Ato relembra 20 anos do Massacre do Carandiru

Para relembrar o Massacre do Carandiru, que completa 20 anos amanhã (2), movimentos sociais e a Pastoral Carcerária vão fazer um ato na Praça da Sé, a partir das 15h, no centro da capital paulista.

O primeiro ato, ecumênico, terá início na Catedral da Sé. Cerca de uma hora depois, na Praça da Sé, acontece um ato político-cultural.

No dia 2 de outubro de 1992, policiais invadiram o presídio do Carandiru durante uma rebelião e mataram, com uso de metralhadoras, fuzis e pistolas, ao menos 111 presidiários. Até hoje, ninguém foi responsabilizado pelos crimes.

O único acusado pelos resultados da tragédia que foi julgado até agora, coronel Ubiratan Guimarães, o comandante da Polícia Militar à época, foi inocentado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo em fevereiro de 2006. O militar foi assassinado em setembro do mesmo ano, em crime do qual é acusada a então namorada.

“O ato não é apenas um resgate da memória dos 20 anos do Carandiru, uma situação clara de que não esquecemos e não esqueceremos jamais do que aconteceu, mas é também uma denúncia pública sobre todas essas políticas de massacre das populações periféricas, pretas e pobres, que ainda acontece nos dias de hoje”, disse Rodolfo Valente, advogado da Pastoral Carcerária em São Paulo e integrante da Rede 2 de Outubro.

A denúncia, segundo Valente, não é só do Massacre do Carandiru. “É também uma denúncia ao massacre dos Crimes de Maio, ao massacre dos Eldorados de Carajás”, disse.

Nos ataques de 2006, que ficaram conhecidos como Crimes de Maio e que ocorreram entre os dias 12 e 20 de maio, 493 pessoas foram mortas, entre elas, 43 agentes públicos. Um estudo feito pela organização não governamental (ONG) Justiça Global, divulgado no ano passado, apontou que, em 71 desses casos, houve fortes indícios do envolvimento de policiais que integram grupos de extermínio.

Já em Eldorado dos Carajás, no Pará, a ação da Polícia Militar causou a morte de 21 integrantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Dezenove sem-terra morreram no local e dois a caminho do hospital. As mortes ocorreram durante o confronto com a polícia no quilômetro 96 da Rodovia PA-150, na chamada Curva do S.

No sábado (6), os movimentos sociais também pretendem fazer uma caminhada cultural, marcada para ocorrer no Parque da Juventude, onde antes estava instalado o Complexo Penitenciário do Carandiru.

O massacre

O complexo penitenciário do Carandiru era formado por sete pavilhões, cada um deles com cinco andares. Na época, 7.257 presos – mais do que o dobro da capacidade comportada – viviam no Carandiru, 2.706 deles só no Pavilhão 9, onde estavam encarcerados os réus primários, aqueles que cumpriam sua primeira pena de prisão. Em 2002, teve início o processo de demolição do complexo penitenciário. Hoje o local abriga o Parque da Juventude.

“As pessoas se amotinaram, se aglomeraram, os agentes penitenciários ficaram em pânico, evadiram-se do pavilhão e começou aquela gritaria de que havia se iniciado uma rebelião”, contou à Agência Brasil o pastor evangélico Sidney Francisco Sales, 45 anos, ex-detento do Pavilhão 9 e que atualmente cuida de três abrigos.

“Passava das 3 da tarde quando a PM invadiu o Pavilhão 9. O ataque foi desfechado com precisão militar: rápido e letal. A violência da ação não deu chance para defesa”, narra o médico Drauzio Varela em seu livro Estação Carandiru.

Drauzio fazia um trabalho de prevenção à aids no complexo e conta ter escrito o livro baseado nos relatos dos presos. Cerca de meia hora depois da entrada da PM, “as metralhadoras silenciaram”, contou o médico.

Em 2000, um documento da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) da Organização dos Estados Americanos (OEA), após petição impetrada pelas organizações Americas Human Rights Watch, Centro pela Justiça e pelo Direito Internacional (Cejil) e Comissão Teotônio Vilela, considerou a ação policial no Carandiru “um massacre”.

No documento – o Relatório 34/00 – a CIDH relata os acontecimentos no Carandiru. “Ante o motim, os guardas (agentes penitenciários) optaram por retirar-se do estabelecimento, e o diretor da prisão pediu a ajuda da Polícia Militar”, diz a comissão.

“Segundo dados que os peticionários apresentaram e o Estado [brasileiro] não contestou, os juízes supervisores foram chamados pelo diretor da prisão tão logo se deu o alarme, às 14h15, ao mesmo tempo em que se convocaram as autoridades policias. Às 14h30, chegou o comandante Ubiratan Guimarães, chefe da Polícia Metropolitana de São Paulo, com três tropas de assalto, inclusive cães, pelotões de choque e o Batalhão Rota, especializado em combates de grande violência. O secretário de Segurança transferiu nesse momento a autoridade sobre a prisão para o comandante Guimarães”, continua o texto do relatório.

A CIDH relata ainda que o então governador de São Paulo, Luiz Antonio Fleury Filho, “encontrava-se nesse momento fora da cidade e aparentemente só foi informado da rebelião às 17h35”.

De acordo com o documento, dois juízes da Vara de Execuções Penais e o juiz da Corregedoria dos Presídios também estiveram no local, mas, quando lá chegaram, foram dissuadidos pela Polícia Militar de entrar no Pavilhão 9, já que os presos estariam armados. Por volta das 16h, os policiais ocuparam o pavilhão.

“O próprio governador Fleury declarou que, pelo fato de alguns detidos terem atacado a polícia, e especialmente depois que o comandante Guimarães foi ferido em consequência da explosão de um tubo de televisão, as forças encarregadas de sufocar o levante ficaram fora de controle”, relata o documento da Comissão Interamericana de Direitos Humanos.

"Às 17 horas, aproximadamente, os juízes foram informados de que o motim terminara”, diz o documento. Nenhum policial morreu na ação. Para a CIDH, as mortes dos detentos não decorreram de ações de legítima defesa nem para desarmá-los, “uma vez que as armas de que dispunham, de fabricação caseira, haviam sido dispostas no pátio ao entrarem os policiais”.

“Quando cheguei na borda do primeiro pavimento, vi uma cena dantesca, algo que nunca tinha visto na minha vida. Um monte de cadáveres empilhados, um por cima do outro, todos completamente destroçados, com buracos de balas aos montes. Comecei a contar os cadáveres. Pude contar 90 cadáveres. Contei errado naquele dia. Na realidade, tinham 89”, relatou à Agência Brasil Osvaldo Negrini Neto, que era perito do Instituto de Criminalística (IC) à época. Pouco depois, ele soube que outros cadáveres já haviam sido levados ao Instituto Médico Legal (IML) naquela mesma noite.

Apesar de saber que o número de mortos excedia 100 pessoas na manhã do dia 3 de outubro, a divulgação só ocorreu após o final das eleições municipais, quando as urnas estavam cerradas, já no final da tarde de domingo (4).

“Na trágica história de massacres de que a Comissão tem memória, raros são os casos de atos de selvageria e brutalidade comparáveis aos praticados naquela tarde em Carandiru”, escreveu a CIDH.

Com Agência Brasil