A voz de Milton Nascimento como parceira das canções?

O objetivo deste artigo é tecer considerações sobre a voz de Milton Nascimento, na clave de reflexão da crítica cultural contemporânea, discussão que importa enquanto estratégia interdisciplinar de pensar manifestações orais como a canção, na cultura brasileira.

Por Fabrícia do Valle Arcanjo (1)

Milton Nascimento

1. A voz de Milton Nascimento como “teia de renda”

O que importa mais profundamente à voz é que a palavra da qual ela é veículo se enuncie como uma lembrança; que esta palavra, enquanto traz um certo sentido, na materialidade das palavras e das frases, evoque (talvez muito confusamente) no inconsciente daquele que a escuta um contato inicial, que se produziu na aurora de toda vida, cuja marca se apagou em nós, mas que, assim reanimada, constitui a figura de uma promessa para além não sei de que fissura. (Zumthor, 2005, p.64)

Não é novidade que Milton Nascimento seja considerado uma unanimidade. Discursos divulgadores e legitimadores de seu canto não faltam nos meios midiáticos, desde sua primeira aparição, no festival da TV Excelsior do ano de 1965. No entanto, entender sua trajetória artística a partir desse lugar, em certa medida, mitificado no cenário musical brasileiro significa, de antemão, movimentarmo-nos por algumas canções em sua voz, tentando identificar quais mecanismos sócio-culturais levaram-no, através da voz, a ocupar essa posição especial, que o fez ser referendado por tantos nomes no Brasil e do mundo, como Elis Regina, por exemplo. Para ela, se Deus tivesse voz, seria a de Milton. Talvez coubesse ao próprio artista perguntar-se que voz ou que Deus seria ele, como forma de colocar-se criticamente diante de sua produção musical. Entretanto, interessa a nós, como pesquisa em processo, saber que voz de Deus seria essa, buscando relacioná-la a três dimensões: a própria voz, ao movimento (Clube da Esquina) e a marca Milton Nascimento. No presente artigo, ficamos com apontamentos possíveis à própria voz.

Pensar a voz de Milton compreende ir além das acepções fisiológicas e neurológicas da mesma e vislumbrá-la como capacidade de aglutinação de várias outras vozes – “verdade a se entrelaçar (…) / Numa saudade, sem tempo e fim” (Nascimento & Tunai, 1982, disco Ânima). Nesse sentido, ela tende a funcionar como lugar de mediação das possibilidades de contato estético estabelecidas pelo horizonte musical que as canções que ele interpreta trazem consigo. Referimo-nos ao horizonte musical, em aproximação ao horizonte de expectativa pensado por Jauss, uma vez que, as relações que se dão nas canções apontam para o universo interpretativo de si mesmas, de Milton, dos seus conhecimentos de mundo e do de seus ouvintes. Dessa forma, trafegamos pela escuta de alguns de seus fonogramas, buscando identificar ideias de voz, haja visto que, Milton Nascimento, na maioria das vezes, é intérprete das canções feitas, sobretudo, em parceria com Márcio Borges, Fernando Brant e Ronaldo Bastos. Isso se torna significativo, em seu caso, para pensarmos a possibilidade da autoria ser estabelecida como parceria, de maneira diferenciada, roubada, apropriada e falsa, através da textura do falsete e aberturas de vozes de Milton. Constituindo-se, assim, o próprio lugar de mediação e afunilamento de sentidos, na especialidade de cada uma de suas interpretações ou próprio corpo das canções as quais empresta a voz, atravessada por diversas outras vozes.

Na canção “Aconteceu” (Milton Nascimento), disco Barulho de Trem (1964) a voz é a “a beleza de contar”. No disco Milton Nascimento de 1967 “nosso canto que é de paz” em “Irmão de fé” (Milton Nascimento e Márcio Borges), “a voz nas estradas” em “Travessia” (Milton Nascimento e Fernando Brant), “viver cantando o dia tão quente que faz” em “Canção do Sal” (Milton Nascimento), “uma voz cantando o amor” em “Maria, minha fé” (Milton Nascimento), “um novo canto” em “Outubro” (Milton Nascimento e Fernando Brant). No disco Courage (1969), “corpo sem lugar” em “Vera Cruz” (Milton Nascimento e Márcio Borges), canções que explodem da garganta em “Rio Vermelho” (Milton Nascimento, Danilo Caymmi). Em Milton Nascimento (1969), “voz que o tempo não levará” em “Sentinela” (Milton Nascimento e Fernando Brant). Em Milton (1970), o “lixo” e o “lado ocidental do “mundo” e de “Minas Geraes” em “Para Lennon e McCartney” (Lô Borges, Márcio Borges e Fernando Brant), “negra voz de velha só” em “Maria três filhos” (Milton Nascimento e Fernando Brant), a voz que partiu do fundo da noite em “Clube da Esquina” (Milton Nascimento, Lô Borges, Márcio Borges), “toada cantada em sua intenção” em “Canto Latino” (Milton Nascimento e Ruy Guerra) e “vozes e cidades se escutando” em “O homem da sucursal” (Milton Nascimento e Fernando Brant).

Em Clube da Esquina (1972) é “a dor de encontrar”, o inventar de “um sonhador” em “Cais” (Milton Nascimento e Ronaldo Bastos), “é só poesia” em “Um girassol da cor do seu cabelo” (Lô Borges, Márcio Borges) e é “de tudo” do que “se faz canção” em “Clube da Esquina II” (Milton Nascimento, Lô Borges e Márcio Borges). Em Milagre dos Peixes (1973) é “um a mais a falar dessa dor/a nossa dor” na canção de nome homônimo ao disco, feita por Milton Nascimento e Fernando Brant. Na versão ao vivo desse disco de nome homônimo, do ano de 1974, é a pergunta “sabe o que é um trovador?” em “Sabe você” (Carlos Lyra e Vinícius de Moraes) e “o resto de uma feira”, “mudar de tom” em “Viola, violar” (Milton Nascimento e Márcio Borges). Em Minas (1975) faz-se “faca amolada” em “Fé cega faca amolada” de (Milton Nascimento e Ronaldo Bastos) e “qualquer maneira que eu cante esse canto/ qualquer maneira me vale cantar/ qualquer maneira de amor vale o canto” em “Paula e Bebeto” (Milton Nascimento e Caetano Veloso). Em Native Dancer (1975) é transcultural (2) junto de Wayne Shorter. Em Milton (1976) uma voz bilíngüe, “o canto, o berro de fera” “a voz de qualquer primavera” em “Raça” (Milton Nascimento e Fernando Brant). Em Geraes (1976), é “o que já foi” em “Promessas do Sol” (Milton Nascimento e Fernando Brant), “jogos de criar sorte e azar”, “todas as canções inutilmente” e “eternamente” na canção “Minas Geraes” (Novelli e Ronaldo Bastos). Em Clube da Esquina II “novas palavras” e o tornar “outras mais belas” na “Canção Amiga” (Milton Nascimento e Carlos Drummond de Andrade). Em Jorney to Day (1979), outro modo bilíngue. Em Sentinela (1980) “ideias de canto”, “o contrário da solidão” onde “cantar é preciso” na canção “Bicho homem” (Milton Nascimento e Fernando Brant). Em Caçador de mim (1981), “as palavras que devia usar” em “Amor amigo” (Milton Nascimento e Fernando Brant), a canção como prisão em “Caçador de mim” (Sérgio Magrão e Luiz Carlos Sá), a sinceridade do “canto mais belo” em “Notícias do Brasil (os pássaros trazem)” (Milton Nascimento e Fernando Brant), “o caminho que vai dar no sol” em “Bailes da Vida” (Milton Nascimento e Fernando Brant) e “profusão de coisas acontecidas” em “Bela bela” (Milton Nascimento e Ferreira Gullar). E no disco Anima (1982), é “Teia de Renda” (Túlio Mourão e Milton Nascimento), “certas canções que ouço/ cabem tão dentro de mim/ que perguntar carece/como não fui eu que fiz?” em “Certas canções” (Tunai e Milton Nascimento), “a voz de todos nós” em “Essa voz” (Milton Nascimento e Fernando Brant) e em “Ânima” (José Renato e Milton Nascimento) metavoz do projeto fonográfico do artista de “atravessar fronteiras”.

Desse mapeamento sonoro do canto-voz em Milton, a voz busca o caminho que irá dar no sol, empenhada em atravessar fronteiras e procurar verdades a se entrelaçar como “Teia de Renda” (Túlio Mourão e Milton Nascimento), cabendo-nos questionar que caminho e sol seriam esses a se cruzar com as parcerias musicais que se dão desde a elaboração e gravação dos discos aos encontros com os hermanos musicais em busca da voz de todos nós (“Essa voz” – Milton Nascimento e Fernando Brant). A voz de Nascimento catalisa várias outras vozes, ao passo que as cristaliza lapidando sua procura toda, além de tudo “Ânima” (José Renato e Milton Nascimento). Essa canção sugere o desenrolar de uma trajetória musical, de forma a manifestar a fundamentação das escolhas vocais do intérprete, que da travessia musical ao atravessamento de fronteiras com a voz, ressalta o querer da canção como em “Rouxinol” do disco Nascimento (1997), onde não há como excluir a existência, referida em seus grifos sobre a etimologia da palavra ânima. A existência de si que, como voz, só tende a ser possível pelo fato dela ir ao encontro de outras vozes que acreditam na canção por “valores de uma cultura” (Zumthor, 1995, p.61). Mas “E daí? (A queda)”, referimo-nos à canção de Milton Nascimento e Ruy Guerra, presente no disco Clube da Esquina II (1978). E daí que, pensar a voz em Milton Nascimento, incide no fato de movimentarmo-nos para percebê-la como uma estratégia “quimeras”, tal como aparece a palavra no corpo da letra da canção “E daí? (A queda)”. Nesse sentido, mais relacionada ao canto como lugar de coexistência de muitas vozes que constituiriam a si mesmo e, a si mesmo enquanto gesto de uma poética da voz que se dá nas relações que busca estabelecer com o mundo. Desde o revisitar da tradição da canção brasileira como ir a “Suíte do Pescador” (Dorival Caymmi) para compor com Márcio Borges “Hoje é dia de El-Rei” no disco Milagre dos Peixes 1973. Ao contato com outros legados artísticos que irrompem como forças suplementares ao intérprete, como a prosa e o cinema. Dessa maneira, estabelece tanto com a voz como com sua discografia, procedimentos modais e polifônicos do cantar que angaria diversas vozes para o modo de corpo que acaba sendo a voz de Milton Nascimento como possibilidade única de cantar as canções que por ele são interpretadas.


1.1. “A feminina voz do cantor”

Minha mãe quem falou / Minha voz vem da mulher – (Nascimento, 2002, disco Pietá)

A voz se define biologicamente a partir dos gêneros, masculino e feminino. Geralmente, os tons graves tendem a ser masculinos e os tons agudos femininos. No entanto, em se tratando do próprio corpo da canção, ela soa como comunicação que se dá na tensão interpretação/recepção e não somente por distinções de timbre. A voz de Milton deveria ser somente grave do ponto de vista biológico, entretanto, reconhecê-la significa situá-la além dessas questões. Dessa maneira, evidencia-se sua dimensão feminina enquanto modo de posicionamento sensível do canto que tem e é alma (3). Perceber a posição vocal feminina e aguda de Milton, interessa-nos na medida em que traz outro momento à canção brasileira, desde sua aparição na década de 60, sobretudo, a partir de 1967, II Festival Internacional da Canção. Em um momento de atravessamento da Bossa Nova pela evidência da Tropicália, ele colocara-se em cena nem com banquinho e violão à meia voz, nem contracultural como “movimento bem moderno”, mas

… rapaz negro, esbelto, olhos profundos, com violão na perna, tímido, sério, dono de uma voz incrível (…) Sem dar piruetas no palco tocando tranquilamente seu violão, Bituca se tornou naquela hora Milton Nascimento em definitivo, o grande nome do festival (…) O novo cantor possuía voz única, poderosa, e cantava bem, muito bem, de uma maneira diferente. Um intérprete como aquele era, por si só, uma revelação. (Dolores, 2009, p.130)
 

Em meio a tantas qualidades, o fato de revelar-se como novidade desejada pelo mercado fonográfico (4). Tornar-se Milton Nascimento em definitivo pelo fato de possuir voz única, poderosa, cantar muito bem e de maneira diferente seria um acontecimento isolado de toda uma propaganda feita em torno de sua imagem pelos meios de comunicação de massa no dia seguinte ao resultado do II FIC, o qual trouxe “Travessia”, dele e Fernando Brant, como ganhadora do segundo lugar e, ele como sendo o melhor intérprete? Milton trazia uma qualidade musical diferenciadora, tanto do ponto de vista das concepções harmônicas apropriadas das escutas, sobretudo, de Tom Jobim e Dorival Caymmi, como da exploração da melodia até regiões agudíssimas, suas superposições em aberturas, alturas, coros e modalizações similares ao canto gregoriano (5) e ao trompete de Miles Davis. O gosto que se irrompera pelo seu diferente modo de cantar a partir de 1967 resultaria, não somente de forças intrínsecas à canção em sua voz, mas da tensão entre sua forma de apropriação das mesmas e o contexto cultural da época. Milton trazia à cena musical a capacidade de síntese entre a épica vontade de cantar a mudança por meio de acordes e melodias e o lírico canto mavioso. Do interior de Minas Gerais colocava-se no mundo através do seu percurso musical acompanhando e remodelando-se a partir da transição de um país em tempos ditatoriais à abertura democrática dos anos 80.

Diniz (6) considera “a dramaticidade, a corporeidade e a força midiática” como sendo elementos constituintes essenciais à voz, sobretudo, feminina, em nosso cancioneiro popular. Compreendemos a dramaticidade, a corporeidade e a força midiática como sendo a própria voz em Milton Nascimento. Onde “pensar a canção através da corporificação que a voz outorga ao conjunto enunciação/enunciado, ao escriturante como letra e ao musicante como som” significa compreendê-la como o próprio lugar de mediação e autoria que se dá na especialidade de cada uma de suas interpretações ou próprio corpo da canção. No caso Milton, abrange um conjunto de coisas como a pessoa inteira que se exprime enquanto modo de existência

O ser especial é nesse sentido, o ser comum ou genérico, e isso como a imagem ou rosto da humanidade. A espécie não subdivide o gênero, mas o expõe. Nela, desejando e sendo desejado, o ser se faz espécie, se torna visível. E ser especial não significa o indivíduo, identificado por essa ou aquela qualidade que lhe pertence de modo exclusivo. Significa, pelo contrário, ser qualquer um, a saber um ser tal que é indiferente e genericamente cada uma de suas qualidades, que adere a elas sem deixar que nenhuma delas o identifique. (Agamben, 2007, p.53)

A voz de Milton Nascimento configura uma paisagem sonora diferente e, ao mesmo tempo, na superfície exata de cada palavra na melodia principal, revela a obscena (ambiente sonoro que compõe a canção junto à voz) musical altamente complexa de cada canção – uma cascata polifônica de desdobramentos e superposições melódicas na harmonia sonante na dissonância, enquanto possibilidade inovadora de oitava em oitava – uma espécie de canto de “dó de peito” à moda feminina que funde vozes.

O disco Pietá (2002), além de funcionar como dispositivo de revelação de várias novas vozes de cantoras, tende a confirmar essa dimensão feminina da voz de Milton. Através da canção “A feminina voz do cantor”, em parceria com Fernando Brant, em tom profético pela textura inicial dos acordes do teclado, relata no enunciado da canção, conforme informação dada pela mãe do campo discursivo, que a maneira de colocar sua voz vem da mulher, das vozes que “ele traz no interior”, das que ele ouviu quando “era aprendiz” das canções que “sua alma sente no ar”. Essa voz se juntou ao seu povo fazendo das ruas de seu país um altar polifônico ao final da canção, com uma cascata melódica superposta de harmonia, grave melodia do contrabaixo, percussão, seus efeitos e inesperadas aberturas das vozes. A dimensão feminina do canto de Nascimento arrastara consigo, portanto, muitas mulheres no campo do discurso musical: “Lílian-Lírio”; “Ângela-Anjo”; Clementina de Jesus; Elis Regina; Dalva de Oliveira; Mercedez Sosa; Alcione; Zélia Duncan; Marina Machado; Nana Caymmi, Maria Rita; Violeta Parra; Simone Guimarães; Alaíde Costa; Nina Simone; Speranza Spalding, dentre outras.

Entendemos o feminino na voz de Nascimento como um meio de dialogar com a mulher dentro da tradição musical, partindo de um jeito específico de trabalhar sua extensão vocal em alturas e regiões vocais, que, de tão altas, só seriam possíveis aos timbres mais agudos e, portanto, biologicamente femininos. Dessa maneira, instaura sua voz como corpo atravessado pela textura de várias dessas vozes femininas que em alguns momentos confundem-se entre falsetes e sua voz plena estendida.

1.1.1. O falseamento da autoria em Milton Nascimento

O corpo humano permite uma variedade infinita de movimentos, que brotam de impulsos interiores e exteriorizam-se pelo gesto, compondo uma relação íntima com o ritmo, o espaço, o desenho das emoções, dos sentimentos e das intenções. (Vianna: 2005: 105).

O homem é uno em sua expressão: não é o espírito que se inquieta nem o corpo que se contrai – é a pessoa inteira que se exprime (Vianna:2005: 150)

Anima que vem do latim e significa: sopro, aragem, brisa, vento, ar, exalação, cheiro, aroma, hálito, bafo, respiração; o que anima, dá vida, alento, vida, existência. Significa alma. Ente, indivíduo, pessoa, alma dos mortos, habitantes, moradores, coração, afeto, vontade (…) é Alma. Vida. (Nascimento: 1982).

Partimos da definição musical de falsete (7) para discutirmos em que medida a autoria (as especificidades da voz como parceria) em Nascimento se dá por um viés maquiado pelas marcas que sua forma de cantar imprime em uma determinada canção. Afinal, do mesmo modo que o falsete é um pastiche, uma espécie de simulacro da altura e extensão da voz natural que se quer no canto, a noção de autoria em Milton só seria possível enquanto algo imaginado desse modo. Nesse sentido, traria para a discussão o lugar da interpretação e da cena musical como possibilidade de assinatura que proporciona o apagamento da pluralidade de vozes outras nas canções em sua voz.

Em meio à compreensão da relação colaborativa e de dependência entre letra e música mediada pelo desejo de valor mercadológico e artístico das canções (8), o empréstimo da voz de Milton a uma canção estaria imerso e faria parte de uma série de outras significações e estratégias musicais. Em que medida estratégias ditas singulares de seu canto como a superposição de melodias, contrapontos, a coexistência de falsetes, a voz plena estendida, sua aparição contida, sua negritude banto e seu diferenciado violão, por exemplo, não teriam projetado o artista como o próximo modelo e ídolo a se sentar no trono, segundo Miguel Jost Ramos, “destinado ao consumo intelectual e político de uma parcela da sociedade que tinha formado seus critérios estéticos a partir das rupturas propostas pela Bossa Nova e pelo Tropicalismo”?

Havia uma expectativa de caráter programático em relação aos artistas e que gerava constantemente uma postura inquiridora no público e na imprensa, formando esse contexto em que o trono da música brasileira se tornava um lugar de verdadeiro desconforto para o cantor ou compositor popular. (Ramos, 2008, p.284)
 

E no caso Milton não fora diferente. “Comecei a conversar com o Gonzaguinha já faz muito tempo. E eu dizia que sempre, e ainda digo, se for realmente assim, eu tiro meu time de campo, vou não sei pra onde, mas vou” (9). Esse ir não sei pra onde parece não parece ter elevado Milton encontrar-se perdido, como nos versos da canção “Clube da Esquina”, e ter fragilizado a costura da teia musical proposta com seu canto – de entre o lírico e o épico (re)significar o cancioneiro popular e outras linguagens artístico-musicais atrelando-se à canção como meio de transformação social. Muito embora seja recorrente em sua discografia o vocábulo luta e ele remeta a um certo tom de “desleixo” estético por nos lançar às canções de protesto, percebemos em Milton a coexistência sensível de uma voz politizada que se faz mediadora das canções. Essa sensibilidade mediada por ele no momento da interpretação que, somada ao ritmo próprio de cada canção perpassa pelo seu ritmo pessoal e é trazida ao ouvinte que também a (re)significa conforme as relações que é capaz de estabelecer com ela esvazia-se de potência em detrimento dos adornos vocais, aglutinando ao engajamento político o ser sensível da canção como possibilidade última de síntese, conforme sugere Caetano Veloso

…o que só Minas pode trazer: os frutos de um paciente amadurecimento de impulsos culturais do povo brasileiro, o esboço (ainda que bem-acabado) de uma síntese possível (…) Em Minas o caldo engrossa, o tempero entranha, o sentimento se verticaliza (…) E Milton Nascimento foi – é – o polo catalisador, o próprio lugar de inspiração do movimento. (Ferraz, 2005, p.90)
 

Dessa maneira, parece possível afirmar que várias forças, das mais diversas ordens culturais, vieram construindo uma relação de impenetrabilidade e incompreensão do projeto de canção mediado por sua voz, instaurado como algo quase que da ordem mítica. Um projeto “quimeras” (“E dái” Clube da Esquina II – 1978 – Milton Nascimento e Ruy Guerra) que de modo sensível busca estabelecer através do canto “outros outubros” (“O que foi feito deverá”, Clube da Esquina II – 1978 – Milton Nascimento e Fernando Brant) para o “Gran Circo” (Milton Nascimento e Márcio Borges) chamado Brasil, através do gesto canto-voz.

Chamamos de gesto aos encontros possibilitados em cada canção na voz de Milton. Algo anterior à voz que funciona como a espacialidade do gesto e as canções que canta como estados de gesto – o bailar das singularidades intrínsecas a si e ao seu pulso de intérprete, em conformação com o contexto sócio-histórico-cultural: “ impulsos interiores que exteriorizam-se (…) compondo uma relação íntima com o ritmo, o espaço, o desenho das emoções, dos sentimentos e das intenções”, como afirmara Vianna.

A canção “La bamba” do disco Miltons (1988) exemplifica essa constatação. Ela surge instrumental e a voz é um dos instrumentos que alegra sua tessitura seis por oito modulando “sons desprovidos de existência linguística: “tralalá‟, ou alguns puros vocalizes” (Zumthor, 2005,P.64). Essa canção na voz de Maria Rita, em seu primeiro disco, remete a outra paisagem sonora. Se na voz de Milton tem cheiro selvagem e de um “tribalismo” do mundo, com ela a passa a se chamar “A festa” e a introdução com o contrabaixo e o ritmo entre ternário e o quaternário sugere mais uma valsa bem acabada dos salões imperiais do que um canto ritual.

O gesto de Milton acontece relacionado a diversas instâncias de seu cancioneiro. Uma delas diz respeito ao modo como o intérprete coloca-se através de sua voz em relação à tradição musical que o antecedera e o outro à forma como seu cantar estabelece conexões com outras linguagens artísticas e musicais (a prosa, o cinema, o jazz…), para além das fronteiras brasileiras. Milton Nascimento leitor do cancioneiro anterior a ele, voz atravessada pela melancólica e nostálgica euforia de novos tempos. Em contato com outras linguagens estéticas e musicais, uma produção de sentidos múltiplos transculturais em cada fonograma, onde o gesto Milton Nascimento é o ponto de convergência das instâncias de produção de sentido que desembocam na cena musical: suportes midiáticos (LP; CD; EP; MP3, MP4…), internet, TV, rádio, outros veículos de comunicação e a própria música em si.

Reconhecemos essas duas possibilidades de trânsito do gesto Milton Nascimento – o revisitar da tradição da canção brasileira e contatos com outros legados artísticos – como forças suplementares ao intérprete que estabelece, tanto através da voz como de sua discografia, outros procedimentos vocais ao canto. O tom de banzo que há em revisitar o cancioneiro brasileiro espalha lírica textura nas canções. Ao passo que, pontos de contato com linguagens artísticas e músicas de outros lugares a dimensão estética do que é cantado por ele, embora não consiga – “reinventar a voz viva na comunicação da mensagem poética” (Zumthor, 2005, p.68).

A voz de Bituca (10) funciona como corpo que “permite uma variedade infinita de movimentos, que brotam de impulsos interiores e exteriorizam-se pelo gesto, compondo uma relação íntima com o ritmo, o espaço, o desenho das emoções, dos sentimentos e das intenções” (Vianna, 2005, p.105). Ao ser encarada como dramaticidade, corporeidade e força midiática na dimensão da cena musical, encarrega-se da tarefa de reinventar uma determinada canção na interpretação – o lugar do “gesto do autor” que, no seu caso, tende a esvaziar “a vida da obra unicamente através da presença irredutível de uma borda inexpressiva” (Agamben, 2007, p.61).

Quanto à presença, não somente a voz, mas o corpo inteiro está lá, na performance, de forma fundamental. Aliás, a voz exerce no grupo uma função; e esta não é estritamente interpessoal, como pode ser na conversação. O desejo profundo da voz viva que está na origem da poesia, se direciona para a coletividade dos que preenchem o espaço onde ressoa a voz. (Zumthor, 2005, p.80)
 

É na não condição de borda inexpressiva da voz de Milton que talvez possa se configurar a coletividade presente nas canções apropriadas no ato da interpretação, onde a voz é corpo e gesto dos que preenchem o espaço onde ressoam e cristalizam-se. Quando situamos a voz de Milton como autora parceira das canções, empenhamo-nos em afirmar que essa ideia deve ser pensada na cena musical, na interpretação e não ser reduzida à sua imagem de intérprete, mas no que ela, em tensão com a voz, traz consigo de especial e impotente. Especialidades essas que acabam contribuindo para o seu próprio apagamento enquanto traço e gesto de parceria.

A constatação de que sua voz carrega extensões femininas que a singularizam como voz de outras vozes – “ente, indivíduo, pessoa, alma dos mortos, habitantes, moradores, coração, afeto, vontade (…) Alma. Vida” (Milton, no disco Ânima,1982), impossibilita-nos de senti-la de forma dinâmica e ampliada. A voz jamais prescinde de critérios morais como Deus, como afirmara Elis Regina sobre Milton, colocando o artista no lugar de ato de fé indiscutível, para se fazer valer enquanto gosto. Não somente critérios legitimadores devem ser considerados para pensarmos a produção de Bituca e, sim, o constante exercício de questionamento deles. Esse entendimento arremessa-nos para a necessidade de depararmo-nos com o fato de que essa movimentação entre sua singularidade endeusada e o seu arrastar de vozes para o esquecimento deve ser compreendido como estratégias de fixação da sua discografia ao longo do tempo e através da oralidade da palavra entoada.

2. Apontamentos finais: “marca profunda de muito amor”

A palavra cantada/não é a palavra falada/ nem a palavra escrita/a altura a intensidade a duração a posição/da palavra no espaço musical/a voz e o mood mudam tudo/a palavra-canto/é outra coisa. (Campos, 1974, p.309)

 

Os traços singulares da voz em Milton Nascimento são as marcas pessoais, características que sua voz empresta às canções. Assinar (11) a canção de modo diferenciado, em seu caso, está para além do simples fato dela ser entoada por ele. A voz de Milton funciona como mediadora da assinatura que passa a ter como corpo a própria linguagem musical. Nesse sentido, desloca a ideia de composição como sendo restrita apenas ao universo das letras das canções e da música, enquanto resultado de interdependência entre melodia e harmonia, e nos leva a estabelecê-la como resultado da interseção entre composição, voz e seu ato interpretativo, no qual a dimensão da voz em cena assume posição fundamental para que possamos percebê-la enquanto corpo parceiro das canções interpretadas por Milton.

Estabelecer que a voz do intérprete Milton Nascimento é o gesto de autoria de uma determinada canção, deve relacionar-se ao fato de concebê-la como criadora de outra possibilidade de linguagem musical a partir de si mesma – intérprete-criativa. Onde “os movimentos surgem das emoções particulares de cada um e transformam-se em arte quando encontram uma linguagem  universal”  (Vianna, 2005, p.80). Entretanto, o intérprete Bituca “empresta os próprios lábios a uma voz que não lhe pertence” (Agamben, 2007, p.19). Nesse sentido, não assume um lugar privilegiado, mas aproveita-se de uma diferenciação especial para instaurar sua voz como corpo criador das canções. Essa singularidade de seu trabalho relaciona escolhas sonoras com intenções sentimentais que se expressam. A sua voz materializa seus impulsos internos e externos constituindo-se corpo e o gesto que passa a ser seu lugar autocentrado de identificação – ofuscando a própria canção – a voz em Milton como espaço de apagamento e falseamento do espaço difuso de diálogo do qual se constitui enquanto prática estética híbrida e produção de sentidos em diferença.

Referências

Agamben,Giorgio. Profanações. SP. Ed. Boi Tempo.2007.

Diniz,Júlio. Sentimental demais: a voz como rasura. Do samba-canção à Tropicália, org.P. S. Duarte e S. C. Naves. Rio de Janeiro: Relume-Dumará.

Dolores, Maria. Travessia: a vida de Milton Nascimento. RJ/SP.Ed. Record, 2009.

Foucault, Michel. O que é um autor? Disponível em: www.4shared.com.br. 15 de abril de 2011.

Ramos, Miguel Jost. “Chico e Caetano juntos e ao vivo na década de 70” IN.: Leituras sobre Música Popular: reflexões sobre sonoridades e cultura. Org. Emerson Guimbelli; Júlio César Valladão Diniz; Santuza Cambraia Naves. RJ. Editora 7 Letras. 2008,pp.284 – 300.

Perrone, Charles A. Letras e Letras da MPB.RJ. Ed.Book Link.2008.

Tatit, Luiz. A canção no século XX.SP. Ateliê Editorial.2004.

Veloso, Caetano. O mundo não é chato. Org. Eucanaã Ferraz.SP. Ed. Companhia das Letras.2005.

Vianna, Klauss. A dança. Ed. Summus.SP.2005.

Zumthor, Paul. Escritura e Nomadismo – entrevistas e ensaios. Trad. Jerusa Pires Ferreira & Sônia Queiroz. SP. Ateliê Editorial. 2005.

DISCOGRAFIA:

1964 – Barulho de Trem – Dex Discos do Brasil
1967 – Milton Nascimento – Codil
1969 – Courage – CTI
1969 – Milton Nascimento – Odeon
1970 – Milton – Odeon
1972 – Clube da Esquina – EMI/Odeon
1973 – Milagre dos Peixes – EMI/Odeon
1974 – Milagre dos Peixes ao vivo – EMI/Odeon
1975 – Minas – EMI/Odeon
1975 – Native Dancer – Wayne Shorter Featuring Milton Nascimento – EMI cedido pela CBS
1976 – Milton – EMI/Odeon
1976 – Geraes – EMI/Odeon
1978 – Clube da Esquina II – EMI/Odeon
1979 – Journey to Dawn – EMI/Odeon
1980 – Sentinela – Ariola
1981 – Caçador de Mim – Ariola
1982 – Änïmä – Ariola
1988 – Miltons – CBS
2002 – Pietá – Warner

Notas
1) Graduada em Letras, especialista e mestranda em Estudos Literários pela Universidade Federal de Juiz de Fora, instituição na qual pesquisa a interface literatura/canção, orientada pelo professor Alexandre Graça Faria, com fomento da FAPEMIG. [email protected]

2) Ver livro O Atlântico Negro.

3) Abrimos um parêntese para pensar, como ponto de tensão, também em animus, que segundo o Dicionário latino-português de Francisco Torrinha é “o princípio pensante (em oposição a corpus e a anima). Coração (como sede da coragem, das paixões ou inclinações; vontade; inclinação; desejo; paixão. Pensamento; intenção; disposição; sentimento. Razão; bom senso; atenção; memória. Caráter; condição.”

4) Ver Travessia: a vida de Milton Nascimento de Maria Dolores, editora Record 2009.

5) Segundo Carpeaux em O livro de Ouro da história da música – da Idade Média ao século XX, “as qualidades características do coral gregoriano são a inesgotável riqueza melódica, o ritmo puramente prosódico, subordinado ao texto, dispensando a separação dos compassos pelo risco, e a rigorosa homofonia (…), a contradição de acompanhar fielmente o texto litúrgico (…) e a presença de tão rica matéria melódica (…) que levaria à divisão de vozes (…): primeiras tentativas de música polifônica”.

6) Ver Sentimental demais: a voz como rasura de Júlio César Valladão Diniz.

7) Voz com a que procura se imitar a voz do soprano. Em termos musicais a voz humana mais aguda e, portanto, feminina.

8) Ver A canção no século XX de Luiz Tati.

9) Idem.

10) Apelido dado a Milton Nascimento.

11) Ver texto “Quem assina o cinema falado” de Roberto Corrêa dos Santos em Tais Superfícies – estética e semiologia. Editora Otti Editor. 1998.
Fonte: Darantina – revista eletrônica, UFJF, in www.ufjf.br/darandina/