Euclides da Cunha e a internacionalização da Amazônia

A viagem de Euclides da Cunha pela Amazônia e a integração latino-americana.

Por Paulo Fonteles Filho*, especial para o Vermelho

Quando Euclides da Cunha embarcou no vapor “Alagoas” em 13 de dezembro de 1904 no Rio de Janeiro, nomeado chefe da comissão brasileira de reconhecimento do Alto Purus, pelo então Ministro das Relações Exteriores, Barão do Rio Branco, para uma viagem de um ano pela Amazônia cuja missão diplomática Brasil-Peru buscava fazer o reconhecimento hidrográfico das cabeceiras do rio Purus, por conta de conflitos envolvendo caucheiros peruanos e seringueiros brasileiros, uma preocupação ficaria clara ao final da epopéia que vai inaugurar a interpretação brasileira sobre a imensa região: os intentos de internacionalização da Amazônia e a necessidade de um projeto de integração latino-americana.

O grande escritor, cientista e literato, asseverava que “(…) sem este objetivo firme e permanente (de conhecer o interior inóspito), a Amazônia, mais cedo ou mais tarde, se destacará do Brasil, naturalmente e irresistivelmente, como se despega um mundo de uma nebulosa – pela extensão centrífuga do seu próprio movimento”. O autor de “Os Sertões”, obra fundamental para entender o Brasil, sabia do que falava porque – e a partir da capital dos seringueiros, Manaus, que, como Belém do Pará vivia o apogeu e cosmopolitismo da belle époque – adentrou por um território imenso e inexoravelmente rico, mitologicamente desconhecido e fator da cobiça internacional.

Percorrendo a vastíssima região, que a princípio lhe pareceu monótona, pôde observar as condições do universo humano e a degradante exploração do seringueiro, escravo de seu próprio ofício, numa região de fronteira ligada ao mercado internacional onde a exploração máxima do mundo do trabalho era regra que enriquecia os barões da borracha, sustentando trustes mundo afora e, ao mesmo tempo, o calvário das centenas de milhares de homens, mulheres e crianças que riscavam as seringueiras nas profundezas daquele “inferno verde”.

Sua inspiração nas idéias socialistas não o deixará alheio ao elemento humano e a justiça social, preocupação que vai lhe acompanhar desde o Arraial de Canudos até sua morte.
Em “Judas-Ashverus” – expressão do retirante nordestino que paga para se escravizar – que narra à malhação de Judas nos seringais, de extremo lirismo e maturidade literária vai criticar a Igreja e revelar a humanidade daqueles que “Não tiveram missas solenes, nem procissões luxuosas, nem lavapés tocantes, nem prédicas comovidas. Toda a Semana Santa correu-lhes na mesmice torturante daquela existência imóvel, feita de idênticos dias de penúrias, de meio-jejuns permanentes, de tristezas e de pesares, que lhes parecem uma interminável sexta-feira da Paixão, a estirar-se, angustiosamente, indefinida, pelo ano todo afora”.

Os intentos de avaliação das riquezas contidas na Amazônia – de modo a explorá-las – maravilharam o mundo através de expedições supostamente científicas no século 19, como foi o caso ocorrido com o célebre naturalista suíço Jean Louis Agassiz que, segundo o pesquisador brasileiro Arthur César Reis, estudioso das ameaças de ocupação do vasto território por potências estrangeiras, promoveu missões de espionagem e teria servido de “inocente útil” ao realizar conferências sobre a Amazônia nos EUA. Tais conferências, afirma Reis, eram na verdade “autênticos convites” à ocupação da Amazônia pelos “povos fortes” do hemisfério norte.

Na miríade de propagandistas europeus do mundo amazônico, como Saint-Pierre, Spix, Martius, Castelnau e muitos outros, talvez nenhum tenha causado tanta repercussão quanto Alexander Von Humboldt, um dos mais brilhantes cientistas de seu tempo e amante da natureza, que empreendeu longa viagem pela América do Sul entre 1799-1804.

O grande naturalista alemão, que não obteve permissão das autoridades portuguesas para explorar a parte brasileira da Amazônia percorreu mais de 9.000 km em uma terra selvagem e inóspita e teve como resultado a descoberta da existência de uma comunicação entre os sistemas hidrográficos do Orinoco e do rio Amazonas, o canal Cassiquiare, descoberto por Francisco Orellana em 1535, na fronteira entre a Venezuela e Colômbia, e a exata bifurcação fluvial daqueles imensos rios latino-americanos. Além disso, precisou latitudes e longitudes, ajustou mapas, identificou 60.000 plantas, das quais 6.300 eram desconhecidas, além de descrever a corrente que leva seu nome, que nasce na Antártica e percorre o oceano Pacífico acompanhando as costas do Chile e do Peru.

Em seus relatos de viagem contribuiu para intentar contra a visão rousseauniana do nativo dos trópicos, que tinha sido “objeto de tantos devaneios sistemáticos”. Buscava, com isso, restabelecer através da autoridade científica, a crença na exeqüibilidade do desenvolvimento da civilização humana nas latitudes equatoriais.

Segundo Humboldt se “tivessem as nações das baixadas da América equinocial participado da civilização que se expandiu sobre as áreas frias e alpinas, a imensa mesopotâmia de Orinoco-Amazonas veria favorecido o desenvolvimento de sua indústria, animado o seu comércio e acelerado o progresso da ordem social”.

Tal argumentação, expressão do etnocêntrico pensamento europeu da época, alinhavado com observações da ocorrência de ouro na parte setentrional da Amazônia e da possibilidade de interligação das bacias do Orinoco, do Amazonas e do Prata, articulando uma farta comunicação fluvial, além da grande fertilidade do solo amazônico não tardaria, pois, por provocar a curiosidade de estudiosos e aventureiros, mas, sobretudo de mercadores interessados em grandes jazidas minerais e que conscientemente advogaram, tal como o inglês Charles Mansfield, a colonização do Brasil por estrangeiros.

Não obstante, o colonialismo europeu e norte-americano iria desenvolver um arcabouço teórico com o intuito de sustentar um pretenso “Direito Natural” e com isso promover diversas ficções jurídicas convenientes para a penetração estrangeira na Amazônia.

Os intentos, em especial estadunidense, rondam a imensidão amazônica antes e depois de nossa independência política, conquistada em 1822. Caso exemplar foi à manifestação do presidente William Taft, em 1909, por ironia no mesmo ano do desaparecimento de Euclides da Cunha, momento em que se debruçava sobre Um paraíso perdido, seu segundo livro e, como “Os Sertões”, de caráter, como ele mesmo afirmava “vingador”, pelo fato de desvendar o Brasil e os problemas nacionais.

Taft, ex-secretário de guerra de Theodore Roosevelt nomeado em 1904 e nascido em uma poderosa família de Cincinnati, Ohio, dizia que “não está longe o dia em que bandeiras de estrelas e listras (americanas) marcarão a extensão do nosso território (…). Todo o hemisfério será nosso, já que, em virtude de nossa superioridade racial, é nosso moralmente”.

O fato é que em meados do século XIX os EUA iniciaram um violento processo de expansão iniciado pela anexação de grandes parcelas do México, como o Texas e a Califórnia, em 1840. As dezenas de expedições que vieram a nosso país naquela quadra histórica serviam, de fato, segundo o escritor John Harrison ao chamado “destino manifesto” da expansão territorial dos EUA.

Um dos arautos e principal porta-voz daquela tese expansionista, o tenente Mattnew Maury, superintendente dos serviços hidrográficos dos EUA, escreveu violentos artigos com o espúrio intuito de forçar a abertura dos rios brasileiros à livre navegação de embarcações estrangeiras. Em tais artigos descrevia o Brasil como um paraíso onde os brasileiros não tinham condições de explorar e desenvolver, defendendo o ideário de promover a migração de estadunidenses para ocupar o vale do Amazonas.

O resultado de tão ardilosas pressões seria em 1895 quando estourou a questão do Acre, disputado pelo Brasil, Peru e Bolívia. Uma das condições postas para solucionar o imbróglio territorial – e econômico- seria a entrega daquela região a um certo Bolivian Syndicate , uma organização sediada em Washington e financiada por capitais ingleses e norte-americanos.

O fato é que o negócio da borracha era altamente lucrativo e, entre os integrantes do Syndicate, estava a United States Rubber que à época controlava 25% da produção nos EUA. A situação acabou se resolvendo através de dois caminhos: uma rebelião popular liderada inicialmente por Luis Gálvez, – que descobriu acordo diplomático entre a Bolívia e os EUA para a ocupação econômica onde hoje se situa o Acre – e continuada pelo caudilho Plácido de Castro e a astúcia do Barão do Rio Branco, responsável pelo Tratado de Petrópolis de 1903. Mesmo assim o Brasil iria indenizar o Bolivian Syndicate com a vultuosa soma de 110 mil libras, o que corresponde à quase 40 milhões de reais na atualidade.

Foi sob o guarda-chuva de “projetos científicos” que nasceram duas das mais espantosas histórias sobre a invasão forânea na Amazônia no século XX.
A primeira foi à idéia de constituir um Instituto Internacional da Hiléia Amazônica (ILHA), uma proposta “nascida” na primeira conferência geral da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), realizada em Paris em 1946, cujo objetivo era criar um organismo internacional, com suporte financeiro do Banco Mundial (BIRD), para “gerenciar” a Amazônia e seu futuro.

Tal órgão preconizava os direitos de “promover, conduzir, coordenar e divulgar os estudos da mencionada zona geográfica que será oportunamente delimitada” além de, para realizar seus objetivos, o Instituto poderia “estabelecer, fomentar e manter colaboração efetiva entre governos, organizações, grupos e pessoas interessadas”, sem a intervenção ou entraves do Brasil.

Uma intensa campanha popular se desenvolveu país afora, incluindo violentos conflitos nas ruas e praças do país contra o intento alienígena e, figuras de proa da vida brasileira, como o ex-presidente Arthur Bernardes, deputado federal à época denunciou que “esse afã (…) de reverter a Amazônia ao bem e à utilidade universais (…), sem se ater (…) aos legítimos interesses dos povos amazônicos”.

O Instituto Brasileiro de Geopolítica, presidido pelo Major Brigadeiro Lysias Augusto Rodrigues, em devastador relatório concluiu que “(…) A Convenção do Instituto Internacional da Hiléia Amazônica deve ser rejeitada ‘in-limine’, como prejudicial aos altos interesses nacionais, que constituem a diretriz indiscutida da nossa Geopolítica (…)”.

Por fim, o projeto acabou engavetado depois que o próprio Estado-Maior das Forças Armadas examinou o assunto a pedido do Congresso: os militares concluíram que as atividades do Instituto não poderiam ser realizadas sem o consentimento prévio e explicito dos respectivos governos nacionais.

A segunda grande idéia de promover o “desenvolvimento amazônico com o apoio internacional” era ainda mais fantástica e nitidamente ligada aos interesses estadunidenses. Segundo o Instituto Hudson, a integração econômica da América do Sul ocorreria com a criação de cinco lagos artificiais que inundariam 600 mil km² de terras, cuja maior parte, 400 mil km², seria em terras baixas da Amazônia, cobrindo parte de Manaus e toda Santarém, no Pará.

O projeto apresentado em 1964 por aquela instituição só foi ser conhecido pelo governo brasileiro três anos depois, através do então Ministro do Planejamento, Roberto Campos, a quem o próprio Hudson expôs planos e intentos. Assim mesmo, só com estudos detalhados divulgados na imprensa ou através de denúncias no próprio parlamento brasileiro compreenderam-se as intenções nefandas dos norte-americanos no sentido da ocupação e utilização econômica daquela vastíssima região brasileira e latino-americana.

No Itamaraty a diplomacia brasileira – cuja tradição preconiza os ensinamentos de Ruy Barbosa e do Barão do Rio Branco, no sentido do estabelecimento de uma visão política que considera como inquebrantável os interesses nacionais, caríssimos para a civilização dos trópicos, – investigou a questão e em relatório apresentado ao próprio governo sugeriu que eram necessárias “medidas acautelatórias da soberania nacional”.

Os estudos revelavam que, embora sendo uma entidade independente, o Hudson na verdade trabalhava estreitamente vinculado ao governo estadunidense e as verbais estatais correspondiam a 85% de seu orçamento. O mais grave nas conclusões do Itamaraty era o fato de que, desde a sua fundação em 1961, o instituto priorizava estudos com fins militares e de política externa e estava sob a supervisão do Pentágono, o Ministério da Defesa dos EUA.

Mesmo com o país vivendo sobre uma ditadura militar, instalada em 1964, a desconfiança da consciência nacional fora sacudida pelas denúncias da deputada Lígia Doutel (MDB-SC), em 1967. A parlamentar vociferava que o levantamento dos recursos na Amazônia havia sido realizado com a anuência e colaboração da Força Aérea norte-americana, absolutamente suspeita, pois os seus resultados não podiam ser divulgados ao público brasileiro. Entretanto, soube-se à época que cópias de mapas amazônicos eram fartamente distribuídos para grandes empresas daquele país imperialista.

Nesse período, em fins da década de 1960 do século passado, cientistas e empresários estadunidenses singraram o rio Amazonas em um barco especial – o poderoso Alpha-Helix. Segundo o pesquisador Arthur César Reis, os yankees não pediram autorização de ninguém e um dos pesquisadores da missão, o geólogo Fritz Went, chegou em entrevistas a sugerir que “a quem tivesse dinheiro a comprar terras na embocadura do Amazonas”.

No curso do tempo os planos de internacionalização da Amazônia foram arquivados e substituídos pela pura ocupação econômica, mais perigosa porque realizada sob aos auspícios do próprio governo brasileiro que, através de planos de desenvolvimento “nacionais” permitiam a penetração estrangeira e o capital externo era fortemente beneficiado.

Tal processo vai ganhar força e expressão durante a ditadura militar que assolou o país por mais de vinte e um anos, entre 1964-1985. O império do bilionário norte-americano Daniel Ludwig, como exemplo, irá ganhar amplo apoio governamental conduzindo-o ao posto de maior proprietário individual de terras no ocidente. O megalomaníaco Projeto Jari, que envolvia o reboque do Japão ao Brasil de uma termelétrica e uma fabricam de celulose, num percurso de 25.000 km, teria fim em 1982 com a venda do empreendimento. Naqueles dias a população que vivia em torno do projeto atingia mais de trinta mil pessoas.

O plano do Instituto Hudson acabou sendo útil, afinal, por outro motivo, bastante distante dos intentos originais: forçou a criação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito sobre a venda de terras brasileiras a estrangeiros. Instalada em 1968, por iniciativa do deputado Márcio Moreira Alves e tendo como relator o major, e também deputado Haroldo Velloso, ela desnudou a eficiência da nova estratégia de ocupação sobra a Amazônia.

O relatório dos congressistas indicaria que havia 156.957 km² do território nacional em poder de estrangeiros, fundamentalmente gigantescos conglomerados internacionais e que tais iniciativas econômicas estavam estabelecidas em áreas já mapeadas e analisadas do ponto de vista dos recursos naturais. O relatório da CPI acrescentava que a penetração forânea ocorria em regiões riquíssimas “com jazidas minerais desconhecidas das autoridades brasileiras”.

Segundo o jornalista Edmar Morel, em Amazônia Saqueada, as terras em poder de estrangeiros e grileiros podiam chegar à casa dos 500.000 km² em 1984. Barbosa Lima Sobrinho ao prefaciar a obra afirmara que “(…) é uma nova demonstração da grave ameaça que paira sobre os destinos do país. Retrata a situação miserável dos habitantes do grande vale, revela a decadência da Zona Franca, lembra as imensas riquezas de Carajás, as vendas de terras para americanos, uma invasão pacífica a que o Brasil assiste indiferente e inerme. Um grito desesperado num país de surdos”.

Euclides da Cunha, o pai da interpretação tupiniquim sobre a Amazônia vai nos ensinar nos termos de uma carta destinada a José Verissímo, em 1904, que “Se as nações estrangeiras mandam cientistas ao Brasil, que absurdo de encarregar-se de idêntico objetivo um brasileiro?”.

Referências:
BAGGIO, Kátia Gerab. A América Latina e os Estados Unidos na visão de Euclides da Cunha. Estudos de História, Franca, v. 7, n. 2, p. 55-68, 2000.
RIBEIRO, F. L. Cartas da Selva: Cartas da Selva: Algumas impressões de Euclides da Cunha acerca da Amazônia. História: Questões & Debates, Curitiba, n. 44, p. 147-162, 2006. Editora UFPR.
“Alexander von Humboldt online” – avhumboldt.de. Ed. Universidade de Potsdam, Alemanha.
LUZ, Nícia Vilela. A Amazônia para os Negros Americanos; As
Origens de uma Controvérsia Internacional. Rio, Editora Saga, 1968.
Seidl Vidal, Germano. A Hiléia Amazônica à luz da geopolítica. Revista “A Defesa Nacional” n° 432, Jul 1950.
Morel, Edmar. Amazônia Saqueada. Rio, Ed. Global, 1984.
Euclides da Cunha. À margem da história. Porto, Livraria Lelo e Irmão, editores, 1946. In MELO, Anísio.

*Paulo Fonteles Filho é membro da Associação dos Torturados da Guerrilha do Araguaia, representante do PCdoB no Grupo de Trabalho Araguaia (GTA) e colaborador do Vermelho.