Lourdes Albuquerque preferia os filhos lutando do que alienados

Maria de Lourdes Miranda de Albuquerque, 90 anos, um filho para década vivida, militante pró-anistia. Sem tomar das armas, desafiou a ditadura militar no Brasil. Leia a seguir a íntegra da entrevista publicada nesta segunda-feira (20/08), no jornal O Povo:

Bem humorada, Lourdes recupera um episódio para ilustrar as querelas ideológicas que tinha com o marido, o comunista Mário Albuquerque, 21 anos mais velho. À época, como vivessem no aluguel, era natural que a pauta de reivindicações de Lourdes, mãe proletária, fosse dominada por um tópico: a compra da casa própria. Encarapitado na doutrina stalinista, porém, o cônjuge rejeitava a propriedade burguesa. E prometia: “A revolução vem bem ali”.

Era o começo da segunda metade do século XX, e a casa logo viraria realidade; a tão acalentada revolução “vermelha”, não. À sombra dos ditadores, essas pequenezas da vida matrimonial eram a menor das preocupações de Maria de Lourdes Miranda de Albuquerque. Menos por vocação política do que por amor, a jovem mulher aninhava em casa uma prole cujo laço comum, que não era o de sangue, tornava o endereço da família um lugar marcado: eram perseguidos políticos.

Dos nove filhos de Lourdes, quatro seriam presos e torturados durante o regime de exceção que se instalaria no País a partir de 1964. Três homens e uma mulher. Houve outros. Sem aviso prévio, a morada dos Albuquerque convertia-se poucos em esconderijo para militantes políticos em desacordo com a nova ordem vigente. Deputado federal pelo Partido dos Trabalhadores (PT), José Nobre Guimarães foi um deles. “Veio para cá muito pobre, com chinela rasteira”, conta Lourdes.

Aos 90 anos, alcançados há menos de um mês, dona Lourdes passeia entre memórias de infância e juventude. Da meninice, traz reuniões secretas em quartos fechados na pequena Chaval, interior do Ceará. Da adolescência, os muitos namoricos que justificavam o aposto de “moça danada”. Da maturidade, os filhos, de sangue e espírito, que manteve longe do punho cerrado do regime militar.

O POVO – A senhora é natural de Chaval ou é de Granja?

Maria de Lourdes Miranda de Albuquerque – Sou de Granja, mas fui registrada em Chaval. Me criei em Granja e em Chaval. Fiquei muito em Viçosa, em Parnaíba… Era uma moça muito danada (risos). Passei em Chaval até os 12 ou 13 anos e fui para Camocim, para casa de um parente meu. Lá encontrei meu marido. Tinha 18 anos e ele, 39. Quando cheguei lá, arranjei um noivo. Era escrivão do cartório. As festas nessa época sempre se davam em casas de família. Teve uma na casa de um amigo nosso. Ele (o noivo) não quis ir porque estava doente. Mas fiquei louca pra ir e terminei indo olhar com uma amiga. E lá encontrei um rapaz que me despertou um pouco. Era desconhecido porque era de Fortaleza. Não sabia quem era ele nem ele sabia quem eu era. No dia seguinte, andou falando com um amigo e descobriu quem era. Foi bater lá em casa, em Camocim. Disse a ele do noivado, mas adolescente não tem muito amor (risos). Logo se apaixonou. E eu pensando no outro, vendo o que fazia. Mas como o lugar é pequeno, o noivo soube logo e tive que acabar com ele. Passei seis meses com o primeiro noivo, mas acabei casando com o Mário (Albuquerque, falecido em 1981). Namoro e noivado, tudo foi dois meses. Casamos em 1942, em Camocim. Mário trabalhava na Panair (subsidiária no Brasil de uma companhia aérea norte-americana). Era comunista. Na época, eu não sabia. Era muito nova e não ligava muito. Mas minha mãe tinha ideais comunistas. Via na minha casa ela fazendo reuniões.

Que reuniões eram essas?

Eram em quarto trancado. Nessa época, ninguém podia falar em comunismo. Meu pai era católico, mas também não se incomodava com o ideal dela. Era a mais nova e toda vida gostava muito de saber das coisas.

Sua mãe falava sobre os encontros?

Comigo, conversava, mas com os outros filhos, não. Ficava curiosa para saber. Às vezes, perguntava e ela dizia que era sobre as guerras de tal país. Aí eu dizia: “É lá no país, a senhora não tem nada a ver com isso”. Quando ela soube que meu marido era comunista, ficou muito feliz. Ninguém o conhecia, mas meu pai telefonou ao cartório para saber se era solteiro. Meu pai não queria muito porque o Mário era comunista. Embora minha mãe fosse… Meu marido era um homem muito bom, mas muito impertinente. Trabalhava durante o dia e à noite fazia comício contra os americanos. Aí foi demitido. Pregava noite e dia o comunismo. Passou muito tempo desempregado porque só podia trabalhar com comunismo. Comunismo não dá emprego a ninguém! Quando morreu, morreu só com um salário mínimo. Não tinha dinheiro pra nada. Tive que trabalhar em uma máquina de costura já velha, sem motor. Costurava a noite todinha para, no dia seguinte, entregar as costuras para ter dinheiro para comer. Depois arranjei um emprego para ensinar arte. Ensinava na Igreja dos Remédios.

Como foi que sua mãe se envolveu com política? Não era muito comum, nesse tempo, uma mulher se aproximar de ideologias, sobretudo a comunista.

A mãe contava que se revoltou quando foi casar. Trabalhava muito na igreja, tocava violoncelo, e queria casar em tal altar. Aí o padre disse assim: “Esse altar é mais caro”. Ela disse: “Então pronto! Se pudesse, nem casar eu casava”. Daí se rebelou, ficou revoltada e não foi mais à igreja. Os pais delas não tinham nada de política. Meus irmãos também nunca se interessaram. Quando Mário (o filho) foi preso, fez uma carta, que estava muito satisfeita com o que ele fez. Que ela estava de acordo. Mas o Mário nunca recebeu essa carta.

Como foi que a senhora reagiu quando seu primeiro filho foi preso?

O Pedro (filho) estava em casa, sentado na sala, e eu estava preparando o almoço. Um vizinho entrou para avisar: “Dona Lourdes, entraram dois caras aí e levaram o Pedro preso”. Fiquei louca. Levaram para a rua Tiradentes e depois para o 23º BC (Batalhão de Caçadores, em Fortaleza). Não o visitei porque adoeci. Fiquei sem enxergar. Urinei sangue três meses. Fiquei muito doente. Pedro passou 17 dias preso. Era estudante da Escola Técnica (atual Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará) e do movimento estudantil. Foram as primeiras prisões.

Quando Pedro voltou, a senhora percebeu alguma diferença nele?

Pedro sempre foi muito forte mesmo e eu sempre fui muito forte com ele. Nunca entristeci. Nunca chorei por meus filhos estarem no movimento, nem quando estavam presos. Achava que estavam certos na luta deles.

Mas a senhora queria que os meninos tomassem o caminho da militância contra a ditadura?

Não queria diretamente, mas também não queria que não entendessem a verdade. Preferia lutando do que sendo alienados. Tinha uma amiga que disse: “Se a senhora não for falar com Mário para ele dizer que entrou no movimento (estudantil) por causa de colegas, ele vai mofar e não sai da cadeia”. Eu disse: “Nesse caso, ele vai mofar, porque eu não vou fazer isso. Se um filho meu for dar uma declaração dessa, eu prefiro morrer”. “Então a senhora é igual aos filhos.” “Não sou igual, mas talvez seja parecida.”

Quando havia divergência em casa, a senhora ficava do lado de quem, do marido (stalinista) ou dos filhos (trotskistas)?

Ficava mais do lado dos meninos (risos). O Mário (marido) era muito sectário. Dizia para comprar uma casa e ele respondia: “Não, mulher! A revolução vem bem ali”.

Havia reuniões secretas na sua casa assim como aconteciam na da sua mãe?

Acolhia muita gente. Quando chegavam, não faziam reunião. Faziam fora. Já iam suspeitos, já chegavam escondidos. Mas aceitava todos. Recebi um de Recife que chegou seis horas da manhã, que era a hora que os policiais chegavam lá em casa. O Guimarães (deputado federal José Nobre Guimarães, do Partido dos Trabalhadores-PT) veio para cá muito pobre, com chinela rasteira…

Como seu marido tinha problemas para encontrar emprego por causa do comunismo, quem sustentava a família?

Passei 20 anos trabalhando três expedientes. Ensinava artes de manhã e de tarde e à noite trabalhava nos Correios. Depois fui chamada para o INSS, onde passei 10 anos. Meu marido adoeceu porque o Célio (filho) passou um ano preso. Era tão criança, um menino assim tão tolo. Tinha 18 anos. Foi preso porque pichava os ônibus com um “X”, de voto nulo. Mandei o Célio ir lá no movimento (estudantil) atrás de um rapaz de Recife para ter notícias do Mário. Quando chegou lá, viu e entrou.

Foi nesse período que a senhora perdeu o paradeiro dos filhos…

O Mário foi para Recife e lá tinha uma casa chamada “Casa de Farinha”. Nesse tempo, Mário era casado com a Vera e foi para Recife lutar. O Mário também estava preparado para ir embora, mas esqueceu um documento e voltou. Quando chegou, a casa já estava ocupada pelos militares. Passou quatro anos preso. Depois transferi ele para cá. Só iam transferir se pagasse, mas não podia pagar. Então, fiz uma carta ao ministro (da Justiça no governo Geisel) Armando Falcão. Todo mundo dizia que o ministro não ia receber a carta, que ia jogar no lixo. Eu dizia: “Mas eu faço!”. E fiz. Me respondeu muito sensibilizado e disse que meu filho seria transferido a qualquer momento. No caso do Pedro, passei oito meses sem saber onde estava. Ia à Polícia de manhã, de tarde e de noite. Ia e eles negando. O Pedro passou oito meses sendo torturado. Disse que chegou a ficar em um quarto que era um forno. Não ficava em pé, ficava de cócoras. Pedro também esteve no Araguaia (movimento guerrilheiro do fim dos anos 1960 à metade dos anos 1970). Lá a mulher dele engravidou. O partido queria que ela abortasse. Nem ele nem ela aceitaram. Então, tiveram que sair. Voltaram porque queriam que a menina nascesse. A filha nasceu aqui, escondida. Sabia que ela estava aqui, só não sabia onde.

Depois disso, as visitas da Polícia a sua casa se tornaram frequentes?

Chegavam a qualquer hora e invadiam. O que fizeram da primeira vez, fizeram todas as vezes. Tudo que estivesse dentro de casa, botavam para fora. Ameaçavam matar a gente. Meu marido ficava muito nervoso. Só quem atendia era eu. O período mais difícil foi em 64. Foi muito horrível. No AI-5, foram lá em casa cinco vezes, das onze da noite até de manhã. Atrás do Mário e do Pedro. Eu dizia: “Eles não estão. Vocês acham que sou tola ou meus filhos são babacas?” Passavam debaixo das redes das minhas filhas. Essas visitas duraram muito tempo.

Como foi o episódio em que a senhora cortou a própria orelha?

Me deram a notícia de que o Mário estava preso e fiquei tão louca que puxei os brincos da orelha. Até hoje tem o corte. Não queria costurar. Deixa o corte aí como lembrança.

Como a senhora se engajou no movimento pela anistia?

A gente lutou muito pela anistia. O dom Aloísio (Lorscheider, 1924-2007, foi arcebispo de Fortaleza de 1973 até 1995) também queria a anistia, mas não queria que a gente falasse ou apressasse porque a 10ª Região Militar podia complicar. Mas a gente não ligou. Estava em casa quando recebi um bilhete da Maria Luiza (Fontenele, ex-prefeita da capital cearense), marcando um encontro. Não a conhecia. Fui lá e era para fazer um movimento para pedir pela anistia. A gente se encontrava na ACI (Associação Cearense de Imprensa). As reuniões eram para ir a jornais, lutar na rua com o pedido de anistia dos presos políticos. A gente não se acovardou.

E o reencontro com os filhos?

Quando Mário saiu da prisão, a casa se encheu de gente. Não sei de onde tirei tanto frango assado (risos). Passou uma semana de festa lá em casa. Depois, quando o Pedro chegou também, perguntaram o que faríamos para a festa dele. “Faça baião e paçoca, que ele nunca mais comeu.”Foi o que eu mandei fazer.

Qual foi a maior felicidade política que a senhora teve?

A volta dos filhos foi uma glória para mim. Mas continuo na mesma luta. O que eles fizeram, tinha que ser feito. Se eles não tivessem feito isso, o que seria do Brasil? Continuar do mesmo jeito? Apesar de hoje não estar bom, foi um alicerce. É daqui pra frente. Não pode voltar de maneira alguma. Fico triste quando vejo as pessoas alienadas. Se todo mundo pensasse como eu penso, o País seria outro.

Fonte: Jornal O Povo