Zillah Branco: Solidariedade anônima e a cultura humanista

Importante pesquisa do IBGE mostra que no Brasil existem 35 milhões de cidadãos que já exerceram funções de solidariedade junto a instituições sociais ou médicas, dando uma parte do seu tempo para levar apoio e carinho a quem sofre. Por Zillah Branco*

O número de jovens vem crescendo, principalmente nos hospitais e casas para idosos, prestando serviços gratuitamente como a distribuição de livros e revistas, ou jogos e brinquedos para as crianças, contam histórias e encenam peças de teatro que ajudam a passar o tempo e criar um ambiente alegre para os que estão em tratamento.

Recordo a presença por todo o país da Pastoral da Criança ensinando as famílias mais pobres a alimentarem os seus filhos com uma farinha fortificante produzida com folhas de grande valor nutricional, casca de ovos moída e produtos de baixo custo. No primeiro domingo de cada mês as voluntárias efetuam a pesagem dos bebês para constatar a superação do risco de subalimentação tão comum no Brasil. Por outro lado, aquela associação desenvolveu uma efetiva campanha para que cada família soubesse combater a desidratação causadora do maior número de mortes nas crianças brasileiras. O seu trabalho foi fundamental para a redução dos óbitos infantis no país.

Em várias escolas públicas existem alunos que se oferecem para ajudar os colegas que têm mais dificuldade nos estudos e até podem repetir a matéria em uma aula de recuperação para vários colegas. Devido aos pedidos dos alunos da Escola Cruzeiro no Rio de Janeiro, foi desenvolvido um projeto com alunos com melhores notas para ajudar os colegas em horas extras.

Os exemplos de solidariedade são incontáveis e ultrapassam a forma apreciada pelo IBGE. Conhecendo a inércia tradicional que mina a maioria dos serviços de atendimento social no Brasil, cria obstáculos "burocráticos" para desprezar a urgência que muitos cidadãos reclamam para solucionar os seus problemas de subsistência e de saúde, merecem a classificação de "militantes da solidariedade humana" os funcionários abnegados que fazem todo o possível para atender com o devido respeito o cidadão necessitado de atenção, por iniciativa própria e mesmo que a administração do serviço permaneça alheia. Estes casos que, felizmente existem, revelam a qualidade de pessoas que assumem a responsabilidade de atender o cidadão que procura o serviço público não pelo salário que recebe nem por qualquer outra forma de compensação, mas pelos seus princípios humanistas e sociais. Também é comum esta atitude desencadear o desagrado entre colegas e até chefes que estão acomodados na prática, chamada "burocrática", de guardar na gaveta durante anos a reclamação difícil de resolver à espera de que o reclamante desista ou morra.

Diferentes interesses promovem a solidariedade

Como em relação à defesa da natureza, a mídia deu destaque ao interesse pela solidariedade demonstrado por empresários (que deixam a filosofia como tema para a publicidade das iniciativas) e calculam o lucro derivado do trabalho voluntário que agrega valor aos serviços prestados e, ao mesmo tempo, dá uma formação agregada à que o funcionário apresenta: sociabilidade e simpatia, iniciativa e responsabilidade, capacidade de trabalho em grupo, ideias de gestão, administração e disciplina, liderança.

Entrevistada pela Globonews, a presidente da Riovoluntário, com base na referida pesquisa que indicou 5% dos voluntários dando apenas 5 horas por mês, portanto 60 horas/ano cada um, calculou que se trata de 2 milhões e 400 mil voluntários nessa categoria, trabalhando 144 milhões de horas por ano. Supondo o valor mínimo de 20 reais por hora, em um ano serão agregados 2 bilhões e 880 milhões de reais aos serviços de atendimento social, apenas por estes 5 % de voluntários que dispõem de menos tempo que a maioria dos 35 milhões de brasileiros.

Um psicólogo, também entrevistado no programa televisivo "Cidades e Soluções", ressalta o valor da atividade solidária como excelente recurso contra o estado depressivo, na medida em que o voluntário torna-se reconhecidamente útil e bom para os demais.

A internet divulga a história do Centro Voluntário da Vida – CVV – que há 50 anos realiza por telefone um trabalho de prevenção do suicídio em que o voluntário aprende a dialogar com quem está em desespero e trabalha para o dissuadir da morte aprimorando a sua iniciativa de ajudar o outro.

A história do voluntariado no Brasil

O modelo padrão, tradicional, de ação voluntária está vinculado às práticas das diferentes seitas religiosas. De fato, na história do Brasil, foram os Jesuítas que primeiro introduziram esta prática social, com a promessa de compensações divinas pelo trabalho gratuito e, para os jovens, a formação profissional. O interesse dos religiosos, fosse no aproveitamento de uma mão de obra gratuita ou apenas paga com a alimentação ( melhor situação do que a escravidão), fosse na caridade da preparação de indígenas marginalizados para a aculturação e inserção social, era regido pelas crenças cristãs da época, inclusive com as ameaças de punição divina.

Mais tarde surgiram outras seitas cristãs, católicas e protestantes, que marcaram com as suas diferenças internas a conduta em relação ao ensino e aproveitamento do espírito de solidariedade. Também seitas espíritas e de religiões africanas e asiáticas foram surgindo na sociedade brasileira e fazendo uso similar da promoção da solidariedade que alcança um valor épico junto à coletividade que a experimenta. Mas a formação humanista nem sempre foi de inspiração religiosa. O sentimento patriótico e de solidariedade comunitária deu origem às manifestações de resistência política e social que marcou a história nacional. A Coluna Prestes, durante dois anos saiu do Rio Grande do Sul e percorreu o interior nordestino do Brasil em defesa das populações rurais abandonadas pelo sistema republicano vigente. Foi uma experiência guerrilheira que revolucionou a estratégia de luta revolucionária, mais tarde utilizada em outros países com grande êxito para o processo socialista, e serviu de alavanca ideológica no Brasil para ultrapassar os limites políticos do domínio ruralista latifundiário, caracteristicamente elitista e egoísta.

Os valores que os empresários modernos apregoam – de formação do indivíduo mais capaz e com autocontrole – tornou-se incentivo à promoção dos mais bem sucedidos na hierarquia dos servidores das igrejas (o heroísmo de alguns inspirou as santificações), assim como no plano político e social na formação de líderes.

No século 19, a militância política de diferentes tendências ideológicas e de movimentos específicos de lutas sociais, desenvolveram a prática da solidariedade social substituindo os estímulos religiosos anteriores pela construção de uma nova sociedade mais justa apoiada na formação humanista dos militantes contrários ao egoísmo individualista da elite dominante.

Qualquer que seja a motivação para a produção de serviços sociais, religiosa ou filosófica, com interesses pessoais de promoção pessoal ou desinteressados, a solidariedade introduz na organização da sociedade uma contribuição positiva de caráter democrático e humanista que contraria os princípios filosóficos do sistema capitalista.

Objetivos egoístas embutidos em valores altruístas

Para "reformar" o sistema capitalista, a tendência social-democrata criou uma versão do "capitalismo humanitário" que se apropriou de conceitos de cooperativas, participação popular, solidariedade comunitária, amplamente aplicados nos programas internacionais do Banco Mundial, da FAO e outros organismos da ONU.

Sob estas orientações formalmente humanistas, foram feitas experiências nos países mais pobres da América Latina, África e Ásia, que obtiveram êxito inicial devido aos investimentos aplicados mas a médio e longo prazo promoveram graves desastres naturais e sociais devidos ao peso da exploração financeira que está no cerne da ideologia capitalista. Hoje são revelados os gravíssimos problemas (previstos por especialistas que não foram ouvidos) de destruição do solo na Índia durante a Revolução Verde, pulverização da união política entre trabalhadores rurais em países onde foram realizadas Reformas Agrárias com a divisão das propriedades de agricultura extensiva em micro explorações familiares, incentivo a cooperativas que encerram condições de sociedades submetidas ao poder econômico destruindo os laços de solidariedade entre os cooperantes e quebra das tradições culturais equilibradas com as condições naturais e humanas existentes na região.

A verdadeira solidariedade exige um comprometimento com a possibilidade de apoiar os grupos humanos carenciados no seu desenvolvimento para que possam alcançar melhores condições de ida sem perderem a sua independência e as características culturais que formam a sua personalidade. Doações externas podem ser positivas, mas não têm o valor da solidariedade porque podem ser apenas uma "compra" disfarçada.

* Zillah Branco é socióloga, militante comunista, conselheira do Cebrapaz e colaboradora do Vermelho.