Felipe Maia: As jornadas de junho e a hora da política

Nos últimos 20 anos o bordão “é a economia, estúpido” foi repetido ad infinitum como explicação para as mais diversas formas de decisão e manifestação política. Afora o mau gosto da expressão que insulta o interlocutor, subjaz ao bordão a tese de que a racionalidade humana não faz outra coisa senão calcular as possibilidades de ganho econômico e aquisição material. Assim, se a economia vai bem, tudo vai bem, sociedade e sistema político inclusos.

Por Felipe Maia*

Quando vai mal, tudo vai mal. Muitos políticos, jornalistas e marqueteiros – para não falar dos próprios economistas – acreditaram piamente nesta tese. Em boa medida orientaram-se por ela, fazendo da gestão do crescimento econômico e das variáveis a ele atreladas – o PIB, o emprego, os juros, o câmbio – o objetivo supremo da atividade política. Mesmo a política social sofreu com a colonização das técnicas economicistas, que impuseram o predomínio de intervenções focalizadas sobre políticas universalistas e estruturantes.

Este ponto de vista anda de braços dados com a redução da política a mera técnica administrativa. Aos políticos caberia a gestão da “governabilidade”, neologismo que codifica a continuidade e a reprodução de um sistema político autorreferenciado, sem sobressaltos e, sobretudo, com a minimização dos conflitos sociais. Afinal, o investimento, a “competitividade” e o “ambiente de negócios” exigem estabilidade e sem eles não há crescimento econômico.

Toda uma tecnologia foi desenvolvida para administrar os controles sociais e econômicos em regimes de democracia parlamentar e eleitoral. Marqueteiros produzem e decodificam pesquisas de opinião pública para medir a “popularidade” de discursos e candidatos, configurando o “mercado eleitoral”. Economistas orientam a gestão de macro variáveis capazes de indicar os fluxos de capital. Jornalistas produzem os enquadramentos e as imagens midiáticas que dão suporte comunicativo à gestão.

Quanto maior foi a crença na infalibilidade destas teses, maior a dificuldade de entender as manifestações de rua que aconteceram em todo o país nas últimas semanas. Muitos líderes políticos experimentados deram declarações estapafúrdias demostrando incapacidade de compreender o momento. O espanto aparecia em perguntas do tipo: como um aumento tão pequeno no preço das passagens causou tanta revolta? Como pode uma presidenta da República com tanta popularidade sofrer críticas nas ruas? Por que falhou a velha operação de criminalização dos movimentos sociais? Como tal mudança de humor escapou às pesquisas de opinião?

As técnicas de controle social e de gestão da governabilidade mostraram-se incompetentes para lidar com uma expressão renovada da vontade social. Esta última não se mostrou tradutível na linguagem dos economistas pois apontou para questões que transcendem a gestão do mercado incidindo sobre problemas estruturais da vida urbana. Tampouco foi tradutível no marketing político maniqueísta, acostumado a reduzir o conflito político à polarização PT vs. PSDB. Governantes de ambos os campos foram igualmente criticados e produziram respostas incrivelmente parecidas. Já os ideólogos da mídia podem assistir a uma retrospectiva dos vídeos de Arnaldo Jabor no YouTube se quiserem recordar seus patéticos fracassos.

A sociedade se movimentou com uma pauta própria, ainda que pouco organizada e pouco precisa como talvez seja próprio de movimentos que se alastram como rastilho de pólvora. Mas deve-se dizer que esta pauta remete substancialmente ao “mundo da vida” urbano, ao campo das experiências compartilhadas e vividas nas grandes metrópoles, problemas para os quais a técnica governamental usual parece incapaz de prover soluções. Muito mais do que os 0,20 centavos, é a organização do espaço, a qualidade dos serviços públicos e a crítica de hierarquias e distinções sociais que parecem impulsionar os manifestantes. São cidades mercantilizadas que se reproduzem segundo uma lógica de desigualdades e exclusão, frutos da expansão de um capitalismo desregulado, descolado das experiências e expectativas da maior parte da população. As administrações públicas são percebidas como impotentes para ordenar esse processo, quando não são elas mesmas agentes de sua aceleração.

Não é à toa que os megaeventos esportivos tornaram-se alvo fácil do protesto popular por simbolizarem ao mesmo tempo a oportunidade de grandes negócios e a não realização das promessas de contrapartidas sociais, sendo a mobilidade urbana a maior delas. O contraste entre as obras dedicadas aos estádios de futebol e os precários equipamentos públicos de saúde e educação expresso em palavras de ordem tais como “escolas e hospitais padrão Fifa” ou ainda “o professor vale mais que o Neymar” são afirmações contundentes da recusa à submersão dos direitos sociais na escala de visibilidade e prioridade na ação governamental. Face a esses argumentos de pouco adiantou dizer que a Copa do Mundo de futebol trará empregos e crescimento econômico. As manifestações já subverteram as ordens de grandeza mobilizadas no debate público.

Na Europa, manifestações semelhantes também abalaram os sistemas políticos. Lá a crise veio da impossibilidade de conjugar a continuidade do crescimento econômico com uma distribuição justa da renda e da proteção social. No Brasil, deve-se dizer que o crescimento econômico jamais acompanhou uma distribuição minimamente justa da renda, bem como a formação de redes confiáveis de serviço público e proteção social. A ideia de que o crescimento econômico experimentado em meados dos anos 2000 poderia conduzir uma transformação social sem conflitos revela-se, à luz das manifestações, mera ilusão.

A domesticação das demandas sociais por um discurso pretensamente realista, centrado na “governabilidade”, terminou por afastar lideranças políticas e movimentos sociais organizados das expectativas de realização de direitos por parte da população. As manifestações trazem assim um sentido de urgência para uma pauta que não é em si mesma nova, pois já frequentava os programas de organizações diversas, mas que vinha sendo relegada a um plano inferior no andamento lento e problemático das instituições governamentais brasileiras.

O sistema político, excessivamente autoconfiante e autorreferenciado, não conseguiu interpelar a tempo a formação desta nova vontade. Fechou-se em sua lógica própria, na rotina da gestão do aparato estatal, que, se levarmos em conta os três níveis federativos, absorve todos os grandes partidos políticos. A semelhança na forma de condução das coalizões políticas – e seu famigerado “presidencialismo de coalizão” – e nos procedimentos para a competição eleitoral fez tábula rasa das diferenças partidárias, generalizando a crítica em direção ao sistema. Sinais desta insatisfação, a rigor, não faltaram, mas foram mal interpretados, como por exemplo no enquadramento da crítica à corrupção como “udenismo”, ou em seu reverso, a corrupção como “invenção do PT”.

Neste contexto, as manifestações parecem ter cumprido o objetivo de tirar o sistema político de sua zona de conforto e desestabilizar uma rotina que se reproduzia em circuito fechado. As manifestações podem assim alargar o horizonte de possibilidades e trazer um fato novo, que, se bem interpretado, pode ser criador de grandes transformações. Esta boa interpretação não se restringe, por certo, aos governantes e às instituições que se tornaram alvo dos protestos, mas também os manifestantes devem refletir sobre o significado de suas ações e os caminhos a serem seguidos no futuro próximo. A baixa capacidade organizativa deu espaço para manifestações localizadas e obscuras de irracionalidade, violência e preconceitos incompatíveis com a cultura democrática que parece ser predominante entre os manifestantes.

O ponto principal é que já não se pode voltar atrás, as jornadas de junho apresentam desafios novos que reclamam não uma intervenção providencial, que com base no carisma ou na autoridade viesse a serenar os ânimos e reestabelecer a ordem antiga, mas uma coordenação de iniciativas que respondam a problemas concretos, que estão ligados a um conjunto de expectativas de realização de direitos que a modernização das estruturas econômicas e a política social focalizada não puderam e não podem realizar. Trata-se também de renovação dos procedimentos diminuindo a distância entre a autoridade política e a população. Esta é propriamente a hora da política, que só se fará “grande” se recuperar sua dimensão criadora e inventiva, transformando práticas e deslocando interesses particularistas, sejam eles os da expansão predatória da economia privada ou os da autorreprodução do sistema político. Também os movimentos e seus participantes terão que lidar com desafios de grande política elevando sua capacidade organizativa e programática.

As respostas não estão prontas, mas a própria linguagem que vem das ruas pode oferecer caminhos a serem desbravados. Na sua multiplicidade de expressões, e sem desprezar as diferenças políticas que existem em conjunto tão amplo, os manifestantes recorrem aos temas dos direitos, da virtude pública e da democracia. Não são temas estranhos à tradição do pensamento político e social do ocidente, mas exigem por certo uma atualização às condições do tempo e da sociedade presentes. Há potencial aí para reorganizar o espaço público, mas isso só se dará se boas interpretações se encontrarem com uma prática política igualmente renovada.

*Felipe Maia é mestre em Sociologia pelo Iuperj, doutorando em Sociologia no Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e professor substituto do Departamento de Ciências Sociais da mesma instituição. Foi presidente da UNE 2001/2002.