O bóson de Higgs e o conhecimento da matéria

Os cientistas do Centro Europeu de Pesquisa Nuclear (Cern) anunciaram a mais importante descoberta da física nos últimos 30 anos, um passo importante para o entendimento da estrutura da matéria.

Por José Carlos Ruy

Pesquisadores do Cern

Os físicos do Centro Europeu de Pesquisa Nuclear (Cern) comunicaram ontem (4), em Genebra Suíça, um importante passo para a compreensão da estrutura da matéria. Eles podem ter encontrado indícios da existência do chamado bóson de Higgs, uma partícula elementar fundamental para a explicação da existência da matéria mas, até agora sem comprovação empírica.

"Temos uma descoberta", disse Rolf Heuer, diretor-geral do Cern, no seminário onde foram apresentados os resultados mais recentes das pesquisas realizadas com o Grande Colisor de Hádrons (LHC, do nome em inglês Large Hadron Collider), que é uma imensa máquina (um círculo de 27 quilômetros de circunferência), que custou entre seis e dez bilhões de dólares e começou a funcionar em 2008. E que foi construído especialmente para a investigação de partículas elementares.

Alguns físicos consideraram a descoberta anunciada como a mais importante dos últimos 30 anos no mundo da física. O bóson procurado foi descrito teoricamente por Peter Higgs em um artigo publicado em 1964 e desde então os físicos buscam comprovar sua existência através de experimentos. Trata-se da última partícula prevista pelo chamado modelo padrão cuja existência ainda não foi comprovada. O fato de ser infinitamente pequeno em sua massa e durabilidade (ele se transforma em outras partículas num espaço de tempo infinitesimal) são obstáculos quase intransponíveis para isso. Daí a prudência no anúncio e o alerta de que exigirá ainda muita pesquisa, e o uso de muito tempo e dinheiro para dar aos cientistas uma certeza mais efetiva a respeito do anúncio feito ontem.

Prudência científica

Os cientistas do CERN tem algumas certezas, contudo. Mesmo não tendo observado diretamente o bóson devido a seu decaimento (este é o nome que os cientistas dão à transformação de uma partícula em outras), eles sabem que encontraram alguma coisa importante em dois experimentos diferentes do LHC, o ATLAS (A Toroidal LHC Apparatus)e o CMS (Compact Muon Solenoid).

Os resultados são compatíveis com a descrição feita por Higgs há quase cinquenta anos. "Não é um resultado definitivo, mas as chances são muito grandes", explicou o físico brasileiro Sérgio Lietti, pesquisador do Núcleo de Computação Científica da Universidade Estadual Paulista (Unesp), e que participa das pesquisas do Cern.

Outro físico do Cern, o suíço Oliver Buchmueller, explicou que o resultado semelhante obtido de forma independente pelas duas equipes reforça a convicção da descoberta de um novo bóson, mas pondera, com prudência, que ainda é preciso “provar definitivamente que é o que Higgs previu". Esta é também a opinião do norte-americano de Joe Incandela, responsável pelo CMS. Uma partícula foi de fato encontrada, diz ele, mas ainda é cedo para dizer se é ou não o bóson de Higgs ou não. Ele confessou ter “grandes incertezas"; trata-se, disse, de um “resultado preliminar”, embora “muito forte e muito sólido". "Encontramos algo muito profundo, diferente de qualquer outra partícula."

Sua colega, a italiana Fabiola Gianotti, que dirige a experiência com o detector ATLAS, tem opinião semelhante. "Estamos apenas no começo”, disse, pedindo paciência às pessoas, “em especial aos físicos teóricos”, e também classificando os resultados como preliminares mas sólidos.

Evidências estatísticas

Os cientistas afirmam que o bóson observado está dentro das evidências estatísticas (eles chamam de “sigmas de significância” e neste caso atingiu o valor de 4,9, considerado muito alto) que medem a probabilidade dos resultados. O valor alcançado indica, para os cientistas, uma chance de erro apenas um em um milhão. “Não tenho muita dúvida de que, na física de partículas, é o evento mais importante dos últimos 30 anos”, disse o físico Sérgio Novaes, da Universidade Estadual de São Paulo (Unesp) e que participa da equipe brasileira da pesquisa do CMS. "Acho que é um momento histórico que a gente está vivendo".

O bóson de Higgs foi definido como uma das partículas elementares do chamado modelo padrão, que é dominante entre os físicos para explicar o funcionamento da matéria no mundo infinitamente pequeno do interior do átomo e descrever como as partículas se mantém juntas, dando consistência à matéria. Seria uma espécie de “cola” das partículas, impedindo-as de se dispersarem. Esta consistência, que se manifesta desde este mundo extremamente pequeno, está na base de tudo aquilo que existe no Universo – das estrelas aos planetas e aos seres vivos e toda a realidade material observável.

A busca pela partícula de Higgs é, de fato, a busca pela explicação dos fundamentos da matéria naquela que é hoje a última fronteira da ciência; daí sua importância.

Partícula de Deus?

Os cientistas cercam-se de cuidados. Afinal, o anúncio dos resultados tem um duplo interesse, científico e financeiro. É uma forma de prestar contas dos elevados gastos com a pesquisa e, ao mesmo tempo, uma maneira de tentar seduzir os governos, principalmente europeus, a manter os investimentos. É neste sentido que se deve entender a presença de diplomatas de vários países europeus, convidados para assistirem ao anúncio feito na sede do CERN.

Se há cautela entre os cientistas, o mesmo não se pode dizer de editores e jornalistas que tratam do assunto. A começar pelo próprio apelido dado pela imprensa ao bóson de Higgs: partícula-deus (no Brasil, partícula de Deus). Ele surgiu em 1993 quando o Nobel de física de 1988 Leon Lederman publicou o livro “The God Particle” (A partícula-Deus), sobre o bóson de Higgs. Este título foi dado pela editora, que rejeitou a proposta inicial de Lederman, que era “Goddamn Particle” (em português Partícula maldita).

Os cientistas não gostam deste apelido, mesmo porque a brincadeira distorce completamente o significado da busca pela compreensão mais profunda da matéria. Mas no noticiário científico dos jornais e revistas, o apelido pegou com um fundamento indisfarçavelmente ideológico. A busca pela explicação da existência da matéria que move a ciência exclui por antecipação a interferência de forças sobrenaturais. Ao contrário daquilo que o apelido sugere, a comprovação da existência do bóson de Higgs, ou de outro fenômeno natural semelhante a ele, previsto pela teoria, deixa Deus fora da explicação. A pesquisa significa, neste sentido, um avanço materialista na compreensão da natureza e da matéria, e relega a crença numa entidade sobrenatural e divina à esfera das convicções pessoais e íntimas, não comprováveis pela experiência empírica.