Dênis: Precisamos pôr fim nas bases mercantis da mídia

Foi lançado, no último dia 15, o livro Mídia, Poder e Contrapoder, organizado pelo jornalista, professor e pesquisador Dênis de Moraes e que reúne artigos dele, e dos também jornalistas Ignacio Ramonet e de Pascual Serrano.  

A ideia do livro surgiu em 2011, no 17º Curso Anual do Núcleo Piratininga de Comunicação (NPC), quando eles participaram da mesa “Século XXI: mídia e ebulição no mundo latino, árabe e europeu”. “O ponto de partida de Mídia, poder e contrapoder é o compromisso comum de interpelar a contemporaneidade, cada vez mais midiatizada e mercantilizada”, explica o autor na apresentação do livro.

O livro parte de uma análise crítica da mídia contemporânea, suas configurações, seus métodos de atuação ideológico-culturais e suas ambições de poder político e econômico. “Desdobra-se numa segunda parte em que focalizamos experiências que se expandem na órbita da internet, contrariando a lógica financeirizante e as diretrizes editoriais dos grupos monopólicos e potencializando processos e dinâmicas comunicacionais comprometidas com a diversidade informativa e cultural”, explica Dênis.

Na entrevista, o autor também avalia o papel do jornalista em tempos de avanço da internet e de intensificação da concentração monopólica dos meios de comunicação. Segundo ele, “apesar dos obstáculos, há chances de evoluirmos para práticas mais instigantes, cooperativas e humanizadoras do jornalismo, aproveitando ferramentas e espaços digitais e desenvolvendo formas cooperativas e compartilhadas de produção informativa independente”. Dênis também apresenta os desafios que a comunicação de esquerda precisa enfrentar para se fortalecer como ferramenta de disputa de hegemonia atual.

Claudia Santiago – Como surgiu a ideia do livro Mídia, Poder e Contrapoder? Por que a escolha de Ignacio Ramonet e Pascual Serrano como parceiros?
Dênis de Moraes – O livro resulta de nossas afinidades de análises e visões críticas sobre o complexo mundo da mídia e do jornalismo. E também nos unem as esperanças de reversão progressiva do cenário de concentração monopólica dos meios de comunicação, principalmente com a explosão de mídias digitais, em particular na internet. No ecossistema virtual, o jornalismo vem se renovando fora da bitola das grandes empresas, permitindo supor que as novas gerações de jornalistas terão possibilidades de exercer a profissão sem os freios impostos por mecanismos autoritários de controle da informação que se verificam em grande parte da mídia tradicional. Também devo destacar o consenso que existe entre Ignacio Ramonet, Pascual Serrano e eu sobre a relevância das transformações socioeconômicas e políticas em países da América Latina cujos governos progressistas qualificam o direito humano à comunicação como pressuposto para o aprofundamento da democracia. Defendemos modelos de desenvolvimento inclusivos e socializantes que se contraponham à herança perversa do neoliberalismo, com sua índole para a competição e o lucro, na exata proporção dos malefícios sociais que gera.

Sheila Jacob – Em alguma medida este livro apresenta novidades em relação ao seu trabalho Vozes Abertas da América Latina? Você trata de novas políticas de comunicação ou outras ações que ajudam a promover a democratização do setor na América Latina?
Dênis de Moraes – São livros bem diferentes, embora comprometidos, essencialmente, com a longa luta pela democratização da comunicação. Vozes Abertas da América Latina (2011) é um estudo sobre políticas e ações de governos progressistas latino-americanos para tentar descentralizar os sistemas de comunicação. O livro centra-se no papel do Estado como agente histórico capaz de intervir nos sistemas de comunicação para promover o pluralismo, além de tentar assegurar o equilíbrio entre os três setores que neles atuam (público/estatal, privado/lucrativo, social/comunitário). Mídia, poder e contrapoder parte de uma análise crítica da mídia contemporânea, suas configurações, seus métodos de atuação ideológico-culturais e suas ambições de poder político e econômico. Desdobra-se numa segunda parte em que focalizamos experiências que se expandem na órbita da internet, contrariando a lógica financeirizante e as diretrizes editoriais dos grupos monopólicos e potencializando processos e dinâmicas comunicacionais comprometidos com a diversidade informativa e cultural. Com diferentes estilos e intensidades, a maioria dos veículos alternativos em rede desenvolve um jornalismo mais colaborativo, veraz, participativo e cidadão. Portanto, Mídia, poder e contrapoder prioriza a sociedade civil, entendida na perspectiva do filósofo comunista italiano Antonio Gramsci: espaço de disputas pela hegemonia e arena da luta de classes.

Sheila Jacob – Por que o momento histórico atual seria perturbador por causa da profusão de meios digitais, em geral tão elogiados e citados como espaços de disputa de ideias?
Dênis de Moraes – Eu gostaria de recuperar ideias que exponho na apresentação do livro. A contemporaneidade está cada vez mais midiatizada, tecnologizada e mercantilizada. Vivemos um momento histórico perturbador, em que o direito ao delírio e ao sonho – ao qual se refere Eduardo Galeano – se vê obrigado a partilhar a caminhada às utopias com as tecnologias do conhecimento, o consumismo programado para a obsolescência e os fascínios compulsivos por objetos digitais que se conectam instantaneamente a “nuvens de computação” capazes de armazenar volume imensurável de informações. Tudo isso no marco de um capitalismo de crises reiteradas e insustentáveis para a cidadania; de acessos e usos tecnológicos profundamente desiguais; e de rarefação dos vínculos de solidariedade. A aceleração tecnológica não desfaz exclusões e desigualdades, não assegura usufrutos equânimes dos benefícios do progresso tecnocientífico, não impede que as classes dominantes expandam seus domínios à internet (veja a crescente mercantilização das redes sociais, a serviço da obsessão capitalista por rentabilidade e lucro). Por outro lado, o ecossistema virtual já se constitui em mais um espaço de disputa de ideias pela hegemonia cultural, daí a relevância de intensificarmos projetos contra-hegemônicos em rede, quebrando (mesmo que parcialmente) o monopólio de difusão dos meios convencionais. Esse quadro de ambivalências está diante de nós e creio que devemos explorá-las em todos os aspectos que possam vir a favorecer as causas emancipatórias. Sabemos que as formas de domínio material e imaterial não são fortalezas inexpugnáveis e estão atravessadas por contradições. Cabe-nos buscar as brechas e as fissuras, dentro e fora do sistema midiático, em um longo processo de pressões organizadas e permanentes por conquistas sociais cumulativas.

Marina Schneider – Qual seria o (novo) papel do jornalista em tempos de avanço cada vez maior da internet, mas, ao mesmo tempo, época em que o sistema midiático se mantém sob forte concentração monopólica?
Dênis de Moraes – Precisamos resgatar e revitalizar o jornalismo em bases éticas e críticas, não monopólicas e não mercantis. É uma tarefa árdua diante da realidade com a qual nos deparamos. Os mecanismos de controle ideológico cresceram enormemente nas empresas de mídia, gerando, como efeito colateral, uma sensível diminuição da possibilidade de interferência autoral dos jornalistas nos materiais informativos. Resultam daí ambivalências e frustrações. Sem dúvida, há desvios sérios nas engrenagens de produção noticiosa, provocados, em larga medida, pelas conveniências de toda ordem dos grupos empresariais do setor e pelos modelos autoritários que regem as relações internas das redações. Trata-se de um modelo que filtra e enquadra as notícias em sintonia com as ênfases e os ocultamentos determinados, unilateralmente, por cada veículo. Apesar dos obstáculos, há chances de evoluirmos para práticas mais instigantes, cooperativas e humanizadoras do jornalismo, inclusive aproveitando ferramentas e espaços digitais (sem cair na ilusão de achar que a internet é a solução para todos os males) e desenvolvendo formas cooperativas e compartilhadas de produção informativa independente. Significa reunir projetos convergentes e mobilizar, em etapas sucessivas, energias criativas e consciências questionadoras para fazer reviver a inquietação jornalística e impulsionar o vigor crítico diante de um mundo reificado.

Marina Schneider – Como a esquerda pode se apropriar dos novos meios de comunicação? Que exemplos você poderia citar no campo de mídias contra-hegemônicas no Brasil e no mundo?
Dênis de Moraes – Se observamos atentamente o quadro atual, veremos que as ferramentas virtuais têm sido cada vez mais buscadas por organizações, movimentos, grupos e coletivos de esquerda, com o propósito de ampliar as vozes que se expressam na arena da comunicação em defesa da cidadania, da justiça social e da diversidade informativa e cultural. Mesmo que possamos indicar a necessidade de aprimoramentos e de políticas de comunicação eletrônicas mais articuladas e ousadas, já percebemos a multiplicação de vozes sociais e comunitárias em redes sociais, portais, blogs, publicações eletrônicas, listas e grupos de discussão, redes compartilhadas, rádios livres e comunitárias, etc. No livro Mídia, poder e contrapoder, abordamos uma série de iniciativas que renovam os meios e os métodos de comunicação, como as agências alternativas de notícias em rede da América Latina, o site Wikileaks, os coletivos jornalísticos que se estruturam em bases colaborativas e não mercantis para levar adiante um jornalismo crítico e não mercantilizado, como Rebelión, de Madrid, por exemplo.

Claudia Santiago – Na sua opinião, o que não pode existir na comunicação de esquerda? E o que não pode faltar?
Dênis de Moraes –
Começo pelo que, em linhas gerais, não pode faltar: diversificação de fontes e óticas interpretativas; inclusão de anseios e reivindicações sociais nas agendas e seleções temáticas; produção colaborativa e adoção do princípio do copyleft; dinâmicas editoriais mais participativas; compromisso com a informação veraz; expressões do contraditório e do dissenso sociais; aproveitamento adequado dos recursos multimídias e interativos, entre outros quesitos.

Quanto ao que não pode existir na comunicação de esquerda, prefiro falar em desafios a enfrentar, tais como: evitar linguagem excessivamente ideologizada; ser criativo e crítico nas pautas e coberturas para ultrapassar o agendamento midiático; ampliar a penetração social das mídias alternativas e contra-hegemônica, aproveitando melhor redes sociais, listas de discussão, boletins informativos por correio eletrônico e ações compartilhadas; arriscar na programação visual dos veículos para renovar formatos e linguagens e torná-los mais atraentes aos leitores; ampliar espaços para participação dos leitores. Defendo no livro que um dos desafios capitais para a comunicação contra-hegemônica em rede é a sustentabilidade dos projetos jornalísticos. Poucas são as iniciativas que conseguem se estruturar em moldes autônomos, sem depender de recursos ou patrocínios externos. O apoio do poder público como estímulo à construção de estruturas de sustentabilidade para mídias alternativas torna-se uma reivindicação estratégica. A inspiração vem dos países da Aliança Bolivariana das Américas (Venezuela, Bolívia e Equador), nos quais políticas públicas contemplam editais de financiamento, oficinas de produção audiovisual, formação técnica condizente, equipamentos e proteção legal. 

Fonte: NPC