Novas vozes femininas (final): Mart’nália e Roberta Sá

A mídia ávida de rostos “bonitinhos” e corpos sacolejantes menospreza talentos e a arte verdadeiramente popular. Quantas cantoras há pelos cantos deste país continental necessitando de espaço?

Por Marcos Aurélio Ruy (*)

Em 1981 Chico Buarque ao mudar de gravadora, percebeu que estava na mesma, pois uma havia comprado a sua antiga gravadora, sentiu-se enganado e fez a música A voz do dono e o dono da voz, em protesto. Com sua marca indelével, Chico apresenta o problema que todo artista sofre em países capitalistas para sobrevier com sua arte. Um pedaço da letra diz:

Porém, a voz ficou cansada após
Cem anos fazendo a santa
Sonhou se desatar de tantos nós
Nas cordas de outra garganta.

 

Poderia ser mais transparente e brilhante? Mais ainda, o que seria da Música Popular Brasileira sem as vozes marcantes de Clementina de Jesus, Alaíde Costa, Leci Brandão, Inezita Barroso, Dolores Duran, Dona Ivone Lara, Elza Soares, Flora Purim, Eliana Pittman, Diana Pequeno, Ademilde Fonseca, Sueli Costa e muitas outras cantoras pouco valorizadas pela chamada indústria cultural?

Isso mostra que não é de hoje que nossa mídia comercial desvaloriza a produção cultural nacional
em favor da produção estrangeira, essencialmente a norte-americana, com preconceito contra a produção de nossa cultura popular. Mesmo em se tratando da música brasileira, reconhecidamente uma das mais ricas do planeta. Assim, repito frase do jornalista Paulo Henrique Amorim sobre o povo brasileiro, sem aspas, pois estou reproduzindo de memória: não somos melhores nem piores, somos diferentes, ou seja, um povo único.

Para encerrar esta série iniciada no Vermelho sobre vozes femininas pouco valorizadas pela mídia, portanto, escolhi duas que não são tão marginalizadas, embora seus talentos ainda não sejam devidamente valorizados. Filha de Martinho da Vila, Mart’nália não apresenta influência paterna visível (audível…) em seu estilo e tem talento de sobra para sobreviver de sua arte, fora da sombra do pai.

A potiguar Roberta Sá para entrar no cenário musical participou de um reality show global em 2007. Ficou ficou estigmatizada pela mídia e hoje luta para mostrar que tem talento para firmar-se como uma das nossas grandes intérpretes. Roberta, que também compõe, consegue presença nesse mercado de difícil acesso para novatos.
 


Músicas

Roberta Sá


 
Roberta Sá quer ser vista apenas como cantora e compositora e sobreviver de seu talento. Em seu sexto CD, Segunda pele, aflora o vocal ímpar da cantora potiguar. Ouça a faixa título, de Carlos Rennó e Gustavo Ruiz.
 
Segunda Pele


 

À noite eu lhe convido:
"Querido, vem pra cá"
Um som no seu ouvido
Sussurra logo: "Vá!"
Por perto alguma gata
Já grita que nem fã
E logo o amor nos ata
Na noite, nossa irmã
Quando ele vem, faço dele
Minha luva, meu collant
A minha segunda pele
O meu cobertor de lã
São Paulo tá tão frio
Três graus, a sensação
Mas o seu arrepio
Não é de frio, não
Sou eu na sua pele
Que afago com afã
Pra que seu fogo pele
A sua anfitriã
Quando ele vem, faço dele
Minha luva, meu collant
A minha segunda pele
O meu cobertor de lã
Enquanto a noite passa
Aos braços da manhã
A gente ainda passa
Os dentes na maçã
O nosso amor é massa
Pra lá de Amsterdam
O resto é o resto, e passa
O resto é espuma, é spam
Quando ele vem, faço dele
Minha luva, meu collant
A minha segunda pele
O meu cobertor de lã
Quando ele vem, faço dele
Minha luva ou sutiã
A minha segunda pele
O meu cobertor de lã

 

Mart’nália


Mart'nália

 

Em seu nono disco, Mart’nália canta, compõe e mostra repertório afinado com tempo sem imediatismo. Atente para a música Reversos da Vida, de Martinho da Vila.
 
Reversos da Vida


 
Um homem chorando
Amores desfeitos
As flores murchando
Só mágoas no peito
Um povo sem brio
A mão que não cria
Um corpo no cio
E a cama vazia
Um jovem sabendo
De um mal já sem cura
Mil bocas dizendo
Blasfêmias, perjuras
Memórias perdidas
Nigéria sofrida
Um corte nos versos
Reversos da vida
 
*Colaborador do Vermelho