Flávio Aguiar: O Euro e a falta de ar da ortodoxia

A ortodoxia europeia está começando a padecer de falta de ar. O último sinal dessa anorexia respiratória dos cardeais do sistema financeiro foi a reação contraditória e fragmentada à declaração do presidente do Banco Central Europeu, Mario Draghi, de que “faria tudo para salvar o euro”.

Por Flávio Aguiar, em Carta Maior

Seria cômico, se não fosse patético. O ministro das Finanças grego, Yiannis Stournaras, deu uma declaração no fim de semana, dizendo que “se tomarmos [os gregos] uma direção diferente daquela que a lógica nos sugere, poderíamos ser ejetados da Zona do Euro e cair em bancarrota”.

Como se a Grécia já não estivesse em bancarrota, e o povo grego na penúria. Informes daquele país dizem que, como na Idade Média, pessoas em grande número estão procurando se refugiar em conventos, para fugir da fome. Religiosos dessas instituições têm dito que sabem que de cada dez que os procuram, provavelmente apenas um tem de fato uma vocação religiosa. Mas dizem que não se sentem capazes de recusar as pessoas, porque elas estão mortas de fome, ameaçadas por doenças e muitas até correm o risco de suicídio.

Enquanto isso, os fervorosos adeptos do messianismo dos planos de austeridade continuam aferrados às suas crendices e superstições monetárias e fiscais. Não conseguem nem mesmo vislumbrar que, como já apontou várias vezes Paul Krugman, hoje em dia os planos de austeridade são a principal fonte da inadimplência dos estados, ressecados pela recessão e desafiados pela procura desesperada de caminhos de sonegação pelos que querem preservar incólumes seus capitais em meio à baderna e o naufrágio. Sem falar nos altos administradores do mundo financeiro – tanto nos governos quanto fora deles, nos bancos e instituições desse mercado – que causaram a crise e continuam ganhando generosos bônus para administrá-la com sua incompetência habitual.
Mas a ortodoxia está começando a padecer de falta de ar. O que, na verdade, a torna mais propensa a ataques apopléticos.

O último sinal dessa anorexia respiratória dos cardeais do sistema financeiro foi a reação contraditória e fragmentada à declaração do presidente do Banco Central Europeu, Mario Draghi, de que “faria tudo para salvar o euro”.

Na interpretação generalizada, isso significa que Draghi está articulando a continuação da compra de eurobonds dos países endividados (sobretudo, nessa altura, Espanha e Itália – já que Portugal, Irlanda e Grécia, além de Chipre, foram entregues às feras) no mercado secundário (aquele em que os compradores no mercado primário os renegociam). Mais: também leu-se, nessa interpretação, que Draghi provavelmente está articulando a compra de bonds diretamente dos países endividados, a uma taxa de juro mais barata do que a oferecida pelos bancos e outros fundos de investimento.

A reação foi confusa. Inicialmente as bolsas reagiram positivamente, pensando que viria novo dinheiro por aí. Depois, caíram cautelosamente, porque Draghi parece estar articulando isso para quando setembro vier, o que não surprende, uma vez que julho e agosto são, tradicionalmente, meses de “espera”, na política europeia. Além disso, a Suprema Corte da Alemanha – país chave nessa confusão financeira – promete dar seu veredito sobre a constitucionalidade (no seu âmbito) do Mecanismo Europeu de Estabilidade, o fundo de emergência, apenas em setembro.

Neste país – a Alemanha – se concentraram as reações mais asfixiadas e asfixiantes às declarações de Draghi. O ministro da Economia, Philip Rösler, do neoliberal FDP, declarou que “concordava” com Draghi, porque este disse que condicionaria a ajuda à adoção de mais reformas ortodoxas nos países em questão, uma maneira de torcer levemente as palavras do presidente do BCE em seu favor.

Mas a grita entre outros políticos alemães foi enorme sobre o “perigo” que essa “intervenção do BCE no mercado” representaria, inclusive da parte do porta-voz do SPD no Bundestag, Frank-Walter Sternmeier, e também de políticos da coalizão liderada pela chanceler Angela Merkel. Quem se opôs veementemente ao esboço do plano de Draghi foi Jens Weidmann, cavaleiro andante do neo-liberalismo, presidente do Banco Central Alemão (o Bundesbank) e seu representante no Conselho Diretor do BCE, com a maior parcela individual de votos (18%). Weidmann brandiu o velho argumento de que, sem exigir previamente o prometido arrocho nos investimentos públicos e outros ajustes, um anúncio desses e seu posterior cumprimento só favoreceriam países e governos perdulários, jogando-se fora a oportunidade das decantadas reformas.

Ocorre que dessa vez, ao contrário de outras, Weidmann ficou isolado no Conselho. Nem mesmo Jörg Asmussen, o outro representante alemão nele, pertencente ao SPD, ficou do seu lado. Tampouco os representantes dos bancos centrais da Áustria, Finlândia e Luxemburgo – aliados tradicionais – votaram com ele. Um desastre para a ortodoxia neo-liberal, para quem ceder no aparar de uma unha já é perder a mão inteira, para não falar dos anéis.

Decididamente, a semana se abriu pesada para a ortodoxia.