O Som ao Redor e os grilhões que o mercado impõe ao cinema

Nos últimos dias, um fato vem chamando a atenção da cena cultural brasileira: o sucesso do filme pernambucano O Som ao Redor. Com orçamento de R$ 1,8 milhão, o primeiro longa-metragem do diretor Kleber Mendonça Filho foi gravado em 2010 e estreou recentemente em apenas 13 salas de cinema do país – em muitas delas, precisa dividir espaço com outras atrações.

Por Samir Oliveira, em Sul21

No final de semana de estreia, já conquistou uma média de público superior a de muitas megaproduções nacionais e estrangeiras, atingindo a marca de 840 espectadores por sala. A cifra ultrapassa o mais recente blockbuster nacional, a comédia De Pernas para o Ar 2, que está presente em 718 salas e possui uma média de 718 espectadores por local.

A imensa repercussão do filme o tem feito galgar mais espaço, com novas salas recebendo a produção no país. Em Porto Alegre, estreou na sexta-feira (18), no Espaço Itaú, no shopping Bourbon Country, e na Sala Paulo Amorim, na Casa de Cultura Mário Quintana.

O Som ao Redor é o primeiro longa de Kleber Mendonça Filho | Foto: O Som Ao Redor/Divulgação
Mas foi um intenso caminho até se chegar a conquistar acesso junto ao grande público nacional – algo que ainda está sendo feito. De janeiro de 2012 a janeiro de 2013, O Som ao Redor passou por 40 festivais internacionais e sete nacionais. Logo no início, a primeira estreia em uma competição já se mostrou vitoriosa, com a conquista do prêmio de melhor filme pela Federação Internacional de Críticos, no Festival Internacional de Rotterdam, na Holanda, em janeiro de 2012. A partir daí, foram dezenas de prêmios, até que, no dia 14 de dezembro, o New York Times incluiu O Som ao Redor entre os dez melhores filmes do ano. Foi a única produção brasileira a figurar na lista do crítico de cinema A. O. Scott, que escreve para o jornal.

No mesmo dia em que saiu a lista do New York Times, o cineasta André Sturm publicou um artigo na Folha de São Paulo cobrando maior democratização das salas de cinema do Brasil. “No dia 15 de novembro, estreou a última parte da saga Crepúsculo no país. O filme entrou em 1.213 salas ao mesmo tempo. Afinal, tantas pessoas querem ver o filme? Essa quantidade de salas é algo realmente necessário? O Brasil tem cerca de 2.200 salas. Ou seja, um único filme ocupa cerca de 60% dos cinemas do país!”, criticou.

No texto, o ex-diretor do Cine Belas Artes defendeu mecanismos de regulação do Estado para que se desmantele o monopólio na exibição dos filmes. “Quem quer ir ao cinema é quase empurrado para ver um desses títulos. Não é o caso de pedir a ação dos órgãos que deveriam garantir a concorrência, que deveriam evitar o monopólio, a concentração?”, questionou.

“Mercado impõe papel aos filmes”, critica Kleber Mendonça

Para o diretor de O Som ao Redor, Kleber Mendonça Filho, o longa está conquistando espaços, mas ainda está dentro de um “cercadinho cultural limitado pelo mercado”. O cineasta entende que o mercado cinematográfico brasileiro impõe papéis às produções, escolhendo quais seriam adequadas ao grande público.

“Tem essa coisa do papel que é designado a um filme como O Som ao Redor, como se fosse somente um filme para ser exibido em festivais. O mercado estabelece que o gênero da comédia estúpida, que vem principalmente do Rio de Janeiro, será lançado com muito dinheiro, com o apoio da Globo Filmes e necessariamente irá bem. E um filme como O Som ao Redor não teria espaço, por ser autoral. Precisamos entender qual a régua que usamos para medir o sucesso de um filme no Brasil. Há uma discussão ainda muito subdesenvolvida em relação à forma como o mercado impõe papeis aos filmes”, provoca.

Feito inteiramente com verbas públicas, através de editais de incentivo à cultura federais e locais, O Som ao Redor contou com um investimento de apenas R$ 190 mil para seu lançamento – os gastos incluem cópias, distribuições e cartazes. Kleber Mendonça Filho diz que não acredita em “publicidade artificial” para os filmes. “Não acredito e não levo a sério a publicidade comprada a peso de ouro para gerar valor artificial em um filme. O Som ao Redor teve uma publicidade que o dinheiro não compra”, compara, referindo-se à divulgação boca a boca feita de forma espontânea pelo público e ao reconhecimento em festivais e na mídia estrangeira.

O diretor critica o modo como a Globo Filmes opera no Brasil. Braço das Organizações Globo voltado ao cinema, a empresa promove os filmes que apoia ou produz através do merchandising em programas de televisão da emissora, vetando a divulgação de títulos com os quais não possui parceria. “Isso é nefasto e injusto. O monopólio é muito claro e quem não faz parte dele não tem o mesmo tipo de exposição. Há inúmeros mecanismos de se promover um filme pela Globo Filmes. O principal deles é personagens de uma novela da emissora comentarem quão bom é o filme que acabaram de assistir, por exemplo”, explica.

Kleber Mendonça Filho conta que a assessoria de imprensa de O Som ao Redor chegou a propor à produção do Programa do Jô, da Rede Globo, uma entrevista sobre o longa. “Suspeito que (o filme) é algo que faz parte dos temas que ele aborda em seu programa. Mas a entrevista foi negada. Se fosse um filme da Globo Filmes, será que eu não estaria no Programa do Jô?”, questiona.

O diretor defende a adoção de políticas públicas que assegurem espaço e incentivo ao cinema nacional independente. “Existem várias experiências que vêm dando certo em outros países. Na Argentina, cópias de filmes estrangeiros são taxadas e o dinheiro arrecadado com esse imposto vai para a produção do cinema nacional. Na França, em 1998, o Titanic destinou mais de R$ 20 milhões à produção nacional do país. Isso é absolutamente correto e inteligente. Mas, para que isso ocorra no Brasil, é necessário vontade política para peitar um sistema baseado em milhões e milhões de dólares”, comenta.

O cineasta considera que deveria haver uma reação maior do público ao loteamento das grandes salas de cinema por mega produções estrangeiras e nacionais. “O público deveria reagir a isso, mas as pessoas estão cada vez mais adestradas pelo mercado, acabam assistindo determinados filmes sem nem saberem por quê”, lamenta.

Produção independente vem crescendo no Brasil, dizem especialistas

Para a coordenadora do curso superior de Tecnologia em Produção Audiovisual da PUCRS, Aleteia Selonk, a produção de filmes independentes vem crescendo no Brasil. Ela acredita que o sucesso de O Som ao Redor serve como estímulo a outros realizadores.

“Nos últimos anos, temos visto um número muito maior de lançamentos de títulos nacionais independentes. Ainda que outros não tenham conseguido a projeção de O Som ao Redor, a quantidade de produções ajuda a firmar o potencial brasileiro nesta área, sensibilizando o público e formadores de opinião”, comenta.

Aleteia entende que o sucesso do longa de Kleber Mendonça Filho intensifica o debate em torno da democratização das salas de cinema. “O resultado de O Som ao Redor é uma comprovação de que quando esses títulos ficam mais disponíveis, com boas salas e bons horários, o público tem a chance de corresponder”, comemora.

Ranking dos longas nacionais com maior bilheteria entre 2000 e 2012, de acordo com o site especializado www.filmeb.com.br | Divulgação/FilmeB

A professora sustenta que há um hiato entre a crescente produção audiovisual independente no país e a disponibilidade do circuito exibidor. “O circuito exibidor no Brasil não conseguiu se integrar de maneira mais democrática ao movimento de fortalecimento da produção audiovisual nacional, que vem ocorrendo entre realizadores, poder público, patrocinadores e formadores de opinião. A exibição, que é o terceiro elo na cadeia, precisa se conectar mais profundamente com o momento promissor que vivemos”, defende.

A professora do curso de Realização Audiovisual da Unisinos, Flávia Seligman, também observa que a produção nacional independente está em ascensão. “Estão surgindo trabalhos de extrema qualidade, mais modestos em termos de verbas, mas muito bons. Não existe uma fórmula mágica (para o sucesso): ou se investe em uma baita divulgação na exibição de um filme como Crepúsculo, por exemplo, ou se faz um filme bom”, comenta.

Flávia Seligman diz que é preciso uma ação do Estado para garantir espaços de exibição ao cinema nacional. “Não temos um espaço decente para o filme nacional porque as grandes distribuidoras dominam o mercado de exibição. Por isso o GNC está fechado com a Warner, que manda passar os filmes”, critica.

Caio Blat criticou atuação da Globo Filmes no ano passado, mas depois pediu desculpas

No primeiro semestre de 2012, o ator global Caio Blat participou de um encontro com produtores culturais e artistas na cidade de Suzano, no interior de São Paulo. A atividade, que foi gravada e promovida pela Secretaria de Comunicação Social da prefeitura local, foi disponibilizada no YouTube no dia 17 de julho.

No vídeo, questionado pelo público presente, observou que a produção dos filmes se democratizou no país com a chegada das câmeras digitais. Mas ressaltou que a distribuição “ainda é absolutamente predatória”. “É um monopólio, são pouquíssimas empresas distribuidoras e o que elas fazem é absolutamente cruel. Elas não fazem os filmes crescerem, pelo contrário, sugam toda a energia do filme para elas. São grandes corporações”, qualificou.

O ator contou sua experiência como produtor nos últimos dois longas que havia feito. “Aí eu descobri como a coisa estava acontecendo na hora da distribuição. Era uma coisa que me deixou enojado mesmo, me deixou horrorizado”, disse.

Caio Blat se disse surpreso ao descobrir que as ações de divulgação do filme em programas da Rede Globo eram, na verdade, ações de merchandising pagas pela Globo Filmes. “Eu sempre ia para a Globo divulgar os filmes que fazia. Eu ia no Video Show, no programa do Serginho Groissman (Altas Horas) e achava que era um trabalho natural de divulgação. Aí eu descobri que essas coisas são pagas, que são consideradas uma ação de merchandising. A TV Globo faz uma ação de merchandising do filme e apresenta uma fatura para a Globo Filmes pagar. Ela cobra dela mesma”, declarou.

O ator comentou que, caso a obra não conte com o apoio da Globo Filmes, “nenhum programa (da Rede Globo) irá falar dele, nem programa jornalístico, nem de cultura”. “Se você não fechar com a Globo Filmes, seu filme morreu. Não vai aparecer na Rede Globo, nas revistas da Editora Globo, seu filme vai ficar alienado”, criticou.

Na conversa, Caio Blat explicou que, ao firmar uma parceria com a Globo Filmes, a equipe de um longa-metragem passa a se tornar credora da empresa. “Eles dizem: ‘vou fazer um investimento enorme em você, só que cada vez que um ator seu aparecer em um programa da casa, você me deve um milhão.’”

O ator detalhou como seriam feitos os contratos. De acordo com Caio Blat, a Globo Filmes demanda que o rendimento da obra na bilheteria seja repassado à empresa, como forma de pagar pela divulgação conquistada na emissora. “Quanto que a Globo gastou para fazer investimento no filme? Nada, porque os programas (de televisão) acontecem todos os dias, precisam de alguém para ser entrevistado. Então o seu filme faz R$ 1 milhão e você já está devendo R$ 4 milhões (para a Globo). É uma forma que eles fazem para que o dinheiro não saia dali, para que ninguém consiga ganhar nada”, denunciou.

Com a intensa repercussão do vídeo com essas declarações, o ator divulgou uma carta no dia 30 de julho, na qual pedia desculpas à Globo Filmes. “Falei sobre diversos assuntos, fiz uma retrospectiva da minha carreira e, em determinado momento, instigado pela audiência sobre o porquê de muitos filmes não chegarem até as salas de cinema das cidades pequenas, proferi uma crítica feroz ao sistema de distribuição das grandes distribuidoras de cinema. Nessa crítica, (…) de forma impulsiva, acabei avançando sobre temas dos quais não tinha conhecimento suficiente, misturei questões pertinentes e importantes com outras tantas generalizações, e acabei atingindo quem estava mais perto, ou seja, a Globo Filmes, parceira prioritária do cinema nacional, de forma injusta”, justificou.

Na época, Caio Blat disse que iria interpelar judicialmente a prefeitura de Suzano para que retirasse o vídeo do ar, mas o material ainda pode ser encontrado no YouTube. O ator alegou tomar a medida para preservar sua imagem e a imagem das empresas onde trabalha.

Na carta de desculpas à Globo Filmes, Caio Blat reiterou a parceria que mantém com a empresa. “Deixo aqui meu pedido pessoal de desculpas, e reafirmo meu compromisso com os projetos que temos em parceria para futuros lançamentos e meu reconhecimento pelo trabalho generoso da Globo Filmes na promoção do cinema brasileiro.”