Bento XVI: A renúncia de Ratzinger
Num ato inusitado, o papa Bento XVI anunciou nesta segunda-feira (11) que renunciará ao seu pontificado. Segundo o Vaticano, ele deixará o posto em 28 de fevereiro.
Por Altamiro Borges
Publicado 11/02/2013 15:06
No comunicado, feito em latim durante uma assembleia de cardeais em Roma, o papa justificou a renúncia alegando “não ter mais forças” para exercer a função devido à idade avançada – 86 anos: “É necessário o vigor tanto do corpo como do espírito, vigor que, nos últimos meses, diminuiu em mim de tal forma que ei de reconhecer minha incapacidade para exercer bem o ministério que me foi encomendado”.
Esta é a segunda vez em toda a história do Vaticano que um papa renuncia – o que deve gerar muitas especulações nos próximos dias. O cardeal alemão Joseph Ratzinger foi escolhido papa em abril de 2005. Neste longo período, ele reforçou a guinada conservadora da Igreja Católica, iniciada com o cardeal polonês Karol Wojtyla, o papa João Paulo II. Líder da Congregação para a Doutrina da Fé, órgão da Inquisição, Bento XVI perseguiu os setores mais progressistas da igreja e retomou antigos dogmas católicos.
Sua gestão foi bem tumultuada. Ele enfrentou o escândalo dos padres pedófilos e, recentemente, a denúncia das fortunas erguidas ilegalmente pelo Vaticano. Um novo papa será escolhido nos próximos dias, mas não há expectativa de uma nova onda progressista na Igreja Católica. Os dois últimos pontificados promoveram uma enorme regressão. Como apontou o teólogo brasileiro Leonardo Boff, numa entrevista à revista IstoÉ em abril de 2010, Ratzinger foi a maior expressão deste retrocesso. Reproduzo trechos da entrevista:
Leonardo Boff: “O Papa deveria renunciar”
Teólogo diz que Bento XVI infantiliza os fiéis, é complacente com os pedófilos e fechou as portas para as outras religiões.
O brasileiro Leonardo Boff, 71 anos, e o alemão Joseph Ratzinger, 83, têm uma longa história em comum. Intelectuais de fôlego, respeitados fora dos muros da Igreja Católica, os teólogos se conhecem há mais de 40 anos, quando conviveram na universidade, em Munique, Alemanha. O atual pontífice já era um cultuado professor, admirado pelo jovem franciscano que frequentava como ouvinte suas conferências, enquanto preparava a tese de doutorado – que contou com a ajuda providencial do alemão para ser publicada. Tempos depois, os dois trabalharam juntos em uma prestigiosa revista de teologia.
Durou pouco, pois as contendas ideológicas provocaram a saída de Ratzinger. Mas o encontro mais marcante aconteceu em 1985, quando ambos estavam, definitivamente, em trincheiras opostas, dentro da mesma instituição. Boff já era o grande mentor por trás da Teologia da Libertação, movimento que interpreta o Evangelho à luz das questões sociais. E Ratzinger já havia se tornado o temido cardeal que punia severamente quem se atrevesse a mudar, uma vírgula que fosse, a interpretação oficial da Bíblia. O embate terminou com o silêncio forçado do franciscano e sua posterior saída da ordem, em 1992. Vinte e cinco anos depois desse encontro, casado com Márcia Miranda, padrasto de seis filhos e autor de mais de 60 livros traduzidos para diversas línguas, Boff analisa a Igreja da qual nunca se afastou e seu líder máximo. Que ele conhece como poucos.
A Igreja Católica está em crise?
A Igreja possui uma crise própria: até hoje ela não encontrou seu lugar no mundo moderno e no mundo globalizado. Suas estruturas são medievais. Ela é a única monarquia absolutista do mundo, concentrando o poder em pouquíssimas mãos. Nesse sentido ela está em contradição com o sonho originário de Jesus que foi o de criar uma comunidade fraterna de iguais e sem nenhuma discriminação.
Mas a Igreja Católica pode se modernizar sem perder a essência de seus princípios e, consequentemente, sua identidade?
A Igreja se engessou em suas doutrinas, em suas normas, em seus ritos que poucos entendem e num direito canônico escrito para legitimar desigualdades e conservadorismos. Os homens de hoje têm o direito de receber a mensagem de Jesus na linguagem de nossa cultura moderna, coisa que a Igreja não faz. Ela coloca sob suspeita e até persegue quem tenta fazer.
O que o sr. acha que a Igreja Católica deveria fazer para sair dessa crise?
Ela deveria ser menos arrogante, deixando de se imaginar a exclusiva portadora dos meios de salvação, a única verdadeira. Ela se diz perita em humanidade, mas maltrata a muitos desta humanidade internamente e ofende a vários direitos humanos. Por isso que até hoje não subscreveu a Carta dos Direitos Humanos da ONU, sob o pretexto de que ela não faz nenhuma referência a Deus, e retirou seu apoio ao Unicef, porque ele aconselha o uso de preservativos para combater a Aids e fazer o planejamento familiar. Uma igreja que afirma constantemente que fora dela não há salvação, ela mesma precisa de salvação.
O sr. acha que os escândalos de pedofilia contribuem para a debandada católica, com fiéis migrando, no Brasil, principalmente, para as igrejas evangélicas?
Muitos cristãos não aceitam ser infantilizados pela Igreja como se nada soubessem e tivessem que receber a comida na boca. Estes estão emigrando em massa. Mas é uma emigração interna. Continuam se sentindo dentro da Igreja, mas não identificados com as doutrinas deste papa, nem com o estilo com o qual ela se apresenta no mundo, com hábitos e símbolos palacianos que os tornam simplesmente ridículos. As igrejas evangélicas crescem porque a católica deixou um espaço vazio.
Muitos vaticanistas dizem que Bento XVI pensa em termos de séculos e não está preocupado em conquistar mais fiéis. O sr. concorda?
Bento XVI é fiel a uma esdrúxula teologia que sempre defendeu e da qual eu ainda como estudante e ouvinte dele discordava. Ele é um especialista em Santo Agostinho, grande teólogo. Santo Agostinho partia do fato de que a humanidade é uma “massa condenada” pelo pecado original e pelos demais pecados. Cristo a redimiu. Criou um oásis onde só há salvação e graça. Esse oásis é a Igreja. Ocorre que esse oásis é uma fantasia. Ele é tão contaminado como qualquer ambiente, haja vista os pedófilos e outros escândalos financeiros.
Como o sr. avalia o pontificado de Bento XVI?
Do ponto de vista da fé, este papa é um flagelo. Ele fechou a Igreja de tal forma sobre si mesma que rompeu com mais de 50 anos de diálogo ecumênico, vive criticando a cultura moderna, desestimula qualquer pensamento criativo, mantendo-o sob suspeita. Todo papa tem a missão imposta por Jesus de “confirmar os irmãos e as irmãs na fé”. Esta missão, a meu ver, não está sendo cumprida.
Por quê?
Bento XVI cometeu vários erros de governo com respeito aos muçulmanos, aos judeus, às mulheres e às religiões do mundo. Reintroduziu o latim nas missas em que se reza ainda pela conversão dos judeus, reconciliou-se com os mais duros seguidores de Lefebvre (Marcel Lefebvre arcebispo católico ultraconservador, que morreu em 1991), verdadeiros cismáticos. Enquanto trata a nós teólogos da libertação a bastonadas, trata os conservadores com mão de pelica. É um papa que não suscita entusiasmo. Mesmo assim, convivemos com ele, porque a Igreja é mais que Bento XVI. É também o papa João XXIII, é dom Helder Câmara, é a Irmã Dulce, a Irmã Doroty Stang, é dom Pedro Casaldáliga e tantos e tantas.
O sr. acha que ele deveria renunciar?
O papa, para o bem dele e da Igreja, deveria renunciar. Devemos exercer a compaixão: ele é um homem doente, velho, com achaques próprios da idade e com dificuldades de administração, pois é mais professor que pastor. Em razão disso, faria bem se fosse para um convento rezar sua missa em latim, cantar seu canto gregoriano que tanto aprecia, rezar pela humanidade sofredora, especialmente pelas vítimas da pedofilia, e se preparar para o grande encontro com o Senhor da Igreja e da história. E pedir misericórdia divina.
Como foi a convivência dos srs. no mesmo ambiente acadêmico?
Ouvi-o muitas vezes, pois era um apreciado conferencista. Teve um papel importante na publicação de minha tese doutoral, que, por seu tamanho – mais de 500 páginas –, encontrava dificuldades junto às editoras. Ele encontrou uma, arranjou-me boa parte do dinheiro para a impressão em forma de livro. Depois fomos colegas nas reuniões anuais da revista internacional “Concilium”. Mas ele se desentendeu com a linha da revista e criou uma outra, a “Communio”, em franca oposição à “Concilium”.
Anos depois, em 1985, já na Congregação para a Doutrina da Fé, ele o puniu. Como foi esse encontro?
Ele me fez sentar na cadeira onde sentou Galileo Galilei, no famoso edifício, ao lado do Vaticano, do Santo Ofício e da antiga Santa Inquisição. Foi meu “inquisidor”, interrogando-me por mais de três horas sobre o livro Igreja: Carisma e Poder, que me custou o “silêncio obsequioso”, a deposição de cátedra e a proibição de publicar qualquer coisa. Mas devo dizer que é uma pessoa finíssima, extremamente elegante na relação, mas determinado em suas opiniões. E muito, mas muito, tímido.
Entrevista a Débora Crivellaro, Revista IstoÉ, maio de 2010