Pelo direito de ser trans!

O Foro Central de Porto Alegre teve uma tarde mais colorida do que de costume na terça-feira (29), Dia Nacional da Visibilidade Trans. Uma fila animada se formou diante do balcão onde são protocoladas ações judiciais. Estudantes, advogados, militantes de direitos humanos e mulheres foram mobilizados no primeiro mutirão para a troca de nome de transsexuais, na Justiça brasileira.


Nove transexuais e travestis protocolaram pedido para troca de nome em mutirão / Fotos: Ramiro Furquim/Sul21

No total, nove transsexuais e travestis tiveram protocolados seus pedidos para troca de nome em registro civil. A iniciativa é do Serviço de Assessoria Jurídica Universitária (Saju) e do Núcleo de Pesquisa em Sexualidade (Nupsex), ambos da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), juntamente com a Associação de Travestis e Transexuais do Rio Grande do Sul ou Igualdade RS como é conhecida a entidade.

Antes de chegarem ao Fórum, eles fizeram uma passeata pela visibilidade que contou com dezenas de militantes desde a Usina do Gasômetro até o Foro Central.

Diferente da Carteira Social, concedida pelo governo do RS desde 2012, os pedidos de Retificação de Registro Civil alteram todos os documentos oficiais das transexuais e travestis. Conforme explica a advogada do SAJU e militante da Igualdade RS, Luisa Helena Stern: “Com o pedido da retificação de registro civil, é emitida uma nova certidão de nascimento e a pessoa pode trocar todos seus documentos. Se a pessoa tem bens, contas em lojas, qualquer ato oficial que ela tenha que praticar, em todos esses casos será usado o novo nome”.

A ação tramita na Vara de Registros Públicos do Foro e, de acordo com Luisa, o processo pode ser concluído em três meses. “Aqui em Porto Alegre, temos uma tradição de decisões judiciais favoráveis. Nos processos onde não há impedimento nem pedidos de perícia, a tramitação é rápida”, contou.

A presidente da Igualdade RS, Marcelly Malta, também ressaltou que o processo judicial não é tão difícil quanto parece. Ela foi a primeira travesti do Brasil a protocolar um pedido de retificação de registro civil, há três anos – e foi atendida. “Quando entrei com a ação, ninguém acreditou. Mas não foi tão difícil, é só trabalhoso, tem que juntar todos os documentos necessários”.

Para Marcelly, o trabalho vale a pena: “Assim, quando você chega em um lugar, pode mostrar sua identidade e dizer: ‘eu sou do gênero feminino’. Para o dia-a-dia da mulher transexual é um grande avanço”. A presidente da Associação contou que, muitas vezes, mulheres transexuais passam por constrangimento em lojas e outros estabelecimentos por terem documentos que as identifiquem com o gênero masculino, pois atendentes costumam suspeitar que os
documentos sejam falsos.


“Você chega em um lugar, pode mostrar sua identidade e dizer: ‘eu sou do gênero feminino’. Para o dia-a-dia da mulher transsexual é um grande avanço”

De acordo com a advogada Luisa, a maior dificuldade das transexuais em sua luta pela troca de nome acontece antes da chegada ao poder judiciário. “Os maiores desafios que percebo são que, muitas vezes, a mulher nem sabe que tem esse direito”, afirmou Luisa. “Em outros casos, muitas delas não têm os recursos para contratar um advogado, pagar os honorários dele, nem um psicólogo para fazer o laudo”. Assim, ela ressalta a importância do trabalho voluntário e gratuito do Saju, que forneceu os advogados para os processos, juntamente com o Nupsex, cujos psicólogos pesquisadores fizeram os laudos necessários.

Luisa contou que número de ações protocoladas “relativamente pequeno” se deu devido ao pouco tempo entre o início do processo do SAJU, iniciado em dezembro, e a data de entrega das ações. “Tivemos pouco tempo para divulgar e atender todo mundo, mas temos muitas pessoas na fila. E esse ato não é o fim, e o início do processo”, contou, lembrando que, após o recesso do Saju em fevereiro, os advogados e estudantes voluntários receberão todas as transexuais e travestis que quiserem o serviço.

Argentina é inspiração

Em termos de legislação voltada aos direitos das transexuais e travestis, o Brasil está atrás da Espanha, de Portugal e dos vizinhos Uruguai e Argentina, na opinião de Luisa. Estes países já têm leis que permitem a mudança de nome diretamente em cartório, sem necessidade de passar por processo judicial. “Queremos uma lei aprovada no Brasil com base nestes modelos, principalmente no argentino, que é o mais recente e o mais avançado”, afirmou a advogada. Ela lembrou o PL 4241/12, de autoria da deputada Erika Kokay (PT-DF), que tem base na legislação da Argentina.

Para Luisa, a necessidade de um laudo psicológico para a alteração do nome deve ser questionada. “Entendemos que não deveria ser necessário, mas é uma tradição”, disse. A advogada explicou que, primeiramente, as mudanças de nome das transexuais só ocorriam após a cirurgia de mudança de sexo – que nem todas as transexuais fazem ou planejam fazer. Depois, as decisões favoráveis à mudança de nome passaram a ser pautas por laudos psicológicos que viam a transexualidade como patologia. “Recentemente, já temos casos em que a mudança de nome foi aceita com pareceres focados na identidade da pessoa, e não na patologia. E até casos de mudança de registro aprovada sem nenhum laudo”, contou ela.

Marcelly, da Igualdade RS, concorda. Para ela, a exigência do laudo psicológico tira a autonomia das mulheres. “É a psicóloga quem tem que mostrar que você é realmente do gênero feminino. Tu tens que provar duas vezes que tu és mulher”, afirmou ela. “É mais uma permissão que tu precisas pedir”.

Convergência

O coordenador cultura da ONG Somos – Comunicação, Saúde e Sexualidade, Sandro Ka, esteve presente no ato e ressaltou a importância da unidade entra a comunidade LGBT. “Os problemas e a discriminação sofridos pelas transexuais e travestis em virtude da expressão da sexualidade e do gênero, de tudo aquilo que foge do que se espera que seja natural, que se considera normal, agride a todos”, disse ele. “A luta da visibilidade das travestis é uma luta do direito de ser o que é. A mesma luta de qualquer cidadão homossexual. É uma batalha que compartilhamos”, afirmou.

Para Sandro, um ato de mutirão é fundamental porque expõe a real demanda das necessidades da população transexual e travesti. “Estamos mostrando que essas pessoas existem, que existe demanda de busca e transformação, que não são questões isoladas”, pontuou.

O cartunista carioca Carlos Latuff também esteve presente na marcha para apoiar a luta por visibilidade. “A causa LGBT é uma causa humana. Os sem terra, os sem teto, os palestinos, as travestis… Estamos falando sempre em direitos humanos”, afirmou. “Não existe essa de não querer participar por não ser homossexual. Somos todos seres humanos e a travesti também é cidadã”, pontuou o artista.

Latuff expressou sua preocupação com as tentativas de alguns governos estaduais de “cooptar” a militância e o movimento LGBT para si. “Na marcha do orgulho LGBT do Rio de Janeiro, ficou nítido que o movimento foi cooptado pelo estado. Quando você confia ao poder público uma militância que deveria ser como essa, estar na rua, é muito perigoso”, lamentou. “O estado não defende o direito LGBT porque gosta ou tem simpatia. É por questão de eleitoral”, pontuou. O cartunista afirmou que o movimento precisa se organizar com força e autonomia frente à crescente onda conservadora, encabeçada por políticos evangélicos.

"Tapa de luva"

Para Renata Corrêa da Fontoura e Pitty Barbosa Cerrano, duas das nove mulheres que tiveram seus pedidos de troca de registro protocolados nesta terça-feira (29), a vida mudará. Não que, para elas, o registro formal exista para legitimar sua identidade – ambas afirmam que já sabem muito bem quem são. Mas as duas perceberam, com a clareza de quem tem a vida traída por nomes em pedaços de papel, que a identidade não é o bastante em um mundo tão apegado a oficialidades.

“Quem não é homossexual ou travesti não sabe como é importante”, contou Renata. “Para os heterossexuais, o nome no registro é algo comum, a pessoa nasce com aquele nome e pronto. Mas para a gente é fundamental porque as pessoas estão acostumadas a respeitar as outras a partir da lei. Não adianta só tu dizeres que quer ser chamada pelo teu nome, que tu usas esse nome há anos”, explicou ela.

“Eu nunca tive que provar para ninguém quem eu sou, mas acho que, para a sociedade, vai ser um choque ver aquele documento”, comemorou Pitty Cerrano. “Eles vão ser obrigados a nos aceitar. Hoje, eles nos aceitam apenas pela lei, não porque querem. Então, é um tapa de luva que nós, do movimento trans, estamos dando na sociedade”, pontuou.

Pitty e Renata, ao lado das outras mulheres e de seus advogados e amigos, fizeram festa na fila do Foro Central. Comemoraram, riram, se abraçaram – e foram vistas. Os funcionários do prédio pararam para assistir às mulheres tirando fotos e erguendo as ações judiciais como troféus, antes de entregá-las ao Judiciário.

Fonte: Sul21