Ditadura forneceu armas para repressão no Chile de Pinochet

Documentos secretos produzidos pelo extinto Estado-Maior das Forças Armadas (Emfa) durante a ditadura militar revelam que o governo brasileiro forneceu armamentos militares ao Chile para a repressão interna no regime do general Augusto Pinochet (1973-1990).

Um acordo articulado no governo do general Emílio Garrastazu Médici (1969-1974) e executado durante os primeiros anos do governo de Ernesto Geisel (1974-1979) repassou à ditadura chilena milhares de fuzis, espingardas, cartuchos de munição, carregadores e outros equipamentos bélicos, como “material destinado à manutenção da ordem interna”.

O jornal O Globo teve acesso com exclusividade a documentos que mostram que o EMFA determinou, em 17 de janeiro de 1975, que o armamento a ser cedido ao Chile tivesse as Armas da República apagadas para que não fosse identificada a origem brasileira e oficial. Nessa data, o então vice-chefe do Estado-Maior, general Carlos de Meira Mattos, solicita ao chefe de gabinete do Ministério do Exército “providências no sentido de que a fábrica de Itajubá proceda ao esmerilhamento nas estampagens dos emblemas com as Armas da República dos fuzis tipo FAL e FAP que serão cedidos”, diz ofício secreto assinado por Meira Mattos.

O general pede que o mesmo procedimento seja feito no armamento a ser fornecido pela Marinha: “Conforme relação constante do Aviso da referência, o Ministério da Marinha também cederá idêntico armamento ao governo Chileno. Assim sendo, consultamos aquele órgão da possibilidade de efetuar idêntica operação pela Marinha, ou em caso negativo, se deseja que o trabalho seja feito em Itajubá”.

Os documentos integram uma série de 37 volumes de caráter sigiloso e 52 volumes de boletins reservados expedidos pelo extinto Estado-Maior da Forças Armadas, sucedido pelo ministério da Defesa em 1999. O ministro da pasta, Celso Amorim, informou à Comissão da Verdade a existência dos documentos e solicitou ao Ministério da Justiça a criação de um grupo de trabalho para análise e tratamento das informações. Amorim determinou que os volumes sejam transferidos para o Arquivo Nacional.

Crédito para o governo chileno

O então presidente Geisel, que encarregou o Estado-Maior da coordenação das medidas para equipar o Exército do Chile para a repressão interna, também autorizou abertura de crédito ao governo chileno para a compra de material bélico e equipamento militar de produção nacional.

“O senhor presidente da República autorizou a abertura de um crédito, no prazo de quinze anos, de US$ 40.000.000 (quarenta milhões de dólares), para a aquisição de material bélico e equipamentos militares de produção nacional ou em disponibilidade no país”, afirma o ministro-chefe do EMFA, Humberto de Souza Mello, ao ministro da Defesa do Chile, Patrício Carvajal Prado, em 16 de maio de 1974. Em seguida, Souza Mello pede que sejam tomadas as providências junto ao governo do Chile para que o embaixador chileno em Brasília seja “autorizado a realizar os necessários entendimentos com o ministro da Fazenda do Brasil”, Mario Henrique Simonsen.

Os documentos mostram ainda que o governo brasileiro mobilizou o primeiro escalão do corpo diplomático nas gestões para o fornecimento de armas. É o que revela comunicação feita em 7 de maio de 1974, em que Souza Mello encaminha ao então ministro das Relações Exteriores brasileiro, Antônio Francisco Azeredo da Silveira, ofício do ministro da Defesa do Chile. O ofício “versa sobre um empréstimo a ser concedido pelo Brasil e que seria empregado na aquisição de material bélico e equipamentos militares para as Forças Armadas daquele país”.

Na mesma data, Souza Mello destaca o “interesse” do governo brasileiro em atender à demanda de Pinochet e informa ao ministro da Marinha, Geraldo Azevedo Henning, que as Forças Armadas irão ceder ao governo chileno equipamentos de uso próprio, já que parte do material solicitado não estava disponível para venda. “Dado o interesse de nosso governo em atender ao solicitado e considerando-se que do material bélico solicitado uma parte não se encontra disponível no país, enquanto que a outra parte, de produção nacional, não poderá ser entregue a curto prazo (…). Tal análise indicou a possibilidade de serem cedidos armamentos e munições já entregues, pelos fabricantes ou fornecedores, às Forças Armadas”, diz.

Além do armamento fornecido pelas Forças Armadas, a ditadura militar no Brasil intermediou para o governo Pinochet a aquisição de equipamentos bélicos de empresas brasileiras. Ao menos duas empresas brasileiras serviram para enviar armamentos a Pinochet, a Engesa S.A e Mayrink Veiga S.A.

É o que mostra o mesmo documento, de 7 de maio de 1974, em que o ministro-chefe do EMFA encaminha uma “Lista Geral das necessidade das Forças Armadas do Chile”, além da cópia de uma “carta-proposta de Mayrink Veiga S.A. que versa sobre o fornecimento de armamento e munições importados”. “O assunto tratado no documento do Ministério da Defesa do Chile e em seus anexos foi objeto de contatos anteriores, de comissões das Forças Armadas daquele país com os Ministérios Militares, com os fabricantes e fornecedores de material bélico e equipamentos militares e, finalmente, com este Estado-Maior”, esclarece o general.

Em outro despacho, de 25 de novembro de 1974, Meira Mattos informa ao vice-chefe do Estado-Maior do Exército que o “Exército do Chile encaminhou à Engesa S.A.” ofício em que “solicita informações sobre preços, prazos de entrega e demais características técnicas para munições a serem utilizadas nos veículos Cascavel, recentemente adquiridos por aquele exército”. Segundo o general, a Engesa consulta o Estado-Maior sobre como proceder. O general, então, solicita informações sobre “armamentos e respectivas munições que irão equipar os veículos Cascavel e Urutu, vendidos ao Chile”.

Uma lista enumerando milhares de armas a serem fornecidas ao governo chileno está entre os documentos a que O Globo teve acesso. Em 9 de outubro de 1974, o então ministro-chefe do Emfa, Antônio Jorge Corrêa, emite comunicado secreto ao presidente da República, general Ernesto Geisel, com documento anexo “referente à exportação e cessão de material bélico para o Chile”. “As providências foram tomadas em obediência à determinação de Vossa Excelência em despacho de 25 de março de 1974 e somente foi considerado o material destinado à manutenção da ordem interna”, pontua Corrêa.

Preocupações com articulação de guerrilhas

Além de negociações para cessão de armamentos ao governo chileno, documentos produzidos pelo Estado-Maior das Forças Armadas mostram a preocupação da ditadura brasileira com ligações entre grupos de guerrilha locais com os vizinhos latino-americanos. Em documento reservado de novembro de 1974, o ministro-chefe do Emfa, Antônio Jorge Corrêa, discorre sobre a “suspeita de entendimentos entre organizações terroristas argentinas e brasileiras”.

Ofício endereçado ao comandante da Escola Superior de Guerra, Walter de Menezes Paes, dá instruções sobre “providências de segurança” a serem tomadas. “Esta chefia teve conhecimento através de órgãos de informação que há suspeitas de entendimento entre organizações terroristas argentinas e brasileiras, visando a atentados contra elementos indicados pelas ditas organizações”, diz o ofício.

O ministro refere-se então a uma viagem de intercâmbio entre os dois governos militares e pede precauções devido às suspeitas de cooperação entre guerrilhas dos dois países: “Devendo a ESG coordenar a visita da Escola de Defesa Nacional da República da Argentina, na segunda quinzena de novembro próximo, alerto V.Exa, para as providências de segurança que se tornam necessárias. Em face do acima exposto, recomendo V.Exa. que realize as necessárias ligações com o Exmo. Sr. Comandante do I Exército”, aponta Corrêa.

Em outro despacho, de 31 de outubro de 1974, Antônio Jorge Corrêa se dirige ao presidente da República, Ernesto Geisel, para manifestar a “preocupação” da Junta Interamericana de Defesa (JID) sobre a “possibilidade de reingresso de Cuba na Organização dos Estados Americanos (OEA)”, diante da discussão da revogação das sanções impostas em 1962 e 1964 ao governo cubano, como a exclusão da JID.

“O atual governo de Cuba, no momento em que passou à situação de integrante do Bloco Comunista, tornou-se incompatível junto à JID, devido ao fato de que os planejamentos militares desta já consideravam como principal ameaça ao continente americano a atuação do movimento Comunista Internacional, materializada, naquela época, por uma agressão militar de origem externa”, afirma Corrêa.

Corrêa sugere, então, duas “diretrizes” para a representação brasileira na JID. A primeira, de que não participasse das discussões e se abstivesse de votações relativas a Cuba. A segunda, de que, caso fossem suspensas as sanções, o Brasil permanecesse na posição de observador e o Estado-Maior fosse “constantemente informado”.

Fonte: jornal O Globo