Ceravolo: Na TV, a produção cotidiana da ideologia das armas 

Em 2008, escrevi o texto abaixo sobre um canal de TV, o History Channel. De alguma forma, acho que ele ajuda a explicar a dificuldade que Barack Obama e os democratas enfrentam na defesa de maior controle de armas nos Estados Unidos.

Por Haroldo Ceravolo*

O History Channel não era (e não é) um canal de história. Ainda que, de lá para cá, tenha relativamente se “desmilitarizado”, continua a passar programas semelhantes. E não está sozinho. No momento em que recupero esse texto, o Discovery Turbo passa um programa sobre armas automáticas, enaltecendo especialistas em “aprimorar” armas de fogo antigas, ou seja, torná-las mais eficientes e, portanto, mais letais nos dias de hoje.

Em tempo: o texto foi publicado originalmente no UOL Tabloide (em 29/4/2008), o que significa que ele tem um tom cômico, característico do espaço.

Maravilhas Modernas: o canhão. Achou incompatível a proximidade das palavras “maravilhas” e “canhão”? Eu talvez tivesse ficado espantado na madrugada desde 18 de janeiro se não tivesse antes assistido no canal da TV paga The History Channel ao programa Maravilhas Modernas: instrumentos de tortura.

Para ser mesmo honesto com você, leitor, nem este programa me abalou de fato. A sinceridade extrema do canal já me fazia chamar o The History Channel – THC quando usa a versão reduzida de seu nome – de “o canal de George W. Bush”. Mais apropriado, talvez, fosse dizer que o THC foi aparelhado pela indústria de armamentos, leves e pesados, dos Estados Unidos. Ele é sua voz, ele é seu porta-voz, ele é seu adido de imprensa, ele é seu representante legal, seu procurador, seu advogado na batalha televisiva.

O History Channel, na verdade, tem muito pouco de história. Se não é possível pensar uma história totalmente livre da ideologia, o History Channel consegue como que inverter a fórmula. E, dia após dia, exibe ideologia com quase nada de história. Chama-a de história, contudo, porque um programa ideológico que se preza sabe escolher bem seu nome.

A “história” que o THC conta está cheia de aviões de guerra, porta-aviões, corvetas, canhões, combates terrestres e aéreos, conflitos medievais. O canal não trata apenas disso, mas quase toda sua linguagem é contaminada pelo linguajar militar. Até a história do Universo, que começa necessariamente antes do surgimento do homem, é narrada, na chamada, como uma guerra: primeiro, uma explosão; depois, uma colisão. Quando vai ao velho oeste, o faz para saudar a revolução que salvou os americanos da violência dos índios: a espingarda Winchester. Como não sobraram muitos índios para contar a história do lado de quem tomou os tiros da Winchester…

Reviva os Combates Aéreos, nos convida o canal. O telespectador não deve apenas aprender como eles foram, é convidado a participar dos eventos, a tomar parte de confrontos mortíferos. Simulações de computador reconstroem manobras radicais de aeronaves de guerras. Lembrando um velho slogan publicitário, o THC poderia, sem medo, dizer: “Vem pra nossa guerra você também, vem!” E os combates aéreos do History Channel não opõem nazistas e “aliados”, vietnamitas e americanos: opõem pilotos – os americanos sobreviventes são em geral os grandes narradores, e o programa exalta não os valores que eles defendiam, mas suas habilidades técnicas. É como se a guerra não passasse de um esporte de luta qualquer, como o boxe, o jiu-jítsu, o taekwondo (é assim que se escreve?). E o campeão mundial nunca perde – no mínimo, ganha experiência.

Agora, uma outra chamada, para a série de programas A Origem das Coisas. O que representa a nossa civilização? Entre as imagens, uma aparece mais de uma vez, um helicóptero militar. Uma obsessão que nem 500 Michaels Moores conseguiriam, com argumentos reais ou fabricados (tanto faz) rechaçar, combater, enfrentar, contra-atacar, esmagar – verbos que os generais conseguem conjugar tão bem, mas que para os intelectuais não deveriam passar de metáforas.

Mas voltemos a Maravilhas Modernas: instrumentos de tortura. Aparentemente crítico, como se fosse possível ostentando este nome simpático, o programa defende a ideia de que a tortura é algo generalizado no antigo Terceiro Mundo, na forma de espancamentos, sodomização com garrafas de Coca-Cola, choques etc. Aos poucos, vai “naturalizando”, pelo realismo das descrições, a natureza da tortura de Abu Ghraib, Guantánamo e afins, abusos que se tornaram sinônimo de política externa norte-americana depois da invasão do Afeganistão e do Iraque.

O History Channel é, portanto, um canal republicano?

Não é tão simples. Alguns meses atrás, o canal exibiu um telefilme narrando a vida de Adolf Hitler, feito em 2003. Nitidamente, o roteirista não entendia muito bem o que significava aquele homem que tentou retratar, nem se preocupou muito com a perseguição aos judeus na Alemanha. Mas sua intenção era clara: apontar como Hitler conseguiu, pouco a pouco, usando o discurso do antiterrorismo, aprovar leis que violavam os direitos individuais dos alemães – destruindo um regime democrático.
Um filme democrata (no sentido norte-americano), portanto, tentando, por meio de Hitler, combater George W. Bush, pode muito bem fazer parte da grade de programação do THC.

Não é fácil escrever um texto coerente sobre o THC. Apesar da obsessão militar, como há muito fato pequeno e pouca interpretação, a história do THC acaba construindo um discurso incoerente, repleto de informações.

Para concluir, porque já estou ficando nervoso, queria dizer que assistir ao THC tem um efeito entorpecente: e, se você não acreditar, o canal tem um programinha especialmente feito para chacoalhar a sua cabecinha. Vai encarar?

*Haroldo Ceravolo Sereza é jornalista e colunista da Revista Samuel.

Fonte: Revista Samuel