Novos movimentos têm projetos de poder de Estado, diz Ana Prestes
Milhares ocuparam a Praça Roosevelt no domingo (21), centro de S. Paulo, numa mobilização que há muito não se via na cidade, a partir da internet. Os ativistas, que batizaram o encontro de Festival Existe Amor em SP, não querem ser confundidos com hippies e nem estar ligados aos partidos políticos. Para a cientista política Ana Maria Prestes, apesar do apartidarismo, os novos movimentos desmontam as teses de que a juventude não se mobilizava mais em torno de projetos de poder de Estado.
Publicado 22/10/2012 17:17
Ana Maria é autora da tese de mestrado em Ciência Política “A participação política em tempos de globalização: O Fórum Social Mundial inaugura o movimento social global” e do doutorado "Três Estrelas do Sul Global: O Fórum Social Mundial em Nairóbi, Mumbai e Belém". Ela defende que a concepção bastante defendida nos encontros promovidos, por exemplo, pelo Fórum Social Mundial, de que havia superação da disputa pelo poder do Estado, foi por terra. Um exemplo disso é a atual configuração na América do Sul com governos mais progressistas.
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“A dinâmica que tomou a América do Sul, o dialogo com os movimentos sociais e questionadores de uma linha neoliberal que tentou se impor no continente há alguns anos, ficou demonstrado que a disputa pelo poder do Estado é mais atual do que nunca. E esses movimentos tiveram que se mobilizar para isso. E acho que ficou demonstrado na dinâmica muito forte na América do Sul, como no Uruguai, na Argentina, Bolívia, Venezuela e Brasil”, exemplifica a cientista política.
Ela enfatiza que essa nova configuração desbanca as afirmações de que a juventude não se mobilizava mais em torno de projetos de poder do estado. O que, na prática, desmonta o argumento do apartidarismo.
“Todo esse debate [apartidarismo, horizontalismo] foi por terra, porque ficou demonstrado na realidade que sem a disputa pelo poder do Estado as demandas sociais não avançam, acabam ficando restritas aos debates, aos encontros, às cúpulas, aos encontros dos fóruns, então é como se a América do Sul estivesse ao mesmo tempo estruturado a base e a força de um movimento global, como os fóruns sociais mundiais e as cúpulas sociais, e ao mesmo tempo negado sua principal tese, a da superação da luta pelo poder no Estado. Que ficou demonstrado pela vida que está mais presente do que nunca”, afirma Ana Maria Prestes, que completa: “Essa é a grande contradição desses movimentos, que acabou colocando em xeque muitas verdades dos fóruns de negação da política tradicional”.
O atual movimento que surge em São Paulo se assemelha aos movimentos globais surgidos em Seattle, nos Estados Unidos, há cerca de 20 anos, de acordo com Ana Maria: “Isso não é de agora. Começa em meados da década de 1990, desde as grandes manifestações em Seattle, Gênova, na Itália, e ele tem uma filosofia do horizontalismo, do antipartidarismo, da organização em rede, e tem um cunho ideológico forte contra o que eles chamam da velha esquerda, da esquerda leninista, comunista, calcada em um certo tipo de organização social, sindical, das células partidárias”.
Ela diz que a realização do Fórum Social Mundial foi importante para conseguiu congregar esses novos movimentos com os movimentos tradicionais do sul, que ela classifica do “Sul Global”, um influenciando o outro, tendo como pano de fundo a própria dinâmica da América do Sul, dos partidos de esquerda que também pautaram, politizaram e transformaram esses movimentos mais recentes.
Os indignados brasileiros
Ato Existe Amor em SP, no domingo (21), na Praça Roosevelt, em S. Paulo/foto: Fora do Eixo
De acordo com os ativistas paulistanos, a mobilização nasceu de forma natural, sem planejamento, e ainda não é possível haver uma definição já que “tudo” ainda está acontecendo agora, neste momento de indignação com a passividade e acomodação do paulistano diante de uma situação que se mostrou “urgente”.
“Nasceu dessa passividade civil da nossa geração, de uma situação política urgente em São Paulo, que era a eleição do Celso Russomanno [que se configurava nas pesquisas de intenção de voto durante o primeiro turno da eleição]. A ideia do movimento é mantê-lo horizontal e construí-lo de maneira natural e espontânea”, declara o jornalista Bruno Torturra, que integra a mobilização.
Bruno afirma estar "curioso" sobre que tipo de diálogo o movimento terá com a esquerda constituída e que o apartidarismo continuará sendo a tônica das mobilizações. Ele lembra que, enquanto que no primeiro evento, realizado no dia 5 de outubro, dois dias antes do primeiro turno da eleição municipal, foi algo dirigido contra um candidato e tudo o que ele representava, para o segundo turno chegou-se à conclusão de que não deveria ocorrer da mesma forma.
“Decidimos, em reuniões abertas, não eleger um candidato e nem um partido desta vez. Optamos nem por apoio, nem por crítica. A ideia então foi não apontar para candidato tucano, José Serra, para não ganhar um caráter partidário”, explicou o jornalista Bruno Torturra, um dos organizadores do ato, que lembrou que a tendência seria algo mais pró-Fernando Haddad (PT) e contra José Serra (PSDB), já que as ideias do movimento paulistano se assemelham aos ideais de partidos mais progressistas.
“Muitos acham que é uma campanha do PT disfarçada, mas é muito pelo contrário. Temos uma posição clara que se você for olhar, no manifesto do ato e tudo o que falamos, tem mais relação com bandeiras de esquerda, de partidos mais progressistas, interessados em defender direitos civis e sociais”, acrescenta o ativista, que esteve no acampamento do Occupy Wall Street, em Nova York, nos Estados Unidos, e vem acompanhando as mobilizações europeias, como os Indignados na Espanha.
Ele lembra que o grande ganho dessa mobilização é o consenso. "O consenso é algo que vale mais do que a divergência interna. Temos que nos preocupar mais do que com o que temos em comum do que com o que discordamos. E isso acaba não atraindo os jovens da esquerda tradicional", comemora Bruno Torturra, que admite que também há tendência de fragmentação nos movimentos atuais.
"Eu estou mais curioso do que confiante em uma resposta, que tipo de diálogo teremos com a esquerda constituída."
O global e o local
Com relação à tendência de se manter as mobilizações mais em evidência global, Ana Maria Prestes observa que depois do momento de efervescência, da reunião nesses moldes das mobilizações de internet, há um arrefecimento dessas dinâmicas que acabam se transformando localmente, a partir das questões locais, como no mundo árabe; os Indignados na Espanha, na Grécia, o Occupy nos Estados Unidos, de uma forma mais nacionalizada por conta das crises econômicas em cada país. São como se fossem ondas de mobilizações.
"Há picos globais e depois se recolhem. Isso eu discuto na tese da seguinte forma: por mais globais que sejam suas mobilizações, os cidadãos são nacionais, são locais, e dialogam com sua dinâmicas locais, esse é um limite desse tipo de movimento, de conceituação de sociedade civil global”, argumenta Ana Maria.
Em São Paulo, para não deixar o movimento morrer, os ativistas planejam a criação de um observatório civil, independente, permanente das políticas públicas no município. Segundo os ativistas “apartidários”, os partidos não contemplariam uma série de temas e bandeiras e expectativas. Assuntos como aborto, legalização das drogas, entre outros, se tornaram tabu.
“Dentro de uma campanha de um partido não pode, por exemplo, falar claramente sobre o extermínio da juventude negra que está acontecendo na cidade de São Paulo, a militarização das subprefeituras, sobre aborto, legalização das drogas. E vem do desejo que é, seja Haddad, seja Serra, independente de quem assumir, vamos criar um observatório civil do município, que independe do poder institucional. A gente quer poder cobrar, dialogar, ocupar a rua mas mais do que isso, queremos poder discutir política de uma forma independente e livre e utilizar tanto a praça quanto a rede”, adiantou Torturra.
Com relação às críticas feitas pelo novo movimento, Ana Maria Prestes pontua que há sim uma crise da esquerda tradicional, da sua capacidade de mobilização, de congregar. Mas, ela ressalta que a mesma está atenta a essas novas ondas.
“Ela [esquerda tradicional] está se transformando também. E um movimento não prescinde do outro. Houve um aprendizado mútuo. Acho importante deixar isso claro, que nas mobilizações, por exemplo, do Dia do Orgulho Gay, das Mulheres, você percebe que há mais diálogo entre os diferentes tipos de movimentos. Há mais abertura. Eu creio que já houve maior hostilidade desse tipo de movimento aos partidos tradicionais, a militância tradicional, partidária, seja sindical, seja partidária. Eu vejo de uma forma otimista o apoio mútuo, a reunião de esforços em torno de alguns debates polêmicos na sociedade”, ressalta a cientista política, lembrando que este é o melhor momento nos últimos 20 anos entre os movimentos tradicionais e os contemporâneos.
Novas tecnologias
A mobilização na internet surge como uma válvula de escape dentro das grandes cidades, que estão soterradas de informação da vida contemporânea. “A forma com que a sociedade se organizou oprime e dificulta o encontro. Então a válvula de escape disso são as redes sociais, onde têm oportunidade de falar, opinar e leva aos encontros presenciais. Por isso as estruturas tradicionais precisam ficar atentas a isso”, alerta.
Outro ponto exaltado por ela é que nesse tipo de ambiente “não há como impor certas posições e acho isso muito interessante”. “Quem tentar cercear ou impor certas verdades vai acabar encontrando grande dificuldade para interagir”, conclui.
Deborah Moreira,
Da Redação do Vermelho