Especulação imobiliária incendeia Paraisópolis

Nesta quarta-feira (5), a comunidade de Paraisópolis enfrentou seu segundo incêndio em uma semana. Nossa equipe de vídeo debelou a ressaca e se mandou pra lá. A última vez que fizemos isso foi em julho, na Humaitá, e tinham acontecido 24 incêndios em favelas na cidade de São Paulo. Esse foi o 39º do ano, que destruiu oito barracos e não deixou nenhum ferido.

Este mapa ajudar a visualizar espacialmente o que anda acontecendo nos últimos oito anos, e esta outra matéria talvez te dê uma luz sobre por que isso acontece com tanta frequência. Conversamos com algumas pessoas que estavam lá, e aqui estão dois depoimentos.

Você estava aqui na hora que pegou fogo?
Wagner Lima Santos (foto acima): Estava no meu outro barraco, tô fazendo um. Vi pessoas gritando que tinha fogo. Vim ajudar e, quando cheguei, era um barraco do meu primo. Não tinha mais como a gente fazer nada, então pelo menos água a gente tentou jogar várias vezes. Mas os caras da própria obra da Prefeitura cortaram a água, pra não chegar água aqui. Pra poder pegar fogo mesmo no restante que tinha. De pouquinho em pouquinho, de balde em balde, a gente tentou. Conseguimos apagar pelo menos metade. E os bombeiros chegaram e deu tempo de jogar água e apagar os outros pra não acontecer coisas piores. Até uma pessoa poderia morrido por aí, ó, num barraco desses, crianças. A gente não tem segurança nenhuma aqui. E eles não veem isso.

Peraí, você falou que o cara da Prefeitura cortou a água?
Os caras da obra, porque eles têm a chave.

Conta de novo essa história.
Fiquei sabendo que eles cortaram a água, porque a gente estava sem água hoje. Eles cortaram a água lá pra não vir água pra cá. A sorte é que a gente tinha de outra região que passava aqui, que a gente cortou. Ele cortou com facão, pra poder pegar com balde d'água, porque ele não chegava nem lá embaixo.

E por que você acha que eles fizeram isso?
Porque eles têm raiva que a gente mora aqui, ó, é humilde, é, tem pessoas que fazem coisa errada, tem. Por que eles não vieram ajudar a gente? Ninguém, nem pisaram o pé aqui. E muitos deles têm barraco aqui.

Muitos deles quem?
Desses caras da obra. Não precisa de casa, tem pessoas que precisam, mas esses caras da obra não tão nem aí não. Eles fazem barraco por aí.

E teu primo perdeu tudo?
Perdeu tudo.

Deu pra salvar alguma coisa?
Nada. O único que deu foi o da vizinha de lá, que deu pra salvar o tanquinho de lavar dela. Fora que roubaram televisão aí nas casas, botijão. Pra você ver a merda que a gente vive. A própria população não se ajuda. Como é que vai pra frente? Não tem como.

Cê acha que foi um acidente ou teve algum motivo?
Olha, não posso acusar, não tenho certeza. Espero que tenha sido um acidente, a gente não vai ganhar apartamento agora. Tá queimando o barraco pra quê? A gente precisa dormir, acordar, comer, criar nossos filhos, a nossa família e eles botam fogo. Mas são pessoas que são usuários, que deixam uma vela acesa, uma bituca de cigarro, tem que ter consciência que, numa casa dessas, você não pode usar, são de alvenaria. Cê tem que tomar mó cuidado. Não pode deixar fios desencapados de jeito nenhum que dá um curto, queima. Mata uma família inteira, se deixar.

O que você estava fazendo lá fora?
Eu estava anotando o nome do pessoal, pra essas pessoas ganharem cesta básica. Essas pessoas que perderam tudo, praticamente, ganhar uma cesta básica é o mínimo do mínimo que a nossa Prefeitura de São Paulo tem que fazer. Colchão. Se não querem dar casa, pelo menos dá o que comer pra gente. Que a gente perde tudo por causa deles, a gente não tá aqui porque a gente quer.

Vamos voltar um pouquinho então. A Prefeitura dá cesta básica.
É lógico. Porque uma cesta básica, isso pelo menos eles têm que dar. Tem comida que tá apodrecendo lá, arroz, saco de feijão. Acha que todo mundo é bandido só porque a gente vive numa, vamos dizer… Numa comunidade de Paraisópolis? A gente não é bandido, a gente é trabalhador. Eles condenam a gente por ter tatuagem, porque a gente fuma, as pessoas fumam maconha, usam o crack, não importa, eles são trabalhadores, eles conseguem desse jeito viver. Cada um de nós aqui conseguiu um barraco assim. Conquistado com suor, não roubando nada de ninguém não. A gente tá aqui pra batalhar.

E seu primo agora vai pra onde?
Ele não tem pra onde ir. Agora tem, vamos dizer que tem, porque o meu barraco eu tô fazendo ainda, mas se eu terminar ele vai ficar comigo lá. Deixar na rua não posso deixar, se eu pudesse eu até levava todo mundo, mas não tem como. Cada um ajuda um ao outro. Mas tem pessoas que não estão nem aí.

E teu primo tá sabendo o que tá acontecendo?
Ele já veio aqui. Ele trabalha na Globo. Ele é manobrista lá e não sabia o que estava acontecendo. Aí eu liguei pra ele, e ele veio. Fiquei sabendo pelos vizinhos que ele não saiu muito bem daqui e foi no canteiro da obra. Mas não é lá que a gente vai resolver isso, é na Defesa Civil, pra onde eles mandaram a gente, mas levaram pessoas que até não têm nada a ver com a história.

Como assim?
Tem pessoas que não necessitavam de ajuda que foram dentro do carro e pessoas precisando que estão aqui ainda. O ser humano não consegue viver com outro ser humano, um se aproveita da situação do outro. Foram lá, ganhar cesta básica sendo que não precisa. Só gosta de ficar olhando, realmente. Ajudar a apagar o fogo, ninguém ajuda. Agora ficar ali olhando, “olha, tô na televisão”. E daí? Cê tem que viver a realidade, não é o que passa na televisão.

O que aconteceu no cano?
Antonia Janaina Gomes de Lima (foto acima): Na hora que começou o fogo, a moça avisou. Eu vim subindo naquele desespero, peguei um balde de água e saí subindo. Fui quebrar o cano, pedi a faca da moça. Na hora, não saiu água de jeito nenhum. Aí foi que todo mundo entrou em desespero mesmo porque o fogo já tava aqui e ia terminar de queimar isso aqui tudo. Na hora foi uma agonia, a gente não sabia o que fazer. Todo mundo com balde d’água, quebrando os canos, quebrando tudo. Porque, né, foi tufo de fumaça que você não via mais nada.

Normalmente tem água nesses canos?
Geralmente tem água direto, mas nessa hora não tinha água nos canos, não tinha água em nada. Na hora eu peguei a faca pra quebrar o cano mesmo. Aí os meninos pegaram as outras facas e quebraram os canos pra poder jogar água por cima. Porque deu desespero. Fiquei tremendo, sem saber o que fazer. Porque você vê todo mundo gritando, perdendo suas coisas, os barracos se acabando.

Onde você mora aqui?
Eu tô de favor no barraquinho de parente. Na situação que eu tô, a menina salvou só algumas coisas minhas. Até minha bolsa, eu tava desesperada porque eu tô com registro, tô com os meus documentos. A única coisa que eu ainda tenho são os meus documentos. E aí, né? Roupa, calçado? Tô com pé no chão. Tô na situação que tô. Ainda não almocei. [Chorando] Não é fácil também. Você perder tudo que você tem. Todo mundo no desespero, como eu, vi uma senhora que chegou aqui com duas crianças, chorando que tinha perdido tudo também. Na hora você fica olhando sem saber o que fazer. A nossa sorte foi que os meninos ali de cima desceram também, depois vieram os bombeiros. E eu, sem saber o que fazer. É uma situação triste. Só mesmo quem passa por isso sabe o que tá realmente passando. Porque quem tá lá fora, quem tá assistindo a gente acha que “ah, isso aí é tudo bandido”. A gente tá aqui porque a gente necessita mesmo, não tem pra onde ir. A gente vai morar debaixo da ponte? Se morar debaixo da ponte dizem que a gente é o quê? Mendigo, ladrão, prostituta, bandido, né? A gente é família, tem filhos. Às vezes tem gente que sai de baixo da ponte pra vir pra cá, faz um barraquinho. Os vizinhos ajudam. Se você não tem, um vizinho vem, ajuda, dá um prato de comida, ajuda numa cesta. Todo mundo trabalha também. Aí acontece isso.

Sinto muito. E agora que os bombeiros foram embora, o que vai acontecer com as pessoas que perderam a casa?
Não sei. Tô na casa de parente, não é meu. Pode ver na Prefeitura que eu não tenho cadastro, não tenho nada. A única coisa que eu tenho são meus documentos e minhas roupinhas e acabou. Mais nada. Depois que tirar isso aqui, só Deus sabe pra onde é que eu vou. Taí, tem gente que perdeu tudo o que tinha. Tudo. Como uma senhora que tava com as duas filhas dizendo que perdeu os documentos, registros. Acabou com tudo. Tem muita gente que tá lá fora que acha que a gente tá… Que isso aí é só truque. Mas não é truque não, gente, pelo amor de Deus. Tá aqui a realidade. Só quem tá morando aqui vê a situação de cada um.

Qual você acha que foi a causa do incêndio?
Não tenho a mínima ideia, pra te falar a verdade. Porque foi uma coisa de repente. Quando vi, foi aquele tufo de fumaça preta que você não via mais nada. Aí foi onde entrou o desespero. Ainda hoje eu tô tremendo. Meus pés estão cortados, de subir e descer isso aqui. Já levei uma queda ali em cima da escada. Só Deus mesmo. Deus e as pessoas lá fora que estão vendo, que possam fazer alguma coisa pela gente também. O governo, alguém. Que a gente tá aqui é pedindo socorro, pelo amor de Deus. Olhem pela gente também. No tempo da política, tá todo mundo aqui, pedindo voto, fazendo e acontecendo. Na hora do desespero, cadê? Não aparece ninguém. Aí você corre pra um lado, corre pra outro e acaba ficando em casa de parente ou de amigos. Mesmo. Sendo humilhado e tudo.

Fonte: Entrevistas e imagens por Edward Davies e Michael Szmulewicz para o site Vice.