Uma homenagem a Eric Hobsbawm
Morreu nesta segunda-feira (1º) o historiador Eric Hobsbawn. Era uma figura das mais célebres do marxismo britânico, tendo produzido uma rica obra que ajudou na formação de dezenas de milhares de pessoas ao redor do mundo, dentro da visão marxista da história.
Por Mazé Leite
Publicado 05/10/2012 14:49

Sua história de vida é das mais ricas: era criança ainda em Viena quando Freud (o pai da psicanálise) já era famoso, estudou em Berlim nos últimos dias da República de Weimar, depois estudou em Londres e se tornou militante do Partido Comunista Britânico. Foi também crítico de Jazz, professor convidado em uma Universidade da Califórnia (EUA) justamente no período em que havido surgido o movimento hippie.
Hobsbawm era um marxista apaixonado. Em sua autobiografia Franco-atirador, ele descreveu a última manifestação do Partido Comunista alemão na legalidade, da qual ele participou, em Berlim, no dia 25 de janeiro de 1933: "Assim como o sexo, a única atividade que combina experiência corporal a uma emoção intensa elevada ao mais alto grau é a participação em uma manifestação de massas num momento de grande exaltação política". Ou seja, é essa sensação de se sentir um ser ativo, um agente da História.
Mas minha homenagem a este grande pensador da humanidade é a de traduzir aqui um pequeno trecho de seu artigo Sexe, symboles, vêtements et socialisme, justamente no ponto em que ele analisa a grande figura feminina presente no centro do quadro de Eugène Delacroix, A Liberdade guiando o povo.

A Liberdade guiando o povo, de Delacroix (detalhe)
Diz Hobsbawm:
Muito se explorou sobre este tema. Mas de qualquer maneira, a forma na qual os contemporâneos dele interpretaram este quadro não deixa dúvida: para eles, esta Liberdade não tinha nada de uma figura alegórica, mas se tratava de uma mulher bem real (provavelmente inspirada na heroína Marie Deschamps, cujas façanhas deram a Delacroix a ideia da pintura), uma mulher do povo, pertencente ao povo, orgulhosa de pertencer ao povo:
com voz rouca, encantadoramente dura
Quem…
Ágil e marchando com passos largos
Gosta do grito do povo…
(Barbier, "A curadora")
que não cede seu largo flanco
a não ser às pessoas fortes como ela
Com uma echarpe de três cores"
para ajudar seu povo a vencer os Três Gloriosos.
A novidade da Liberdade de Delacroix é, portanto, esta identificação da imagem da mulher nua com uma verdadeira mulher do povo, emancipada, e que joga um papel ativo, como uma dirigente do movimento dos homens. De quando data precisamente essa nova imagem revolucionária? Esta é uma questão que compete aos historiadores da arte responder. Para nós, observamos duas coisas. Primeiro, por sua natureza concreta ela rompe com o papel de simples alegoria que era ordinariamente atribuída às figuras femininas; agora ela conserva a nudez, nudez que o pintor não procura jamais dissimular e que os críticos perceberam. Esta mulher não está lá para inspirar nem para representar: ela AGE.

Ora, Byron que lhe descreve em Childe Harold, exprimindo toda a sua admiração pelos combatentes espanhóis, insiste no fato de que a Fille de Saragosse não está postada fora dos limites disso que os homens, do alto de sua superioridade, avaliam ser um comportamento convencional para uma mulher: "Portanto as moças da Espanha não são uma raça de Amazonas, mas mulheres experientes em todos os encantos do amor". E ele busca uma explicação para esse heroísmo pouco feminino: ela está sendo simplesmente leal a seu marido morto. Seus atos manifestam a "ferocidade de uma pomba".
Estamos, então, bem longe da Liberdade.
É a revolução de 1830 que constitui – parece – o ponto culminante dessa imagem da Liberdade como uma moça jovem ativa, emancipada e aceita como dirigente pelos homens, ressaltando-se que o tema ainda era popular em 1848, provavelmente por causa da influência de Delacroix sobre os outros pintores. Ela surge, assim, sempre nua em seu boné frígio, inclusive na Liberdade sobre as barricadas de Millet (Jean-François), apesar de que o contexto já tinha se modificado. Mesma coisa nos esboços de Daumier, L'émeute (O motim). Por outro lado, as raras representações da Comuna e da Liberdade que datam de 1871 são em geral mostradas nuas (como o desenho de Rops) ou os desenhos descobertos (depois).
O papel notoriamente ativo cumprido pelas mulheres durante a Comuna de Paris, inspirou artistas de outros países que usaram como símbolo para ilustrar essa revolução os traços de uma mulher não-alegórica (ou seja, nua) e manifestadamente militante. A tendência a representar o conceito revolucionário de liberdade ou de república através de uma mulher nua ou, mais frequentemente, com os seios descobertos, continuou a existir. Desta forma, a famosa estátua da República, do communard (membro da Comuna) Dalou, na Place de la Nation (em Paris), apresenta o seio nu. Deveria haver uma pesquisa mais vigorosa para verificar se a exposição dos dois seios (ou de um só) se associava sempre à revolta ou, em sua falta, à polêmica, como pode ser o caso de um desenho feito na época do "Caso Dreyfus" (janeiro de 1898) onde vemos uma Marianne jovem e virginal, com um seio nu, protegida de um monstro por uma matrona Justiça com armas na mão, com esta legenda: "A Justiça: Não tenha medo da besta. Eu estou aqui!"
Mas, por outro lado, Marianne, a República institucionalizada, aparece, doravante, normalmente vestida, mesmo que ligeiramente, apesar de suas origens revolucionárias. É de novo o reino da decência. E pode ser também o da mentira, na medida em que a nudez caracteriza em princípio a figura alegórica e feminina da Verdade – sempre frequente, notadamente nas caricaturas que foram feitas sobre o "Caso Dreyfus".

Tais imagens são particularmente significativas na medida em que, de um lado, elas têm um lugar evidente em todo o então jovem movimento socialista que elabora sua própria iconografia e, por outro, (…) se inspira na imagerie revolucionária francesa, onde a Liberdade de Delacroix procede igualmente".