Correia da Fonseca: O Direito e a cor

Na recente preve Geral, o presidente de Portugal, Cavaco Silva, e o primeiro-ministro Passos Coelho fizeram questão de dizer que “trabalharam”, e que prezam muito o “direito ao trabalho”. Não deixa de ter uma amarga graça isto de o senhor primeiro-ministro ter vindo lembrar o direito ao trabalho, ele, cuja ação governativa – a que Cavaco dá toda a cobertura – tem resultado na recusa a milhares de portugueses do mesmíssimo direito ao trabalho.

Por Correia da Fonseca

1 Foi a greve geral, a grande manifestação convocada pela Confederação Geral dos Trabalhadores Portugueses (CGTP), o apedrejamento da polícia em frente da Assembleia da República e a carga policial que se lhe seguiu. E foram também as declarações do senhor presidente da República e do senhor primeiro-ministro. De tudo isto e é claro de muito mais fizeram as operadoras de TV a cobertura que lhes cabia fazer, e foi graças a elas que os cidadãos em geral souberam que ambos, presidente da República e primeiro-ministro, não haviam aderido à greve e tinham trabalhado. A informação não foi surpreendente, nem de um nem de outro era esperável que aderissem a uma iniciativa da maior central sindical portuguesa. Já o tipo de trabalho que o senhor presidente revelou ter sido o que naquele dia lhe coube executar pode ter suscitado algum desgosto, embora não nele: o trabalho, por ele próprio definido como tal, foi encontrar-se com o presidente da Colômbia, de passagem por Lisboa supõe-se que rumo a Cadiz. Acontece que o presidente da Colômbia, cujo nome não recordo e não me aplico a lembrar, não se conta entre os mais simpáticos presidentes do mundo, tendo a fama de ser uma marionete dos Estados Unidos e pouco mais. Mas não é de crer que o senhor presidente tenha tido qualquer relutância em recebê-lo e apertar-lhe a mão: o senhor presidente decerto encara corajosamente todas as agruras do seu cargo, e esta nem sequer terá sido a seus olhos uma das mais desagradáveis. Quanto ao senhor primeiro-ministro, já não faço a menor ideia do trabalho que lhe coube executar no dia da greve geral, mas compreendo que, qualquer que ele fosse, seria naquele dia urgente e inadiável. Sobretudo porque ele desejaria decerto, dar o exemplo.

2 E aqui, nisto do exemplo, é que a porca começa a torcer o rabo, com perdão do plebeísmo. É que o senhor PR e o senhor PM não se limitaram a ir trabalhar e complementaram o seu trabalho com a prestação de declarações à comunicação social, isto é, ao país. Nelas referiram não apenas que “a greve é um direito constitucional”, o que, aliás, por cá há muito tempo se vai sabendo, mas também que a par deste direito existe o direito ao trabalho para quem opte por trabalhar mesmo em dia de greve geral, o que por sinal era o caso de um e de outro, de resto não se esperando outra coisa. Não deixa de ter uma amarga graça isto de o senhor primeiro-ministro ter vindo lembrar o direito ao trabalho, ele, cuja ação governativa tem resultado na recusa a milhares de portugueses do mesmíssimo direito ao trabalho, mas passemos. Passemos para nos fixarmos num outro fragmento da intervenção do senhor primeiro-ministro: a referência à “coragem” dos que optaram por trabalhar. Sem que aparentemente se lembrasse dos que haviam ido trabalhar porque os seus salários baixos já não poderiam suportar o desconto de um dia de trabalho ou porque tinham como praticamente certo de que seriam despedidos na primeira altura se aderissem à greve.

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Parece legítimo presumir que, ao falar de “coragem”, o senhor primeiro-ministro se referia aos que, tendo condições objetivas para fazerem greve sem grave dano, haviam optado por ir trabalhar. Uma das figuras que foram entrevistadas na TV no próprio dia da greve, em verdade já não recordo ao certo qual, lembrou que noutros tempos isto de ir trabalhar quando os camaradas de trabalho faziam greve “tinha um nome feio”. Não disse qual, mas por acaso eu lembro-o: os que furavam a greve eram os “amarelos”, e em rigor não deixaram de o ser com o advento da democracia. Não me passa pela cabeça, já se vê, chamar “amarelos” ao senhor presidente ou ao senhor primeiro-ministro, não só porque já muito bem se sabia que eles não são “vermelhos”, sequer “cor-de-rosa pálido”, mas sobretudo porque de qualquer modo as suas altas funções não implicam relações de trabalho susceptíveis de abrangerem situações de greve. Subsiste, contudo, um outro aspecto não demasiado agradável: o encômio público e generalizado aos fura-greves, aos “amarelos”, desacompanhado dos motivos que muitas vezes explicam e eventualmente impõem a opção pela ida ao trabalho em dia de greve, tem qualquer coisa de imoral, de estímulo à quebra de solidariedades, porventura à traição, e não é civicamente bonito ouvi-lo na boca de um primeiro-ministro. Sabe-se que o amarelo é por vezes uma cor com má reputação, e a “coragem” sumariamente referida pelo senhor primeiro-ministro pode de fato enfeitar os atos mais feios. Sem que, contudo, os torne lindos.

O Diário.info