir e de agir das companheiras. Seba e Nelly, diz, são liberais demais. Expõem-se para os homens, incentivando-os ao assédio. Há aqui conceituação religiosa, costumes e aceitação de seu papel enquanto mulher nas relações de gênero, numa sociedade secular, conservadora, embora não se submeta aos assédios do companheiro. Seba, pela visão de Diab, responde mais ao coletivo, ao dividir com as mulheres assediadas, seus próprios problemas. Seu viés, no entanto, é o de romper com Sharif, incluindo-o no rol dos machistas enrustidos.

Talvez a mais contundente seja Nelly. Ela não teme enfrentar o preconceito de gênero, seja em que espaço for. No da família do noivo Omar, que não aceita que ela se exponha no tribunal, para não comprometer sua imagem, não a da futura nora. Tampouco se nega a encarar as platéias masculinas em seus esquetes cômicos no teatro, contando seu próprio caso. Influencia Omar, aspirante como ela ao palco, a se impor à família, seguindo a carreira que pretende, não a que os pais escolheram para ele. É, em suma, o equilíbrio entre as atitudes de Fayza e Seba.

Há no filme ainda a posição da autoridade, cujo delegado Essan (Maged El Kedwany) pretende mostrar-se compreensivo, paternalista com elas, negando-se a expô-las na delegacia e no tribunal para, enfim, não escancarar as mazelas, taras e fragilidades da sociedade egípcia. Diab ao mostrar todos os vértices, permite ao espectador ter noção do que é o abuso sexual. A humilhação e a dor. Os homens em seu filme, mesmo cheios de manhas e espertezas, não passam de pobres diabos. É, na verdade, uma condenação. Não há como ficar impune.

Ficha Técnica
“Cairo 678” (“678”).
Drama. Egito. 2010. 110 minutos.
Fotografia: Ahmed Gabr.
Música: Hani Adel.
Direção/roteiro: Mohamed Diab.
Elenco: Nelly Karin, Boshra, Maged El Kedwany, Ahmed El Fisshawy, Bassen Samra.