A era do homo ciberneticus

Confira entrevista com o futurólogo britânico Ian Pearson. Aos 51 anos, não é nenhum aventureiro diletante. Ele é formado em física teórica e matemática aplicada e, por 20 anos, foi pago pela British Telecom (BT), para antecipar tendências e ajudar a materializá-las sob a forma de produtos e serviços. Foi na BT, em 1991, quando o telefone celular ainda era novidade, que Pearson concebeu o sistema de transmissão de texto que daria origem ao SMS, o popular torpedo.

Consta que ele anteviu o modelo de console sem fio para videogames dotado de um acelerômetro capaz de detectar movimentos em três dimensões que hoje se associa ao Wii, da Nintendo, e ao Xbox, da Microsoft. Em sua passagem pela BT, Pearson chamou a atenção para o potencial de serviços hoje consagrados, como os mecanismos de busca e o e-mail. Nem sempre o ouviram.

Atualmente, ele atua em carreira solo, à frente da empresa Futurizon, que fundou em Ipswich, na Inglaterra. Por meio dela, presta consultoria e faz palestras, internacionalmente. Consciente das vulnerabilidades da profissão de futurólogo, Pearson diz ter, desde 1991, um histórico comprovado de 85% de precisão em suas previsões para horizontes de dez anos. “Minhas ferramentas são: uma sólida experiência em ciência e engenharia, análise de tendências, senso comum, tino comercial, saber quando ouvir outras pessoas e um montão de pensamentos”, afirma ele. Pearson lançou seu livro mais recente, em 2011, You Tomorrow (Você amanhã), sem tradução brasileira. Ele define o trabalho como “um livro sobre o futuro da vida cotidiana”. Soa pretensioso? Pearson se defende: “Embora use o título de futurologista, que soa ligeiramente amalucado, sou apenas um engenheiro fazendo deduções lógicas para o amanhã, baseado em coisas que já podemos ver acontecendo”.

Entre outras coisas, ele fala do surgimento de uma nova raça, que ele chama "homo ciberneticus", "quando você adiciona capacidade eletrônica ao cérebro humano para melhorar seu desempenho." Pearson também fala de algo que ele chama de "economia do cuidado" o que significa, efetivamente, um novo capitalismo. Para ler a íntegra da entrevista clique aqui. Abaixo, alguns dos principais trechos.

Revista da ESPM: Sei que sua especialidade é o futuro, mas gostaria de falar, inicialmente, sobre o passado. O senhor é capaz de citar acertos de futurologistas que ajudaram organizações a antecipar tendências relevantes?
Ian Pearson: Acertamos a maioria das coisas que aconteceram na world wide web, no começo dos anos 1990. Entre os anos de 1991 e 1992, ajudamos empresas de toda a Europa a projetar a infraestrutura necessária para a “banda larga” que agora vemos como algo comum. Houve pouquíssimas surpresas, porque fomos precisos na definição dessa estratégia. Este é, provavelmente, o melhor exemplo.

E o que dizer dos erros e fracassos dos futurólogos?
Bom, há sempre aqueles notórios, como o do Bill Gates, dizendo que ninguém nunca iria querer mais do que 640K de memória, esse tipo de coisa. Mas ele não é um futurista profissional, então é realmente injusto. Não preciso ir além de mim mesmo para trazer alguns erros. No passado cheguei a dizer que, no ano 2000, estaríamos trocando a TV pela realidade virtual.

De acordo com suas previsões, em 20 anos, os computadores serão mais inteligentes que os seres humanos, capazes de transmitir sensações e mesmo de preservar o conteúdo da mente humana, o que soa um tanto assustador…
É assustador, mas esse movimento não começa da noite para o dia. Ele chega pouco a pouco e você se acostuma a ele. A cada ano diversas coisas novas são lançadas e nós apenas as aceitamos. Ao longo de um período de dez anos, isso significa muita mudança. Hoje mesmo, temos supercomputadores mais rápidos que o cérebro humano, em termos de poder de processamento. Então, já temos essa equivalência com as máquinas. Daqui a 20 anos, você terá equipamentos, no seu bolso, mais espertos que seu cérebro. Você também será capaz de ligar computadores a seu sistema nervoso periférico usando uma pele microelétrica. Você poderá imprimir telas eletrônicas na superfície da pele. Essa pele eletrônica se ligará aos nervos na palma da sua mão. Os sinais elétricos digitados na pele viajarão por esses nervos acionando comandos ou sendo armazenados em um computador. E vice-versa. Em algum ponto do futuro, ao experimentar um jogo de computador ou assistir a um anúncio, você poderá, literalmente, sentir algo em seu corpo, graças a um estímulo dessas terminações nervosas.

Não estou tão certo de que iria gostar de que um anúncio me tocasse desse modo. O que mais seria possível?
Muito do processo de pensamento vai ser capturado nessa mesma geração de tecnologias. Se você criar um link e transferir todo o seu processo de pensamento para um computador, poderá gravar a sua mente toda. Estamos falando de 2045, 2050, o que é um futuro mais distante. Mas capturar apenas sensações é uma coisa razoavelmente superficial. Poderemos fazer isso dentro de 20 anos ou antes disso.

Se pensarmos em termos de sociedades, e não apenas do desenvolvimento tecnológico puro, considerando também economia e política, o senhor acha que essa evolução será predominantemente positiva ou negativa?
É inteiramente possível ter avanços positivos e, ao mesmo tempo, um aumento da opressão, da vigilância e da invasão de privacidade. Podemos ter as duas coisas: equipamentos fantásticos que fazem a nossa vida muito melhor e também um governo opressivo. A tecnologia se presta a ambos os propósitos. No momento, infelizmente, estamos vendo evidências de que vamos ter ambos ao mesmo tempo. Na Europa, por exemplo, temos governos que querem monitorar cada coisa que fazemos, com a instalação de câmeras para controle de velocidade nas ruas, o monitoramento do que você faz no seu telefone celular e dos seus e-mails.

A tecnologia pode tornar real a figura do Grande Irmão orwelliano.
Há muitas invasões de privacidade para as quais os governos querem usar as novas tecnologias. Vemos forças policiais pedindo para usar veículos teleguiados que os militares utilizam no Afeganistão para nos monitorar. Temos grandes empresas de TI, como a Apple, tentando ajudá-las ao inventar novas tecnologias que permitam inabilitar todos os smartphones em uma área, apenas enviando um sinal especial.

Não sei qual é a expressão certa para isso, mas o senhor vem escrevendo sobre algo que poderíamos chamar de imortalidade eletrônica. Quanto tempo teremos de esperar até esse tipo de imortalidade se tornar realidade?
Há um projeto que as pessoas do Google chamam de Projeto 2045, porque é exatamente quando elas deverão estar atingindo essa imortalidade eletrônica. A essa altura, você terá um arquivo tão bom da sua mente no mundo das máquinas que seu corpo morrerá e você poderá seguir em frente como uma entidade-máquina. Acho que estão sendo otimistas quanto ao período de tempo. Se você quer um link tão transparente entre seu cérebro e as máquinas para que a maioria dos seus pensamentos e das suas memórias esteja acontecendo dentro do mundo da TI, provavelmente terá de esperar até os anos 2050. E então, 10, 15 ou 20 anos depois, vai virar rotina. Em 2070, será normal para as pessoas usar a TI como extensão de seus cérebros. Até certo ponto, muito de seu processo de pensamento e muitas de suas memórias estarão duplicadas ou totalmente armazenadas no mundo da TI. Então, seus corpos morrerão, seus cérebros morrerão, elas perderão uma porcentagem de sua mente e parte de sua personalidade desaparecerá com ela, mas muita coisa vai ficar no mundo da TI. Então, será de fato uma imortalidade eletrônica.

Nesse mundo que o senhor vislumbra, androides terão mentes humanas quase reais e coexistirão com seres humanos. Isso soa como ficção científica, algo como o filme Blade Runner, com androides se confundindo com humanos. Quão real é essa imagem?
Estou certo de que você viu o filme Eu Robô [uma produção de 2004, inspirada numa coletânea de contos de Isaac Asimov e ambientada em 2035, na qual um policial tecnofóbico investiga um crime que pode ter sido cometido por um robô]. Acho que aquele equilíbrio [entre humanos e máquinas] não está muito longe do que eu esperaria ver. A maioria das casas provavelmente terá um ou dois desses robôs de estilo androide, desempenhando várias tarefas. Teremos um monte deles.

Quão parecidos com humanos? Reais a ponto de nos confundirmos?
A tecnologia permitirá que sejam bem parecidos com humanos. Já temos peles de silicone que podem imitar a pele humana. Também teremos músculos de silicone, muito mais poderosos que o músculo humano. Então, poderemos ter androides cinco vezes mais poderosos que os humanos. Alguma coisa com a força do Schwarzenegger, um robô muito forte que se pareça com um ser humano normal. No que diz respeito à imortalidade eletrônica, muita gente pensa que teremos um robô ou androide no qual faremos um download da nossa mente e seguiremos em frente depois de mortos, ocupando-o o tempo todo. Eu não acho que será assim. Penso que poderemos muito bem compartilhar robôs.

Como isso seria possível?
Você terá uma população de, talvez, mil pessoas armazenada em um serviço on-line que suportará suas vidas, eletronicamente, dentro de uma rede. Elas poderão viajar pelo mundo na velocidade da luz. É um tipo de existência completamente diferente. Poderão, ocasionalmente, habitar um androide, mas não consigo ver por que iriam querer fazer isso o tempo todo. Então, esses robôs seriam perfeitamente adequados para o compartilhamento. As pessoas poderão alugar um androide por alguns minutos toda vez que precisarem de um.

Como um veículo para visitar o mundo físico?
Talvez por umas poucas horas. Elas poderão vir, ocasionalmente, ao mundo físico como pessoas físicas. Mas, na maior parte do tempo, ficarão contentes em existir apenas eletronicamente, dentro de uma máquina. Há também a possibilidade de várias pessoas usarem um mesmo androide ao mesmo tempo. Indo além, há a possibilidade de usar um link entre o cérebro e a máquina para compartilhar o corpo de outra pessoa enquanto ela o usa.

Para quê?
Para ocupar a mesma rede sensorial dela. Assim, você poderia experimentar as mesmas sensações, viver uma espécie de simbiose.

Muitas obras de ficção científica especulam sobre um mundo no qual as máquinas assumem o controle, como O Exterminador do Futuro e Matrix. Isto vai ser um risco real?
Não vai ser; já é um risco real, uma vez que estamos avançando por uma estrada na qual as máquinas se tornam tão espertas quanto as pessoas e já estamos criando máquinas autônomas. As pessoas tentarão conectar essas duas coisas. Então, teremos máquinas autônomas tão espertas quanto ou mais do que humanos.

A ponto de poderem se insurgir?
Isso parece quase inevitável no caminho que já estamos trilhando. Não é um risco; é uma probabilidade que seguiremos por uma estrada na qual haverá máquinas mais espertas que o homem. Existe um risco, então, de que terminemos entrando em conflito com elas em algum momento, se decidirem seguir um caminho diferente. Quando um robô é apenas uma máquina simples, a que se pede para aceitar instruções, ele faz o que mandam. Mas se damos a ele uma mente tão sofisticada quanto a de um ser humano, ele logo se torna capaz de entender situações. Ele percebe que foi instruído a fazer algo, mas que, na realidade, tem algum pensamento independente. Pode racionalizar a situação e, se não gostar das suas razões, optar por não fazer o que você quer. Ele pode optar por desobedecer, se tiver tecnologia superior à sua disposição.

De novo, é meio assustador. Mas vamos falar um pouco de negócios. Como o senhor acredita que o marketing será praticado pelas empresas nesse futuro?
Penso em uma nova mídia, que deverá chegar direto ao seu sistema nervoso para estimular sensações. Isso amplia o escopo do marketing. Não é apenas vídeo e áudio. No futuro, vai ser possível sentir o produto, interagir com ele. Provar uma roupa como se a estivesse vestindo. Sentir a sua textura.

Quando se pensa no desenvolvimento da internet, muitas empresas tiveram sucesso no mundo real com modelos de negócio criados a partir das possibilidades que a web oferece. O Google é um exemplo disso. O senhor consegue imaginar que tipo de companhia e de novos setores tendem a liderar a criação de mercados nesse futuro?
Elas virão do mundo da realidade aumentada. Acredito que dentro de 20 anos muita gente estará usando algum tipo de aparato na cabeça – que pode ser um par de óculos como o que estou usando, dentro dos quais haverá lasers capazes de “escrever” imagens diretamente na retina, ou mesmo lentes de contato ativas, que funcionarão como displays tridimensionais de alta definição e alta resolução. Isso abre um novo mundo, porque lhe permite levar sua vida cotidiana e ao mesmo tempo ter montes de informações de marketing, entretenimento, socialização, negócios…

É um admirável mundo novo para a publicidade.
Você pode mudar o modo como as coisas se parecem, adicionar valor a ambientes digitalmente e obviamente processar informações de mão dupla. Ver o que os consumidores estão olhando, pesquisar o perfil deles e entregar informação customizada diretamente dentro de seus campos de visão. Se você me conhece bem, sabe que game vou jogar esta noite no meu Xbox. E, provavelmente, poderá usar esses mesmos personagens [do videogame] para entregar informação no meu campo de visão. Ou eu vou poder atirar nesses caras enquanto minha mulher faz compras.

Interessante, mas um tanto invasivo, não?
O marketing ganha uma nova dimensão quando começa a colocar coisas no campo de visão das pessoas à medida que elas andam por aí no seu dia a dia. E a informação flui nas duas mãos. Eu gostaria de viver num mundo assim, porque ele torna minha vida mais divertida. Eles [os publicitários] gostariam de viver num mundo assim, porque lhes dá mais oportunidades de me vender coisas. E eu posso querer comprá-las. Vou gostar desse marketing, desde que ele seja personalizado. Não gostamos de ver anúncios porque eles são para outras pessoas. Você perde seu tempo. Quando o anúncio é sobre algo de seu interesse, você olha para ele. Às vezes, você sai explorando a internet atrás de informação sobre um produto, então uma ferramenta de marketing pode tentar antecipar o que você iria procurar, de todo modo. Vejo uma nova geração de empresas usando essa combinação de criação de perfis, contextualização e personalização para entrar na sua vida cotidiana utilizando novas mídias. É product placement na vida real para valer.

Fonte: Revista da ESPM