Matheus Pichonelli: Santa Maria é aqui

“Vou te dizer. Se acontecesse alguma coisa parecida na festa de sábado eu já estaria morta”. Ouvi a frase durante o almoço ainda na segunda-feira (28). Minha amiga não estava em Santa Maria. Estava em São Paulo, em uma badalada casa noturna da zona oeste.

Por Matheus Pichonelli, para a CartaCapital*

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Àquela altura, estavam praticamente mapeados todos os fatores que levaram à morte de 234 pessoas, a maioria jovens universitários, e deixou outros 118 feridos – mais de 70 ainda em estado crítico – no município gaúcho. Dois empresários e dois músicos da banda estavam detidos. Não tardou para se descobrir que a boate Kiss não tinha alvará de funcionamento e o auto de vistoria do Corpo de Bombeiros estava vencido. Havia apenas uma porta de saída, quando, por suas dimensões, deveria ter duas. A comunicação entre os funcionários era falha – há relatos de que, sem saber o que acontecia, seguranças barravam a passagem das pessoas a fugir do fogo. A festa tinha mais gente do que sua capacidade. Por fim, com materiais inflamáveis no teto, a casa não poderia receber um show de fogos, a atração da banda da noite.

Não é difícil, portanto, explicar o que aconteceu em Santa Maria. Há indícios de negligência em cada canto. Difícil é pensar o quanto seria simples evitar tragédias do tipo. E que a receita para a tragédia não era exclusiva da Kiss (dia desses, conta a mesma amiga, um garçom cruzou os corredores de uma casa noturna com uma garrafa de champanhe envolta de “cones faiscantes” para brindar um aniversariante. Algum santo protetor impediu que o mimo esbarrasse em material inflamável).

Caixa de Pandora

O incêndio em Santa Maria abriu uma caixa de pandora que só agora parece óbvia: corremos riscos o tempo todo. E a sensação de justiça proclamada contra os responsáveis diretos e indiretos pelo episódio não servirá para purgar acidentes evitáveis Brasil afora – não só em casas noturnas.

Ainda assim, quem resolveu levantar o tapete para onde foram levadas as lacunas jurídicas e anos de omissão esbarrou numa série de dificuldades para traçar um panorama exato sobre o despreparo de empresas e do poder público para garantir que tantas vidas não sejam novamente ceifadas com tanta facilidade.

Como a transparência, nesses casos, é artigo de luxo, fica difícil descobrir onde os problemas começam. Só como terminam.

Empresários reclamam do excesso de burocracia e condicionantes para operar na legalidade. Em São Paulo, onde a prefeitura hoje garante que uma boate como a Kiss não funcionaria em razão da legislação, o responsável por liberar licenciamentos até pouco tempo atrás foi denunciado por supostamente receber propina para aprovar empreendimentos suspeitos. Ele acumulou durante anos um patrimônio incompatível com a sua renda.

A lei, portanto, parece ser o menor dos problemas.

19 contra 500

Na maior cidade do país há apenas 19 funcionários da prefeitura responsáveis por fiscalizar a aplicação das normas em cerca de 500 estabelecimentos de grande porte. Mais: não existe em lugar nenhum um sistema de monitoramento para saber se o local frequentado está adequado. Se tiver boa vontade, o dono do estabelecimento pode afixar o documento em lugar visível. Mas só se tiver boa vontade.

As atenções sobre o assunto, de toda forma, parecem ter despertado uma espécie de espírito vigilante: graças aos jornais, sabemos, por exemplo, que a distância máxima a ser percorrida até um extintor não deve ultrapassar 20 metros; que a distância máxima até a saída deve ser de 68 metros se houver chuveiros e de 45 metros se não houver chuveiros. Também aprendemos a desconfiar de quem confina clientes sem garantir ao mesmo uma porta a mais para a saída.

Até domingo pela manhã, dificilmente estas regras e números estariam em destaque.

Letargia

Por aqui as coisas são assim: parecemos sempre pegos pelo despreparo e acordados aos sobressaltos de uma profunda letargia. Sabemos que vai chover em janeiro e que há construções em áreas de risco, mas só lembramos de resolver o problema quando o deslizamento já ocorreu. Não há mapeamento, não há cultura da prevenção. Não prestamos sequer atenção quando uma voz em off acompanha os desenhos sobre os pontos com saídas desobstruídas e barras antipânico do cinema.

Por este motivo, chama a atenção, em casos de comoção desta magnitude, a profusão de especialistas de todos os matizes para vender explicações possíveis para evitar no futuro a tragédia não evitada ontem (é assim em acidentes aéreos, desastres naturais e em grandes incêndios). Dessa vez as assessorias de imprensa foram ágeis em tentar emplacar suas pautas. Uns usaram o gancho para pedir a divulgação de um curso sobre atendimento médico. Outros, para oferecer contato de advogados dispostos a falar sobre as implicações civis, penais e administrativas que os donos da boate e até da Prefeitura de Santa Maria poderiam responder. Outro articulista oferecido perguntava: imagina na Copa?

Até mesmo um gestor de empresa de radiocomunicação enviou artigo para dizer que o uso desses equipamentos poderia ter mitigado a tragédia. Tudo para concluir: “será que Deus é mesmo brasileiro?”

Há dúvidas, caro especialista de radiocomunicação. Há muitas dúvidas.

Fonte: CartaCapital