Médicos Cubanos – Eles não Usam Black-tie

Há meses, personalidades ligadas ao governo da presidenta Dilma Rousseff vem anunciando a possibilidade de permitir que profissionais médicos oriundos de Portugal, Espanha, Argentina, Uruguai e Cuba, tenham a possibilidade de exercer a medicina no Brasil.

Por Nésio Fernandes de Medeiros Junior

Hoje, o Brasil de Lula e Dilma, sexta economia do mundo, que levou para a classe média 37 milhões de brasileiros e que caminha para eliminar a pobreza extrema na infância nos próximos anos, continua recebendo a resistência de setores xenofóbicos da classe médica que destilam ódio ideológico de classe a tudo que cheire globalização da solidariedade e dos direitos humanos.

A migração do homem é um evento universal, presente em toda a história do homem. A formação do Brasil como nação é o resultado da luta e miscigenação entre povos originários da América, África, Ásia e Europa. No entanto, setores das antigas elites históricas luso-brasileiras sempre pensaram um país de grandes dimensões com a mentalidade de quem nunca sonhou em ser livre da metrópole.

Posteriormente, a ditadura militar, representante do pensamento das elites históricas, "modernizou" o Brasil orientando-se no modelo e na dependência norte americana, o que representou para a saúde a construção do complexo médico-industrial tupiniquin orientando a formação médica ao modelo biologicista, intervencionista, dependente da tecnologia e centralizado no profissional médico e na atenção hospitalar.

Nos tempos de Anísio Teixeira e de Sérgio Arouca, nossas principais universidades no Brasil contavam com a contribuição de grande expoentes estrangeiros em suas salas de aula. Hoje essas mesmas salas de aula, assim como o serviço, são alvos de venosos ataques quando se trata de abrir o Brasil a globalização do conhecimento e dos serviços médicos.

As metrópoles há tempos entenderam que abrir sua universidade e o seu mercado à mão de obra qualificada era uma forma de fortalecer o Estado, permitindo o desenvolvimento da ciência, da tecnologia e da universalização de serviços qualificados, que ao ritmo da formação interna de cada país, levariam anos para serem concretizados. A Inglaterra hoje possui 40% dos seus médicos estrangeiros, o Canadá 22% e o próprio EUA 25%. Isso é porque estes países são ou foram "irresponsáveis"? Porque atacaram "a nação"? Não. Somente pensaram estrategicamente o seu desenvolvimento.

Hoje, diferente de algumas mentiras que circulam pela internet, que usam um exemplo mentiroso de que a Europa restringe a entrada de médicos estrangeiros, um médico formado em Cuba, regularizando sua situação migratória em Portugal ou Espanha, poderá exercer sem nenhuma "burrocracia" corporativa a profissão médica. O mesmo acontece com os profissionais formados em Cuba que migram para o Uruguai, Paraguai, Colômbia, Argentina ou Equador.

Sobre Cuba e a universidade latino americana

Criticam Cuba com um ódio típico de tempos passados, da guerra fria. Enquanto a nossa primeira universidade, data da década de 30 do século passado, a Universidade de Havana, fundada no ano de 1728 é uma das primeiras da América. Hoje, Cuba conta com 46 faculdades e centros de ensino superior, tendo um território pouco maior que o Estado de Santa Catarina.

A revolução cubana pintou a Universidade de preto, de branco, de operário, de camponês, de mulher, de povo. Mudaram o poder do Estado, permitiram que a Universidade, antes um privilégio de setores médios e ricos, fosse santamente "contaminada" de povo.

O modelo de formação médica em Cuba orienta-se pelo princípio da formação contextualizada no serviço, na prática profissional desde os primeiros anos da carreira. Se ensina o raciocínio médico, de ir desde a clínica epidemiológica, passando pela boa semiologia, que orienta um correto pensamento sindrômico que permite um diagnóstico nosológico em 85-95% dos casos, sendo confirmada por exames complementares criteriosamente solicitados.

Nos dois primeiros anos da carreira, no ciclo básico (pré-clínico), os estudantes compartem o tempo de aulas teóricas com a vivência nos serviços da Atenção Primária. A partir do terceiro ano da carreira de medicina, a prática docente se dá 100% dentro dos Hospitais, Policlínicas e Consultórios de Família, são quatro anos vivenciando a prática num sistema baseado na atenção à saúde da família e da comunidade e em sua complexidade progressiva.

Ter a oportunidade de ter um professor médico cubano é algo extraordinário, chegam antes de todos os alunos, vão embora depois de todos e dedicam todo o tempo da atenção clínica à prática docente contextualizada. Fazem um plantão por semana e são incapazes de abandoná-lo, ainda que não recebam pagamento adicional por ele. Não nos ensinam vícios da prática médica, nos mostram o sacerdócio de promover felicidade e vida.

Além de tudo isso, os médicos lá formados, sejam cubanos ou residentes estrangeiros, de direita ou de esquerda, ao terminar a carreira de medicina devem cursar a residência de dois anos em Medicina Geral Integral, equivalente a nossa Medicina da Família e Comunidade. Somente depois disso é que podem seguir para outras especialidades ou aprofundar o seu perfil de médico de família.

Mas não pense você que esse tipo de política é exclusivo dos processos revolucionários. Na nossa linda e bela vizinha Colômbia, que possui o governo mais ultra-direitista e reacionário do Conesul, todas as carreiras universitárias são avaliadas pelo exame ECAES, realizado pelo próprio Ministério da Educação. E, no caso da medicina, todos os formados na Colômbia ou no exterior que desejem trabalhar na pátria de Bolívar, devem passar 1 ano de serviço médico social, seja em periferia urbana, rural ou em áreas afastadas.

Ensino médico no Brasil e as ameaças ao exercício da profissão

O movimento da reforma sanitária, representante legítimo da herança histórica de luta do povo brasileiro, levantou uma das bandeiras mais ousadas na história da luta popular: a criação do Sistema Único de Saúde no Brasil, garantidor do acesso universal, da equidade, da integralidade e da qualidade da atenção a saúde. No entanto, o desenho formal, plasmado na constituição cidadã e em legislações posteriores, sempre foi alvo de ataques daqueles que sempre pensaram o Brasil com a lógica da metrópole.

Resultado, possuímos uma das legislações mais avançadas do mundo no que diz respeito à regulamentação do direito formal do dever do Estado como garantidor da saúde universal. Uma realidade que se esbarra na gestão da saúde, no financiamento, na formação profissional desvinculada do contexto do serviço e na oposição do complexo médico-industrial que a todo custo pretende garantir um modelo de atenção a saúde dependente da alta tecnologia, da medicalização, da especialização e que usa a reserva de mercado como garantidora do custo-médico mais caro da América latina.

Enquanto no Brasil 58% das nossas faculdades de medicina são privadas e ainda, grande parte das públicas ainda preferem formar para o mercado e não para o Sistema Único de Saúde, a necessidade de Educação Permanente é debate em todos os círculos que seriamente discutem a formação dos profissionais de saúde. Hoje, o profissional sai da Universidade e precisa novamente ser reformado para poder trabalhar no SUS. Ter cursado matérias teóricas de Saúde Pública, Epidemiologia, etc, não garantem por si só um profissional qualificado para o serviço público. A educação crítica e contextualizada no serviço, sim. Assim como os profissionais formados no exterior possuem um pensamento médico formado, os nossos também. Ambos devem ser inseridos em políticas de Educação Permanente em Saúde para que possam realmente perfilar-se profissionalmente às necessidades do SUS.

A polêmica sobre a vinda de médicos formados no exterior, sejam brasileiros ou estrangeiros, é parte de uma escalada de ações para garantir a reserva de mercado. O famoso exame do CREMESP, que nos últimos anos reprovou mais da metade dos estudantes de medicina formados no Brasil e, que em alguns casos alcançou 70% de estudantes das universidade privadas, é o ensaio do que pretendem fazer em escala nacional e restringir o exercício da profissão médica.

Não é competência constitucional de nenhum conselho profissional, decidir quem é ou quem não é profissional de saúde. Isso é atribuição na Universidade e das estruturas governamentais ligadas ao Ministério da Educação. Se assumimos que o exame teórico é a ferramenta mais fiel para avaliar o recém formado, que ele seja feito pelas estruturas do MEC e realizado para todas as categorias.
Não acredito que este seja o caminho. Hoje já existem ferramentas que avaliam as instituições, os recém-formados e que orientam as melhorias na formação superior, sem penalizar ao cidadão.

Será que não é muito mais simples permitir que médicos formados no exterior e no Brasil, participem dos mesmo programas de formação profissional e de interiorização dos médicos? Por que não permitir que os médicos formados no exterior participem do PROVAB? Permitir que a avaliação destes seja feita em serviço, com preceptoria e usando ferramentas tecnológicas como o Telessaúde, para qualificar a formação profissional? Hoje temos a oferta ociosa de mais de 300 vagas para a Residência de Medicina da Família e Comunidade. Por que não permitir que os médicos formados no exterior participem dos programas de Residências médicas de áreas estratégicas ao Estado? Em tempos de UNASUR, será que já não é hora de construir consensos sobre a matriz curricular do sistema universitário latino-americano?

Verdades sobre a Revalidação dos Diplomas

O rancoroso discurso de que os profissionais médicos formados no exterior não são aprovados nos exames de revalidação é um argumento falacioso e descontextualizado. A Universidade Pública tem a obrigação de processar pedido administrativo de diploma, visto que no Brasil é de sua competência a revalidação de diplomas estrangeiros, não podendo portanto a Universidade receber os processos apenas quando da abertura de editais, e como é ente da Administração Pública tem obrigação de processar os pedidos administrativos estando vinculada à lei.

A revalidação dos diplomas no Brasil está regulada pela RESOLUÇÃO Nº 8, DE 4 DE OUTUBRO DE 2007 do Conselho Nacional de Educação que estabelece critérios para revalidação dos diplomas que em resumo devem seguir os seguintes passos:

1 – Abertura de processo administrativo para revalidação de diplomas emitidos por instituições de ensino superior estrangeiras.

2 – Análise comparativa do programa de estudos de ambas instituições.

3 – Emissão de um parecer que deve definir compatibilidade, podendo decidir entre a revalidação automática, realização de exames teóricos e/ou práticos, ou oferecer a possibilidade de complementação dos estudos visando a equiparação de ambos programas.

Sobre o currículo da Escola Latino-americana de Medicina (CUBA), um Relatório da Missão Oficial da Comissão de Especialistas do Ministério da Educação (Mec), em 2004, com participação do Conselho Federal de Medicina, concluiu “do ponto de vista de formação clínica voltada para um médico generalista os currículos de graduação do Brasil e de Cuba são perfeitamente compatíveis”, posteriormente em 2009, uma Comissão da ANDIFES chegou a conclusão semelhante.

Existe uma verdadeira indústria da revalidação no Brasil. Poucas universidades abrem processos fora do Exame Revalida. E quando fazem cobram caro: UFMT (R$ 1.400,00), UFF (R$ 590,00), UFMG (R$ 1.170,00). No caso da UFMT em 2011, houveram 300 estudantes revalidados de 637 que se apresentaram ao exame, ano passado a corporação médica pressionou a universidade e seu novo reitor, e o resultado foi que de quase mil inscritos, apenas 3 foram aprovados. Mas no entanto, o exame representou a entrada de mais de um milhão de reais aos cofres da Universidade.

Além disso, por via de ações judiciais instituições como a Universidade Estadual do Ceará e a Universidade Federal do Ceará estão perdendo ações na justiça que garantem aos formados no exterior o famoso parecer sobre o currículo. Com este em mãos, buscam universidades privadas, pagam valores de R$ 25.000,00 a R$ 80.000,00, complementam seus estudos em 6 meses ou um ano e revalidam seus diplomas. Quem se prejudica? O médico de origem popular formado no exterior. Outra vez o processo de revalidação exclui quem pinta de povo o sistema de saúde.
Esse é o modelo defendido pela corporação: o modelo que restringe e exclui.

Em qualquer Estado democrático de direito quem manda é a Lei. No entanto, no Brasil por pressão de setores corporação médica, nenhuma universidade pública ousa cumprir a lei e oferecer a complementação teórica aos estudos e muitos menos reconhecer que diplomas de instituições estrangeiras possuam compatibilidade curricular.

O próprio Governo Federal em anos anteriores cedeu a mesma pressão da corporação médica e retirou da primeira portaria que criou o Projeto Piloto de Revalidação, e que depois se transformou no famoso exame nacional Revalida, o texto que garantia o respeito à Lei e o direito aos reprovados no exame a complementação dos estudos.

Acontece que neste momento a correlação de forças dentro do governo mudou e hoje, o nosso Ministro da Saúde, companheiro Alexandre Padilha e sua equipe, a própria Casa Civil e a Presidenta Dilma Rousseff, estão decididos a garantir o direito à assistência médica por cima das pressões corporativas. Por isso, se construiu ao longo dos últimos meses uma série de articulações que pudessem garantir o exercício profissional dos formados no estrangeiro, sejam brasileiros ou não. O debate e a proposta foi apresentado às entidades médicas, mas elas não aceitaram.

"De que lado você samba?"

Considerando todo o exposto, é possível concluir que a resistência envenenada contra os médicos formados no exterior é feita pelos mesmos que são contra as cotas sociais, étnicas e raciais nas universidades públicas, que resistem ao serviço civil obrigatório aos egressos do ensino superior público e que historicamente se posicionaram contra o reconhecimento no Brasil da Medicina da Família e da Comunidade.

Que viva o povo brasileiro!
Até a vitória! Sempre!

Nésio Fernandes de Medeiros Junior é médico formado em 2012 pela ELAM (Escola Latino-Americana de Medicina em Havana)
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